Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a
IHU On-Line, Sílvia reitera que a experimentação religiosa é uma característica
atual de “ser religioso”. Assim, salienta, experimenta-se “a religião do outro
por causa de um convite”, ao mesmo tempo em que a “força da oração com o padre
ou o pastor na TV; o Reiki, o Shiatsu; o terço ou a Bíblia” são “formas de
encontrar a paz interior”. Segundo ela, “esse comportamento está associado às
angústias modernas de que alguns sociólogos têm tratado. Então muda também o
olhar dos indivíduos sobre a função da religião em suas vidas”.
Confira a entrevista.
Sílvia Fernandes – É importante ressaltar que o
censo reafirmou uma tendência já vista ao longo das últimas décadas: declínio
das religiões tradicionais e crescimento das novas expressões religiosas
cristãs, além da presença dos sem-religião. Por outro lado, se há confirmação
de tendência, a queda de católicos em números absolutos foi uma novidade, o que
pode significar uma mudança no paradigma do catolicismo como uma religião
cultural na qual os pais batizam os filhos e ao crescer os filhos decidem se
continuarão católicos. Desse modo, os dados sugerem uma diminuição dos
“católicos de batismo” e uma intensificação do pluralismo religioso que
continua a balançar a hegemonia católica. Não se pode minimizar o declínio do
catolicismo, mas buscar compreender a modernização da sociedade brasileira, que
inclui a mobilidade religiosa dos indivíduos num processo de intensa
experimentação e, ao mesmo tempo, reconhecer mudanças no perfil dos atuais
católicos.
Outra questão importante em relação ao catolicismo
diz respeito às estratégias institucionais ao longo das últimas décadas. Alguns
setores da Igreja passaram a entender que quanto mais reforçassem a formação, a
catequese e estimulassem a missão e o carismatismo proposto pela Renovação
Carismática, mais sucesso a Igreja teria na permanência dos fiéis. Isso não
ocorreu. A mobilidade religiosa entre os carismáticos é maior do que entre
membros de comunidades eclesiais de base, por exemplo, segundo as nossas
últimas pesquisas.
Mudou ainda o perfil do episcopado investindo-se em
um quadro mais jovem, mais alinhado às diretrizes romanas e eventualmente menos
aberto às transformações da sociedade brasileira. A Igreja abandonou as
pesquisas sociológicas sobre o cenário religioso brasileiro para apostar em
leituras e interpretações feitas por seus próprios quadros o que a afasta ainda
mais da complexidade das mudanças no campo religioso. A maior perda foi entre
os jovens e não é à toa que haverá a Jornada Mundial da Juventude no Brasil no
próximo ano e que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB vem se
esforçando por promover documentos e materiais didáticos que atraiam a
juventude.
IHU On-Line – Qual o desafio posto às religiões
tradicionais?
Sílvia Fernandes – Estamos falando de (re)
construção de identidade religiosa que inclui dupla ou tripla pertença. As
religiões tradicionais são desafiadas ao diálogo e abertura diante dos fiéis
que estão nesse processo. A lógica do adepto é muito diferente da lógica institucional
de pureza e vínculo e, por isso, enquanto a Igreja católica e as denominações
históricas do protestantismo adotam o reforço da doutrina como meio para o
fortalecimento da identidade institucional em contexto de pluralismo religioso,
os fiéis buscam elementos mais subjetivos ainda que possam valorizar aspectos
da tradição. O desafio é conciliar tradição com outros elementos que são
próprios àqueles que vivem a experiência religiosa: novos símbolos; novas
composições de crenças; novas práticas e experimentações etc.
Em meados da nossa década fizemos um estudo
qualitativo com cerca de 400 pessoas que moram nas metrópoles brasileiras e que
estavam vinculadas ao catolicismo (Comunidades e Eclesiais de Base e Renovação
Carismática Católica). Ficou muito claro esse aspecto da experimentação como
uma forma legítima de ser religioso. Assim, experimentava-se a religião do
outro por causa de um convite; a força da oração com o padre ou o pastor na TV;
o Reiki, o Shiatsu; o terço ou a Bíblia como formas de encontrar a paz
interior. Esse comportamento está associado às angústias modernas de que alguns
sociólogos têm tratado. Então muda também o olhar dos indivíduos sobre a função
da religião em suas vidas.
IHU On-Line – Por que o Nordeste e o Sul do Brasil
ainda concentram o maior número de católicos?
Sílvia Fernandes – Em 2005 fizemos uma pesquisa em
todo o estado do Piauí a pedido de bispos de um dos regionais da CNBB. À época
ainda havia setores da Igreja que buscavam compreender as transformações do
campo religioso por uma ótica que não fosse exclusivamente a institucional.
Constatamos que a religiosidade popular naquele estado é muito forte e a
população valoriza as romarias, as procissões e as festas religiosas
enormemente. Outros colegas têm pesquisado essa religiosidade no Nordeste e
conferido a força da religiosidade popular que faz surgir os chamados santos
não canônicos como o padre Ibiapina, na Paraíba; Dom Vital, dentre outros. É
importante, entretanto, estar atento às diferenças entre os vários estados do
Nordeste e à própria heterogeneidade da pertença católica dentro dos estados.
No caso do Piauí, nós vimos, por exemplo, que entre os sete municípios
investigados, a presença de evangélicos era maior na capital Teresina. Isso
mostra a relevância do desenvolvimento de mais pesquisas para entender melhor
as possíveis correlações entre urbanização e mobilidade religiosa.
IHU On-Line – O que significa o aumento do número
de pessoas que se dizem sem religião?
Sílvia Fernandes – Nós identificamos em nossas
pesquisas cinco tipos de pessoas sem religião: os de “religiosidade própria”
são os que pertenceram a uma religião tradicional e se desvincularam mantendo
suas crenças originais e, muitas vezes, rearranjando essas crenças com
elementos do universo new age e práticas milenares, tais como pedras da sorte,
cromoterapia etc.; há os sem-religião desvinculados, que não fazem composição
religiosa, mas mantêm a crença em Deus. Esse tipo inclui ainda os agnósticos.
Há os sem-religião críticos das religiões encarando-as como um modo de
alienação do homem; outro tipo é o sem-religião ateu e, por fim, identificamos
os sem-religião tradicionalizados simplesmente pela falta de tempo de
frequentar Igrejas. Esse tipo faz uma autoavaliação que não permite que ele se
enquadre em nenhuma religião por não frequentá-la. Eles veem incoerência em se
denominarem de uma religião determinada uma vez que não a praticam, mas
acreditam em uma dada religião e em seus valores.
Assim, o aumento dos sem-religião – menor do que o
esperado – representa a existência de pessoas em redefinição de identidade.
Lembramos que essa condição não se apresenta de modo definitivo e,
provavelmente, muitos dos que se declararam ser sem religião no censo de 2000
hoje já mudaram sua identidade religiosa, pois identificamos em uma de nossas
pesquisas uma reafirmação de vínculo também entre os sem-religião.
IHU On-Line – A senhora mencionou que a religião
passa a ser um aspecto da vida social no qual é permitido experimentar. Qual é
o significado religioso desta experimentação e qual a implicação disso para as
instituições religiosas?
Sílvia Fernandes – Nós temos analisado o fenômeno
religioso nos tempos atuais tendo a experimentação como uma de suas principais
características. Isso não significa dizer que as pessoas não mais se vinculam
ou passam a pertencer a uma dada religião, mas antes demonstra que a escolha é
menos definitiva e problematiza o antigo significado de conversão.
Se você observar, cada vez menos ouvimos a
expressão “fulano se converteu”, mas é mais comum ouvirmos “fulano agora é de tal
religião”. Assim, a transitoriedade da adesão religiosa é uma marca desses
tempos. Há um tempo agorístico delimitado por uma subjetividade difícil de ser
mensurada uma vez que muitos fatores podem catalisar ou desestimular o vínculo
religioso: a perda de um ente querido, uma doença na família, um filho que faz
uso de drogas. A religião é buscada como refúgio no presente para se viver o
aqui e o agora. Deus não pode ser uma figura do passado ou um ser longínquo. Os
fiéis falam que o buscam e o querem encontrar no dia a dia. Esse é o desafio
das narrativas religiosas encampadas pelas instituições tradicionais.
IHU On-Line – A Igreja Universal também perdeu 10%
dos fiéis na última década. Isso está relacionado com que fatores?
Sílvia Fernandes – A Universal enfrenta agora algo
semelhante ao que o catolicismo enfrentou com o seu surgimento, isto é, a
criatividade e a agilidade trazida pelas novas igrejas do tipo neopentecostal.
Acessar o YouTube permite ter uma ideia dessa versatilidade: é a pastora cantando
reggae com duas ou três palavras; é o ex-funkeiro promovendo “o passinho
abençoado”. Nós temos observado, portanto, algo que não é exatamente novo
porque relacionado à diversificação ou pluralização da sociedade brasileira, o
que muda é a intensidade e a velocidade desse movimento. Nossa hipótese é de
que as novas tecnologias de informação têm contribuído de forma importante para
isso. A oferta religiosa é mais visível, mais acessível intensificando a
possibilidade de acesso aos novos movimentos religiosos ou Igrejas.
IHU On-Line – Outro dado significativo do censo é o
número de pessoas que não têm filiação religiosa. Quais são as razões dessa
mudança? Por que cresce o número de pessoas sem vinculação institucional?
Sílvia Fernandes – A desfiliação institucional está
relacionada ao que mencionei acima. Se é possível falar em escolha numa
sociedade de muitas ofertas, é possível também falar em não escolha ou ainda na
escolha por não ter vínculo institucional com nenhuma religião. Esse
comportamento tanto pode denotar autenticidade ou busca dessa autenticidade por
parte dos indivíduos como uma imprecisão sobre que caminho seguir. Eu me
recordo de um estudo que fiz com jovens sem religião na Baixada Fluminense, em
que alguns deles se autodeclaravam não possuir religião por não encontrarem a
verdade em nenhuma delas. É curioso que em tempos de múltiplos discursos se
busque a verdade ao mesmo tempo em que discursos unilaterais são questionados.
São tempos de busca de certezas, tanto quanto da negação destas. Os dois
aspectos convergem para a autonomia na construção das identidades onde a
religião pode estar integrada ou não.
IHU On-Line – O que o censo revela em relação à
postura dos jovens diante da religião? Qual é a tendência religiosa a ser
seguida pelas novas gerações?
Sílvia Fernandes – O desdobramento de um modelo de
Igreja com ênfase na evangelização, na mídia, e na diversificação por meio de
comunidades religiosas de natureza carismática visa atingir a um público por
excelência: a juventude. Mas não tem surtido o efeito esperado, uma vez que
houve declínio na última década de 3 % no número de jovens católicos na faixa
dos 15 aos 29 anos, conforme o censo 2010. Assim, eles totalizam atualmente
17,6%. Entre os jovens católicos adultos (18 a 29 anos) a queda se apresenta na
mesma proporção passando de 16% em 2010 para 13,6%.
Várias estratégias têm sido implantadas pela Igreja
com o objetivo de alterar esse quadro e atrair o segmento juvenil. A Jornada
Mundial da Juventude – JMJ que ocorrerá no Rio de Janeiro em 2013 com a
presença de Bento XVI é uma delas. Documentos eclesiásticos orientam para que
os jovens assumam um papel ativo na evangelização de outros jovens e na missão,
fato que nega a recorrente afirmação da hierarquia católica de que à Igreja
importaria a qualidade de católicos e não a quantidade de membros. Na verdade,
a atração da juventude é fator de fortalecimento do catolicismo e, como
mencionei acima, a JMJ se apresenta como um esforço institucional nessa
direção.
Sílvia Fernandes foi pesquisadora do Centro de
Estatísticas Religiosas e Investigação Social – Ceris durante muitos anos.
Atualmente, é professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
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