Um mês após assassinato de indígena no MA, madeireiros não foram intimados e voltam a invadir território Ka’apor



  Far West à maranhense 

Carolina Fasolo
A fonte integral da notícia é do sitio do Cimi

        O agente indígena de saneamento Eusébio Ka’apor, 42 anos, da aldeia Xiborendá, da Terra Indígena Alto Turiaçu, no Maranhão, foi assassinado no domingo (26.04.2015) com um tiro nas costas. Ele voltava da aldeia Jumu'e Ha Renda Keruhu, na garupa de uma motocicleta conduzida pelo seu primo. Os indígenas seguiam o caminho de casa, cruzando os povoados que cercam a Terra Indígena Alto Turiaçu, no Maranhão. "Tava chovendo muito, quase escuro", relembra o primo. Ao ouvir os gritos de dois pistoleiros encapuzados, ele resolveu acelerar. A moto percorreu cerca de 80 metros, até que Eusébio caiu. “Tá doendo”, foram algumas das últimas palavras de Eusébio. Ainda vivo, foi carregado até um povoado próximo. Na na aldeia Ximborendá pediram socorro. Conseguiram um caminhão e correram para o hospital no município de Zé Doca. Alguns quilômetros antes de chegar na cidade, o Eusébio faleceu.

Eusébio, Ka´apor, defensor de seu povo

        De acordo com indígenas que pediram pra não serem identificados, os responsáveis pelo crime são madeireiros do município de Centro do Guilherme, que mataram Eusébio devido às ações de autofiscalização e vigilância territorial iniciadas em 2013 pelos Ka’apor, que culminaram, em março deste ano, no fechamento de todos os ramais de invasão madeireira da Terra Indígena Alto Turiaçu. Eusébio era um líder importante no combate à exploração ilegal de madeira na Terra Indígena (TI) e membro do Conselho de Gestão Ka’apor.
        
     “O pessoal tá insistindo que tem a ver com madeira e eu insisto que não tem”, declarou o delegado da Polícia Federal Fabrízio Garbi sobre o assassinato da liderança Eusébio Ka’apor, no Maranhão. Após 30 dias da emboscada que vitimou o indígena de 46 anos, a Polícia Federal não abriu inquérito para investigar o assassinato e as crescentes ameaças contra outras lideranças indígenas, responsáveis pela proibição da atividade madeireira dentro da Terra Indígena (TI) Alto Turiaçu.



        Uma das lideranças Ka’apor encarregadas do Conselho de Gestão do povo - instância administrativa organizada pelos indígenas que monitora a educação, saúde e proteção territorial - relata que as intimidações e ameaças de morte são constantes e que madeireiros voltaram a desmatar a TI. “Estão invadindo tudo de novo, tão tirando madeira de duas áreas já, lucrando com nossa floresta. Eles viram que a gente tá fraco por causa da morte do Eusébio, com medo de morrer também”.

       
 O Ministério Público Federal (MPF) no estado havia requisitado a instauração do inquérito e realização de diligências à Polícia Federal no dia 4 de maio, “por entender, a princípio, que se trata de um evento a ser averiguado na esfera federal, ante o histórico de conflitos locais e a possível relação com disputas atinentes aos direitos indígenas”, disse o procurador Galtienio da Cruz Paulino, que realizou oitivas com cinco indígenas nas últimas duas semanas, mas ainda não intimou nenhum dos madeireiros citados nos depoimentos.

        A Fundação Nacional do Índio (Funai), questionada sobre as providências, declarou que enviou após o assassinato o coordenador Regional do órgão no estado “para realizar o diálogo com a comunidade indígena, colher informações e explicar os procedimentos investigatórios de competência dos órgãos de segurança pública”. Disse ainda que acionou o Departamento de Polícia Federal no Maranhão.

        O delegado Fabrízio Garbi, que atua no combate ao crime organizado na PF, afirmou que nos ofícios recebidos da Funai, onde consta o depoimento de um funcionário do órgão ao delegado José Henrique, da Polícia Civil no município de Zé Doca, “não se constatou nada que tem relação com a comunidade ou com a exploração madeireira. Trata-se de uma tentativa de roubo. O funcionário tomou declarações da testemunha do assassinato no dia 27 e foi ouvido no dia 28 na Policia Civil”.


        Os indígenas acreditam que há uma confluência entre Funai, Polícia Federal e o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), para afastar qualquer ligação do crime com a exploração madeireira dentro da Terra Indígena Alto Turiaçu, e que isto se daria devido ao processo que condenou esses órgãos, em janeiro de 2014, à implantação de postos de fiscalização nas TIs Alto Turiaçu, Awá Guajá e Caru. “Como já sofreram essa condenação da Justiça Federal e não cumpriram, é melhor desfocarem o crime dos madeireiros, porque isso afasta a responsabilidade desses órgãos e evita uma nova condenação”, disse o representante do Conselho de Gestão, que pediu para não ser identificado devido às ameaças de morte que vem recebendo.

        Para os Ka’apor as evidências são claras: “Se queriam roubar, por que só mataram o Eusébio e não levaram a moto?”, questiona um dos indígenas. “Eles estavam de tocaia esperando a pessoa certa pra matar, porque naquele dia pararam outras três pessoas mais cedo, que também passavam de moto, mas deixaram ir embora”, completa. José Henrique, o delegado da Polícia Civil à frente do inquérito no início das investigações, disse à reportagem, no dia 12 de maio, que depois de ouvir a testemunha do crime e outros indígenas, estava trabalhando com a hipótese de “relação com os madeireiros, conflito que se intensificou há um ano e meio, desde que os indígenas começaram a proteger o território mais ativamente. Sabemos dos ataques aos indígenas, mas a competência dessa investigação é da Polícia Federal, que ainda não veio à região”, explicou.

        Cinco indígenas já foram ouvidos pelo MPF e ao menos três pela Polícia Civil. Todos narram ameaças sofridas em decorrência da proibição da exploração madeireira dentro da TI Alto Turiaçu. Há dois anos os Ka’apor têm fortalecido o processo de autofiscalização. Ao menos oito aldeias foram criadas em pontos estratégicos, para evitar a volta dos invasores, e em março deste ano os indígenas conseguiram, por conta própria, o fechamento de todos os ramais utilizados pelos madeireiros.

        No entanto, após a morte de Eusébio, dois ramais foram abertos e duas das oito aldeias de proteção tiveram que ser abandonadas pelos indígenas. “Disseram que se a gente não saísse eles iam chegar atirando e queimando nossas coisas”, conta a liderança de uma dessas aldeias, localizada nas proximidades do município de Centro do Guilherme. “Madeireiros estão entrando direto, principalmente em Santa Luzia [do Paruá], Nova Olinda [do Maranhão]. Mataram Eusébio pra gente ficar com medo e desistir de proteger a floresta. A gente fecha um ramal e eles abrem outro”, explica um dos indígenas responsáveis pelas operações de fiscalização.



      Em depoimento ao MPF, um dos filhos de Eusébio disse que foi cercado pelo madeireiro M. logo após a morte do pai, quando chegava ao município de Santa Luzia do Paruá. De acordo com seu relato, um homem mandou que parasse o carro, no qual transportava o corpo de Eusébio de volta pra aldeia, e disse que “quem era pra morrer era o A. e o C. [outros indígenas]”. Ele conta ao MPF que naquele momento poucas pessoas sabiam do assassinato.

        Depois da morte de Eusébio, os Ka’apor não receberam nenhum tipo de proteção do Estado. “Não tem como a gente se defender. Estamos com medo de que aconteça de novo, nossas famílias não querem que a gente saia na cidade. Tenho seis filhos, eles ficam preocupados ‘pai, o pessoal tá procurando você aí, dando recado’... Mas a gente não pode ficar parado, vamos continuar lutando”, diz uma liderança do Conselho de Gestão do povo.

A modernidade líquida de Zygmunt Baumann



Zygmunt Baumann acrescenta aos três pilares da modernidade (racionalidade, individualidade, historicidade) um quarto elemento, a "liquidade" (ou "liquidez"). A "liquidade" relativiza a previsibilidade de caminhos e currículos, suspende fronteiras e "liquida" compromissos a longo prazo. Tudo o que é proposto como definitivo pela Igreja perdeu, estatisticamente, sua "sustentabilidade". A linha reta virou curva e nós estamos fora da curva...


A “Vida Pastoral” dedicou um número especial (março-abril de 2015) à “Pastoral em tempo de modernidade líquida”. Para introduzir ao tema, reproduzimos parte da “Carta do editor” (Pe. Jakson Alencar, ssp).

O contexto histórico atual, marcado por transformações aceleradas, em que “tudo o que é sólido” parece desmanchar-se no ar, foi conceituado de maneira acurada pelo pensador Zygmunt Bauman com a metáfora da “modernidade líquida”. A ideia aponta para o fato de que, no mundo de hoje, tudo tende a modificar-se ligeiramente, como as substâncias líquidas o fazem nos lugares onde são inseridas ou derramadas.
A sociedade contemporânea tem forte e constante tendência à ruptura com a tradição, como se tudo tivesse de se renovar a cada passo. Isso está presente na mentalidade e nos princípios de vida e repercute na maneira pela qual as empresas e instituições sociais procuram se renovar. O ser humano tende a um estilo de vida desenraizado, seja das tradições, seja dos ideais elevados e norteadores, o que gera vazio, carência de sentido da vida, ansiedades de todo tipo. Tende-se a transformar o ser humano em mero indivíduo consumidor ou mesmo em objeto de consumo. A suposta liberdade que se propala parece reduzir-se à escolha entre um produto ou outro. A radicalização do individualismo torna mais difícil a convivência, o que se reflete nas dificuldades da vida comunitária e familiar. Tudo isso se reflete também nas incertezas da vida cotidiana; na precariedade dos laços afetivos, profissionais e com ideais norteadores; na troca do durável pela amplitude do leque de escolhas.
Por um lado, a valorização da singularidade pessoal, da pluralidade e da diversidade é positiva; por outro, fomenta a colagem e a bricolagem de elementos, seja na vida, na cultura e nas religiões; a preferência pelo exótico e pelo que tem aparência de novo. A religião e todos os aspectos sagrados da vida são dessacralizados, enquanto se sacralizam e se fetichizam os produtos, o consumismo, o prazer, ou ainda a religião é transformada em objeto de mercado, submetido à lei da oferta e da procura, conforme os interesses e modismos do momento.
Tudo isso, evidentemente, remexe com vigor a Igreja católica, que (...) desde o início do segundo milênio sempre se apresentou como uma instituição muito sólida, hierarquicamente bem estruturada de alto a baixo, com limites geográficos bem definidos em dioceses e paróquias, com um governo central de poderes amplos e incontestáveis, com doutrinas e normas universais bem definidas e rígidas e com todo um aparato que lhe dava uma conotação de perpetuidade, sacralidade e inquestionabilidade. (...).
Cf. a entrevista com Zygmunt Bauman.


Zygmunt Bauman: la crítica como llamado al cambio

Jon Sobrino ante la beatificación de Monseñor Romero





Por ocasião da beatificação de D. Oscar Romero, na véspera de Pentecostes, dia 23 de maio/2015, reproduzimos parte de um texto de José Comblin.

A profecia na Igreja
segundo o testemunho de Dom Oscar A. Romero

José Comblin

Dom Oscar Romero nasceu em 1917 e morreu em 1980. Começou a sua missão de profeta já com 60 anos de vida e o foi durante três anos. Converteu-se aos 60 anos, dando em sua vida uma guinada de 180 graus. A vocação profética pode ocorrer em qualquer momento da vida. Dom Helder Câmara converteu-se aos 46 anos. Ninguém escolhe uma missão profética.

Até 1977, todos teriam dito que Oscar Romero é que nunca seria profeta. Ele tinha sido escolhido pelo núncio apostólico como o mais conservador dos candidatos possíveis. O núncio havia consultado o governo da ditadura, as elites econômicas e as aristocracias, e todos propuseram Dom Oscar Romero. Contrariamente, quase todo o clero de San Salvador fazia votos para que não fosse designado. Todos sabiam que Oscar Romero era amigo do coronel Molina, o ditador do turno, e não aceitava Medellín.


Tudo mudou poucos dias depois de tomar posse como arcebispo, no dia 12 de março de 1977. Nesse dia a ditadura matou o Padre Rutilio Grande, que regressava à sua paróquia de Aguilares. Metralharam seu carro com armas que somente o exército possuía, e mataram, com ele, dois camponeses que o acompanhavam. Então Dom Oscar abriu os olhos e descobriu o que nunca tinha imaginado: todas as acusações de comunismo eram mentiras. O Padre Rutilio Grande era um jesuíta salvadorenho muito estimado, venerado e querido tanto entre o clero como entre o povo. Estava totalmente dedicado ao povo pobre do campo. Para todos era modelo de sacerdote vivendo pobremente e sempre a serviço do povo. Fazia anos que Dom Oscar o conhecia e o tinha escolhido como diretor espiritual. Então estava claro que as autoridades mentiam e o exército estava matando centenas de camponeses totalmente inocentes, acusando-os de comunistas.

Oscar Romero nasceu num povoado da montanha perto da fronteira com Honduras. Seu pai queria que Oscar fosse carpinteiro. Mas apareceu no povoado um padre que o levou para o seminário em San Miguel, sede da diocese. No seminário, o jovem Oscar fez-se um programa de vida rigoroso. Depois do Seminário Menor, o bispo de San Miguel enviou-o a Roma para os estudos de teologia. Ficou apaixonado por Roma e pelo papa. Recebeu o impacto forte dos jesuítas que dirigiam o Colégio Pio Latino e foi grande admirador de Padre Escrivá de Balaguer, fundador do Opus Dei.

Oscar Romero recebeu a ordem sacerdotal em Roma. Foi recebido triunfalmente em San Miguel, onde muitos já pensavam que tinha sido vítima da guerra. O bispo de San Miguel logo descobriu as qualidades de Oscar Romero e quis fazer dele o seu secretário particular. Foi pároco, capelão do Santuário da Virgem da Paz, confessor e diretor espiritual de religiosas, fundador e dirigente de tudo o que existia no mundo de movimentos espirituais e religiosos para leigos naquele tempo. Os mais de vinte anos que trabalhou em San Miguel Foram meteóricos.

Mas com o clero encontrou dificuldades. Em 1966, os padres da diocese pediram ao bispo que removesse o Padre Oscar Romero das suas missões. O bispo não concordou, mas a partir de então iniciou-se um processo de busca de uma alternativa para o Padre Romero. Foi nomeado secretário geral da Conferência Episcopal, o que significava ter de residir em San Salvador [Capital]. A despedida foi muito dolorosa para ele, mas submeteu-se e foi para a capital em 1967.

Em 1970, foi feito bispo auxiliar de San Salvador. Sua sagração episcopal foi triunfalista, o que não agradou ao clero. Então teve conflitos com os jesuítas, sobretudo com o grupo dos jovens da Universidade Centro-Americana (UCA). Houve muito mal-estar no Seminário Nacional em que ele estava hospedado. Os jesuítas tinham a direção do Seminário e difundiam as ideias do Concilio Vaticano II e de Medellín. Isso agradava ao arcebispo, mas não era aceito por bispos do interior, que queriam o tipo tradicional do padre dedicado aos sacramentos e às devoções populares de sempre. Romero conseguiu o afastamento dos jesuítas.

Além disso, Romero foi nomeado reitor do Seminário, mas após seis meses teve de renunciar porque tinha sido um fracasso total. Tudo isso criou no clero uma postura de rejeição. No entanto, o que não agradava aos padres agradava ao núncio. Em 1974, Romero foi nomeado bispo residencial de Santiago de Maria. Então pode voltar à sua prática pastoral de San Miguel, mas precisou enfrentar um grave problema de repressão imposta pelos militares. Sucedeu num lugar chamado Las Tres Calles. Um grupo de camponeses voltava de um culto com a Bíblia na mão e mais nada. Soldados da Guardia abriram fogo com metralhadoras contra os camponeses, matando um bom número, inclusive crianças. O clero jovem queria que o bispo fizesse uma denúncia pública. O bispo aceitou, mas somente enviou uma carta pessoal ao presidente da República, coronel Molina.

Assim era Dom Oscar Romero quando, em 1977, foi nomeado arcebispo de San Salvador. O núncio esperava que ele mudasse a linha medellinista do seu antecessor. Reuniu-se com o clero para acalmar a indignação de quase todos os padres e foi aceito com resignação. Mas depois de poucos dias tudo mudou. Aconteceu o que o núncio jamais podia ter previsto. O assassinato do Padre Rutilio Grande de repente abriu os olhos de Dom Oscar. Uma vez que descobriu a realidade, não hesitou. Seu temperamento era de honestidade total. Confiara na honestidade do governo e das autoridades porque acreditava nas suas palavras. Agora descobriu a mentira e o cinismo do presidente, que era seu amigo, e de todas as instituições de poder.

No dia 15 de março, depois de uma assembleia do clero, reunido para definir a atitude da Igreja diante dessa morte, o arcebispo publicou um comunicado em que declarava que não assistiria mais a nenhum ato público com membros do governo e, segundo, que no domingo, dia 20, haveria somente um missa para a cidade inteira na catedral. O núncio repreendeu Dom Oscar de modo bastante agressivo, mas ele se manteve firme. Desse modo se consumou a ruptura entre o arcebispo e o núncio. Romero, alarmado, foi a Roma, suspeitando que já tinham chegado à Roma informações tendenciosas. O papa Paulo VI deu-lhe apoio, mas cardeais importantes da Cúria Romana receberam-no com muita frieza.

No dia 19 de maio, houve uma tragédia em Aguilares, que fora a paróquia de Rutílio Grande. Uma multidão de camponeses tinha ocupado uma fazenda. O exército chegou com a vontade firme de massacrar. Mas os camponeses foram avisados e fugiram antes da chegada do exército. Pensando que estivessem refugiados na paróquia, os procuraram e, não os encontrando, mataram o sineiro, prenderam os jesuítas da paróquia, bateram neles e expulsaram-nos do país imediatamente. Furiosos, invadiram a igreja, abriram o sacrário e jogaram fora as hóstias consagradas como sinal de rejeição. Decidiram ocupara a igreja e a paróquia. Depois de algumas semanas, afastaram-se.

No dia 19 de junho, Dom Oscar veio com o novo vigário reabrir a igreja para o culto. Pronunciou a homilia mais clara e profética desses primeiros tempos. Denunciou a perseguição e exortou o povo a perseverar com firmeza, sem se amedrontar. Em 1º de julho, assumiu o novo presidente, general Romero (sem parentesco), e o arcebispo não assistiu à posse, mas outros dois bispos se fizeram presentes. Com tudo isso começou uma verdadeira mobilização das elites do país contra Romero.

Cada domingo, na homilia transmitida pela rádio da diocese ao país inteiro, Dom Oscar falava claramente e com muito vigor, denunciando a situação e dando coragem ao povo oprimido. Nesse momento ninguém mais escutava outra radio. A opção pelos pobres era cada vez mais clara.

Não era fácil. Foi nomeado bispo auxiliar Dom Revelo, que se mostrou o adversário mais oposto do arcebispo. Em 1977, Revelo foi delegado de El Salvador no Sínodo de Roma e denunciou ali que em sua diocese os catequistas ensinavam o marxismo, e o próprio texto do catecismo era marxista. Quando Romero foi a Roma em 1978, viu que havia muitas intrigas contra ele. Na Congregação dos Bispos, a repreensão foi forte. Sentiu a surda oposição de muitos cardeais. O papa deu-lhe apoio, mas morreu um mês depois. Em El Salvador, a Conferência Episcopal manifestava cada vez mais oposição ao arcebispo.


Com o tempo, Dom Oscar se sentiu entre dois fogos: de um lado estava o governo, com todas as elites do poder, a maioria da Conferência Episcopal e o núncio; do outro lado havia organizações populares que se convenciam cada vez mais de que a única solução era a insurreição armada, e se aproximavam dos grupos guerrilheiros.

Em setembro de 1979, Dom Oscar tinha recebido a informação de que oficiais jovens queriam dar um golpe para tirar o general Romero da presidência. Foi um golpe sem disparar um tiro, sem matar ninguém, totalmente diferente dos golpes anteriores. Depois de um confronto entre os serviços de segurança e organizações populares, no qual Dom Romero serviu de mediador e evitou um encontro violento, houve desentendimento entre os ministros civis e a junta de governo. Todos os civis renunciaram. Desde então começou a reinar no pais um ambiente de guerra civil. No dia 24 de fevereiro de 1980, publicou um comunicado dizendo que estava ameaçado de morte. Em 22 de março, houve uma reunião com o clero para deliberar sobre a homilia que o bispo ia pronunciar no domingo seguinte. A questão era se convinha chamar urgentemente as Forças Armadas para terminar a repressão e convencer os soldados a desobedecer quando recebessem ordem para matar inocentes. Todos concordaram e foi o que Dom Oscar pronunciou em sua homilia. Foi seu decreto de morte. No dia seguinte, 24 de março, às 18h26, na capela do hospital em que presidia a Eucaristia, no momento do ofertório, houve um disparo e a morte foi instantânea.

De modo mais geral, vale sempre a experiência de Romero. A missão profética começa quando se descobre a realidade da opressão e da violência, ou seja, a verdadeira condição dos pobres. E todos os anos antes da sua conversão, Dom Oscar Romero sempre tinha sido aberto aos pobres, tratando-os com bondade, indo ao encontro das suas necessidades. Mas não se perguntava por que eram tão pobres. Um dia descobriu porque eram pobres. Então não somente defendeu os direitos deles, mas também os preparou e exortou a defender os seus direitos e mudar a sociedade no sentido da justiça e de uma verdadeira paz.


Parece bem claro que a ação profética de Dom Oscar Romero somente foi possível porque ele tinha qualidades muito excepcionais. Era firme e corajoso. Claro que teve medo da morte. Comentou isso várias vezes com os seus colaboradores mais próximos. Jesus também teve medo. Mas esse medo não o influenciou em nada. Os que viviam perto dele achavam que nunca tinha sido tão sereno, tão tranquilo, tão equilibrado como no meio de todos esses conflitos, e mais ainda quando soube das ameaças de morte. Deu um testemunho de fidelidade radical ao Evangelho de Jesus Cristo.

(artigo publicado na revista CONVERGENCIA – março 2010)




Monseñor Romero. Por amor a la fe (2015)



DOM HELDER VISTO POR JOSÉ COMBLIN


No dia 3 de maio/2015, a Igreja da Arquidiocese de Olinda e Recife celebra a abertura oficial do processo de beatificação e canonização de Dom Helder Camara. 


Fonte: Dom Helder e a Vida Religiosa, 
em: Convergência, julho-agosto/2009



Dom Helder não era religioso. Mas é difícil achar um religioso tão religioso como ele. Assimilou-se profundamente com os pobres e quis ser pobre como Jesus foi pobre. Viveu pobre num apartamento muito pobre anexo à igreja colonial das Fronteiras. Viveu pobre na alimentação. Almoçava na lanchonete da esquina com os pobres. Comia muito pouco Não tinha carro, nem motorista, nem empregada. Não tinha porteiro e abria a porta ele mesmo, ainda que de 9 pessoas que vinham bater na sua porta, 9 eram mendigos. Acolhia a todos com a mesma simpatia, o mesmo amor. Ele se levantava todas a noites às 2 da madrugada desde a sua ordenação sem nunca faltar. Ficava em oração até às 4 e dormia de novo um pouco.

Era bispo mas vivia como servidor. Dois verbos nunca foram usados por ele: mandar e exigir. Ele podia sugerir, pedir, mas nunca mandava nem exigia. Nunca invocava a sua autoridade e por isso sempre manteve um governo colegial. Não precisava mandar: muitos seguiam-no com fervor e ele nunca importunou os sacerdotes ou as pessoas que não o aceitavam. Aceitava as orientações do governo colegial. Era o bispo, mas obedecia. Nunca quis impor a sua preferência pessoal. Ele abria os caminhos, mas não obrigava ninguém a segui-lo.


D. Helder visita Comblin, exilado na Bélgica


Era sempre de uma perfeita naturalidade. Não queria aparecer como alguém que é bispo, mas simplesmente como o irmão de todos e sobretudo dos mais simples. Jamais quis mostrar que era bispo, salvo para enfrentar os generais da ditadura. Queria ser ele mesmo filho dos seus pais, feliz de ter nascido no Ceará, feliz de ser nordestino. Era ele mesmo, dom Helder, sem títulos, sem artifícios, com a simplicidade de um pobre. Era um homem totalmente livre, totalmente aberto a todos.

Dom Helder recebia dezenas de visitantes a cada dia. Atendia a todos com a mesma atenção e a mesma simpatia como se cada um fosse a única pessoa interessante do dia. A todos dava a impressão de que ele ou ela era a única pessoa importante.

O seu relacionamento com o bispo auxiliar dom José Lamartine foi algo excepcional. Claro que dom Lamartine era um santo. Mas há autoridades que não sabem descobrir que têm um santo ao lado. Dom Helder entregava-lhe todo o governo da diocese. Tudo conversava com ele. A qualquer problema relativo à marcha da diocese, dom Helder dizia: Fale com dom José. Dom Lamartine se podia ver sempre feliz, o que não é tão comum entre os bispos auxiliares.


Era um místico. Vivia toda a sua vida superativa dentro de uma visão de fé: como presença do amor do Pai, como presença física de Jesus reconhecido em todos e como abertura para a inspiração do Espírito Santo. Todos os acontecimentos, todas as pessoas, todas as palavras ouvidas eram reconhecidas como palavras de Deus. Tudo isso com a maior simplicidade de tal modo que ninguém teria podido suspeitar. Os ateus estavam à vontade com ele sem desconfiar que conversavam com um místico. Ou seja, muitos têm uma visão convencional e artificial de uma vida mística. Em dom Helder, tudo era tão natural porque tudo procedia da sua espontaneidade. Não queria brincar de místico. Essa mística aparece nos milhares de poesias que escreveu e conservou. Escrevia as suas intuições místicas em forma de poesia durante as horas da noite, dedicadas à oração. Estava revendo os acontecimentos do dia anterior, os encontros, as pessoas, tudo iluminado à luz de Jesus.

A profundeza da sua vida religiosa aparecia durante a missa de cada dia. Então ele dava a impressão de estar no céu. Não manifestava nenhum esforço, mas era como se tivesse sido raptado por forças espirituais. Estava mergulhado no mistério. Dom Helder não era teólogo e não tinha nada que pudesse atrapalhar a sua devoção. Era simples na religião como os camponeses e sobretudo as camponesas do seu Ceará. Estava impressionado pela força da presença de Deus. Assim são os romeiros que vão a Juazeiro do Norte ou a Canindé.


CONVERSÃO E PERSEGUIÇÃO


Dom Helder descobriu os pobres bastante tarde na vida. Foi na sua grande conversão de 1955 no final do congresso eucarística que foi o seu grande triunfo como membro do governo da Igreja. Durante 5 anos em Fortaleza e quase 20 anos no Rio de Janeiro dom Helder tinha servido a Igreja, ou seja, a instituição eclesiástica com entusiasmo, ardor, felicidade e os mais brilhantes resultados: Responsável pela educação católica, assessor nacional da Ação católica, fundador e secretário geral da CNBB, fundador do CELAM com dom Manuel Larraín de Talca (Chile). Uma atividade exuberante com os mais brilhantes resultados. Mas ainda não tinha descoberto o mundo dos pobres. Vivia de maneira muito austera, pobre, mas não tinha encontrado os pobres face a face na sua realidade de pobres. Então veio a conversão. Converteu-se aos 46 anos.

Quando dom Helder descobriu a pobreza nas favelas do Rio, a sua vida mudou completamente. Começou a orientar toda a sua ação pastoral para os pobres de Rio de Janeiro. Quando chegou ao Recife, logo deu a entender que os pobres seriam a sua prioridade e imediatamente promoveu obras e atividades no mundo dos pobres, por exemplo, o “Encontro de Irmãos” que foi a expressão recifense das Comunidades Eclesiais de Base. Escolheu um modo de vida mais pobre e deixou as portas mais abertas para os verdadeiros pobres. Não se contentou com frases bonitas.

Dom Helder chegou ao Recife e tomou posse poucos dias depois do golpe. A repressão foi muito forte no Recife considerado pelos militares como o centro comunista mais perigoso do país com a proteção do governador Miguel Arraes. Logo o dom teve que enfrentar o problema da repressão e teve que assumir a defesa das vítimas do golpe. Quando dom Helder começou a estar ao lado dos pobres, começaram as perseguições. Uma Igreja que se preocupa com as classes dirigentes nunca será perseguida. Quando faz opção pelos pobres a perseguição é inevitável. De acordo com os evangelhos, a perseguição é parte da missão dos discípulos. Jesus foi muito claro.

Na perseguição, dom Helder sofreu muito, sobretudo quando as vítimas dessa perseguição eram colaboradores seus. Sofreu muito com o assassinato de padre Henrique morto aos 28 anos de idade. Sabia que era um recado para ele. Prenderam sacerdotes e leigos. Sofreu, mas não se deixou intimidar. Foi ameaçado muitas vezes, mas nada mudou o seu comportamento.


Por natureza era homem de paz e de conciliação. Fundou movimentos pela paz. Mas foi atacado, denunciado, perseguido como homem defensor da violência política. Não ficou calado. Suportou o peso das mentiras, das falsas acusações. Sofreu tudo sem rancor, sem amargura. Mas era de caráter muito sensível, como verdadeiro nordestino e não deixava de sofrer.

O maior sofrimento veio da perseguição dentro da própria Igreja. Ele teve que sair de Rio porque foi expulso pelo cardeal. Quando começou a defender a reforma agrária, foi acusado de comunista por bispos do Brasil. Quando se deu o golpe, a CNBB agradeceu oficialmente o exército golpista por ter libertado o Brasil do perigo comunista. Dom Helder foi afastado. Como era ativo, sempre cheio de esperança e de ilusões, resolveu abrir os olhos dos seus colegas e logrou depois de 7 anos colocar na presidência dom Aloísio Lorscheider e com ele começou a época gloriosa da CNBB que durou 24 anos. A CNBB foi centro da resistência à ditadura militar.

A atuação de dom Helder foi muito importante e chamou a atenção de bispos que se sentiam mais abertos para aplicar as reformas conciliares. Chamou também muito a atenção na Conferência de Medellín e quando começaram as lutas contra a ditadura militar no Brasil. Depois do Concílio começou a receber muitas visitas de personalidades eclesiásticas ilustres e recebeu muitos convites para falar em todos os países católicos e também não católicos.

Da Cúria vieram pressões para proibir suas viagens ao exterior. Essas viagens foram limitadas e nem a amizade do Paulo VI o salvou da raiva da Cúria. Paulo VI não mandava em Roma. No Brasil, os militares proibiram que o seu nome fosse pronunciado. Muitos pensaram que tinha morrido porque nunca se falava dele. Finalmente quando foi obrigado a renunciar por causa da idade, deram-lhe o sucessor que todo mundo conhece. Sem comentários! Quem o conheceu durante esses 15 anos, sabe o que foi a velhice dele. Soube da santidade de vida que se manifesta no sofrimento.

Dom Helder nunca fez muitos comentários sobre as instituições eclesiásticas. Tinha idéias muito claras sobre as reformas indispensáveis na Igreja católica e expressou claramente o seu pensamento a Paulo VI, sem ter muitas ilusões Não tinha muito interesse em mostrar aos sacerdotes quais eram os seus deveres, nem aos religiosos qual era a sua missão. Não gostava de dar lições aos outros. As instituições da vida religiosa não tinham interesse para ele. Ele praticava os votos religiosos, mas não estava interessado pela sua instituição canônica. Tinha admiradores e seguidores entre os religiosos e tinha também inimigos entre eles. Tudo isso era sem importância. A sua palavra, a sua vida, o seu comportamento era uma exortação permanente para todos. Dom Helder mostrou que era possível ser humano dentro das estruturas do sistema eclesiástico. Mas é preciso cultivar muitas virtudes.


José Comblin