Política e religião. Invasões recíprocas



"Religião deixou de ser um dever para ser um direito, livremente assumido. Essa é a diferença, que muitos não compreendem. Não ter religião já não é um defeito. Ter religião já não é, necessariamente, uma virtude", escreve José de Souza Martins, sociólogo, ao comentar a separação da Religião e do Estado estabelecida na Constituição de 1891, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 01-07-2012.
Segundo ele, "infelizmente, estamos num progressivo recuo em relação a esse princípio fundante do nosso regime republicano. O neopopulismo brasileiro descobriu nas igrejas e nas religiões um verdadeiro curral de votos cativos, de gente crédula e dócil ao apelo eleitoreiro em suposto nome da fé".
"Tudo seria compreensível num país atrasado como o Brasil, - afirma José de Souza Martins - não fosse o avanço da ousadia não mais sobre as greis religiosas, mas agora também sobre o sagrado. Se as igrejas pretendiam afirmar sua identidade religiosa no plano político, mostrando força perante os candidatos e caíram na tentação do voto de cabresto, não se deram conta de que havia um preço a pagar. E o preço maior não era o voto, era a sutil invasão do sagrado pela política e pela politicagem".

Eis o artigo.



Um fantasma assombra a República desde a sua proclamação: a religião. Um outro fantasma assombra a religião desde que essa separação ocorreu: a República. De assombro em assombro, vamos recuando em relação aos valores democráticos, aqueles que asseguram as bases da consciência propriamente republicana, livre de pressupostos e constrangimentos estranhos à política. E também em relação aos valores propriamente religiosos, aqueles que pedem a paz do privado para o exercício ritual da fé, que é o âmbito da liberdade religiosa que a República assegurou. Religião deixou de ser um dever para ser um direito, livremente assumido. Essa é a diferença, que muitos não compreendem. Não ter religião já não é um defeito. Ter religião já não é, necessariamente, uma virtude.

A invasão da religião pela política partidária no último domingo, no lançamento da candidatura do PMDB à Prefeitura de São Paulo, e a recíproca invasão da política pela religião no mesmo ato, propõem um complicado problema. O candidato, versado em questões de Igreja, atrelou o ato partidário da praça ao prévio comparecimento à missa dos migrantes na Catedral, celebrada pelo arcebispo, arrastando consigo toda a cúpula de seu partido, mesmo quem não é católico. Uma misturança, o que a razão e a fé estranham em nome do respeito ao que é próprio de cada qual.

Os positivistas de 1889, já antes da Constituição de 1891, estabeleceram a separação entre o Estado e a Igreja. Na monarquia o próprio imperador nomeava os bispos e lhes pagava a côngrua, mandando prendê-los, se fosse o caso, como aconteceu na chamada Questão Religiosa. Da monarquia à República laica, foi um salto muito grande num país secularmente habituado à promiscuidade pré-moderna de política e religião. A separação do Estado em relação à Igreja, e a adoção do princípio de que o Estado não tem religião, de que o exercício da fé é livre e de que todas as religiões são toleradas, representou um imenso avanço no Brasil. A liberdade seria uma quimera se as pessoas não fossem livres para crer ou descrer e se não pudessem tomar decisões políticas, votar ou deixar de votar, em função unicamente dos ditames de sua consciência e de sua decisão racional. O eleitos representam a consciência política dos cidadãos, não a sua consciência religiosa.

O regime republicano não impediu que os brasileiros pudessem crer, que fossem católicos, protestantes ou professantes de qualquer outro credo religioso. Ou ateus e descrentes. Religião não é um atributo necessário ao bom exercício do governo. Um presidente carola, como foi Artur Bernardes, que nos jardins do Catete rezava ao anoitecer, quando o arcebispo dom Duarte lhe implorou que fizesse cessar o bombardeio da cidade de São Paulo, em 1924, que matava civis, também crianças e velhos, recusou. Mandou dizer-lhe que São Paulo era rico e poderia reconstruir sua bela capital. Nada falou sobre as vidas que motivaram o apelo. Sua religião não o fez mais humano nem o fez um estadista.

A República tampouco obrigou os brasileiros a crer nisto ou naquilo. Ou vetou o acesso de quem crê à representação política e mesmo à Presidência da República. Desde 1889, apenas dois presidentes da República foram protestantes: Café Filho, presbiteriano, e Ernesto Geisel, luterano. Todos os demais foram, ao menos nominalmente, católicos.

A decisão republicana foi boa também para a Igreja Católica e para as diferentes religiões que se difundiram no Brasil desde o Império. Com ela a Igreja se libertou da tutela do Estado, ganhou completa liberdade para ser plenamente igreja, sem sofrer interferências nas questões propriamente religiosas. O que a República proclamou é que, assim como o Estado não se mete nos assuntos da Igreja e das religiões, as religiões e a Igreja não se metem nos assuntos do Estado.

Infelizmente, estamos num progressivo recuo em relação a esse princípio fundante do nosso regime republicano. O neopopulismo brasileiro descobriu nas igrejas e nas religiões um verdadeiro curral de votos cativos, de gente crédula e dócil ao apelo eleitoreiro em suposto nome da fé. Não só os evangélicos têm sido assediados e não raro seduzidos pelas cantadas partidárias, mas também os católicos têm tido uma disponibilidade para a sedução que não é pequena. Já nas campanhas de Lula e do PT o uso abusivo do templo e até do púlpito não mereceu reparos.

Tudo seria compreensível num país atrasado como o Brasil, não fosse o avanço da ousadia não mais sobre as greis religiosas, mas agora também sobre o sagrado. Se as igrejas pretendiam afirmar sua identidade religiosa no plano político, mostrando força perante os candidatos e caíram na tentação do voto de cabresto, não se deram conta de que havia um preço a pagar. E o preço maior não era o voto, era a sutil invasão do sagrado pela política e pela politicagem. Foi isso que aconteceu na Sé e em sua praça no começo da última semana, o ato partidário praticado como ato pós-eucarístico, uma violação da essência do sagrado.

3 comentários:

  1. A situação descrita não é uma peculiaridade de países 'atrasados' como Brasil. Tal invasão recíproca das esferas políticas e religiosas se manifestou de maneira fortíssima nos Estados Unidos desde 1972, quando Nixon se reelegeu usando apelos de ordem moral, acusando o democrata McGovern de ser o candidato do aborto e das drogas. Tal tendência se acentuou a partir do governo Reagan, e desde então o partido republicano tem um eleitorado cativo entre segmentos cristãos mais conservadores, a ponto de ficar inteiramente dependente dele: foi esse grupo quem impôs George W. Bush como candidato nas eleições de 2000 contra John McCain que naquela época criticou os excessos de ativismo político de líderes religiosos como Pat Robertson; na eleição de 2008, McCain, escolhido candidato, precisou indicar como vice a evangélica Sarah Palin para receber os votos da chamada 'direita cristã'.
    Pedro Meira.

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    1. Muito procedente seu comentário. Obrigado. Paulo Suess

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  2. O autor do artigo está considerando mais do que a relação oportunista entre política e religião. Ele trata da invasão do sagrado pela política e pela politicagem. Denso e correto. Muito bom.

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