A missão como êxodo pascal é tema de debate em Simpósio de Missiologia





28.Fev.2013
A missão como caminho pascal foi a ênfase dada pelo missiólogo indiano, padre Joachim Andrade, svd, no terceiro dia do 2º Simpósio de Missiologia que acontece em Brasília-DF. Eis as conclusões do palestrante:















Namaste - O Deus no meu coração saúda o Deus no teu coração


Celebração eucarística no estilo indiano


Matérias sobre o 2º Simpósio de Missiologia no Brasil
Centro Cultural Missionário - CCM.

A missão a partir da atratividade de Deus - Pe. Paulo Suess

Missão como êxodo pascal - Pe. Joachim, svd

Leigos/leigas na missiologia - Irene Soares

2º Simpósio de Missiologia no Brasil - Pe. Jaime Patias, imc



Recado de Pedro Casaldáliga para Bento XVI: Deixa a Cúria, Pedro!




Poema de Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de S. Félix do Araguaia para reflexão pós-renúncia do papa.




Deixa a Cúria, Pedro,
Desmonta o sinédrio e as muralhas,
Ordene que todos os pergaminhos impecáveis sejam alterados
pelas palavras de vida e amor.

Vamos ao jardim das plantações de banana,
revestidos e de noite, a qualquer risco,
que ali o Mestre sua o sangue dos pobres.

A túnica/roupa é essa humilde carne desfigurada,
tantos gritos de crianças sem resposta,
e memória bordada dos mortos anônimos.

Legião de mercenários assediam a fronteira da aurora nascente
e César os abençoa a partir da sua arrogância.
Na bacia arrumada, Pilatos se lava, legalista e covarde.

O povo é apenas um “resto”,
um resto de esperança.
Não O deixe só entre os guardas e príncipes.
É hora de suar com a Sua agonia,
É hora de beber o cálice dos pobres
e erguer a Cruz, nua de certezas,
e quebrar a construção – lei e selo – do túmulo romano,
e amanhecer
a Páscoa.

Diga-lhes, diga-nos a todos
que segue em vigor inabalável,
a gruta de Belém,
as bem-aventuranças
e o julgamento do amor em alimento.

Não te conturbes mais!

Como você O ama,
ame a nós,
simplesmente,
de igual a igual, irmão.

Dá-nos, com seus sorrisos, suas novas lágrimas,
o peixe da alegria,
o pão da palavra,
as rosas das brasas…
… a clareza do horizonte livre,
o mar da Galileia, 
ecumenicamente, aberto para o mundo.

(Pedro Casaldáliga, Bispo)






Simpósio de Missiologia reflete sobre a natureza missionária da Igreja





Por Jaime Carlos Patias|
27.02.13, no sitio da CRB Nacional



A “natureza missionária” da Igreja foi tema de reflexão na manhã desta quarta-feira, 27, durante o 2º Simpósio de Missiologia que acontece no Centro Cultural Missionário (CCM), em Brasília. Ao abordar esse tema, o teólogo e assessor do Conselho Indigenista Missionária (Cimi), padre Paulo Suess, trouxe reflexões sobre as origens da Missão. “A natureza missionária tem a sua raiz na atração de Deus”, afirmou. “É do Deus-amor que brota a missão. Portanto, a natureza missionária da Igreja está em Deus. A missão, que nasce de Deus, precede a Igreja que nasce do envio trinitário, na Festa de Pentecostes e já envolve interpretações e questões específicas do cristianismo”.

 O teólogo sublinhou ainda que a dimensão teológica da Missão está ancorada no próprio Deus-Amor e não em suas missões, seus mensageiros ou profetas. “A Missão pertence à teologia que considera Deus em si e como ponto de partida de tudo. Só em seguida ela faz parte da Economia de Salvação, que parte do caminho que Deus percorre com a humanidade. Esse plano nos foi revelado por Jesus Cristo e já faz parte de uma interpretação particular”.


 A distinção entre “atividade” e “natureza missionárias”, foi outro aspecto destacado por Paulo Suess. “Se as raízes da natureza missionária da Igreja se encontram na essência de Deus, não faz sentido distinguir ‘atividades missionárias’ de atividades que quase clandestinamente se emanciparam de Deus sem serem atividades missionárias”. Nesse sentido, “o Documento conciliar Ad Gentes afirma que ‘a atividade missionária entre as nações se distingue da ação pastoral exercida entre os fiéis e das iniciativas empreendidas para restaurar a unidade dos cristãos’, acrescenta, porém, que tanto a ação pastoral como a ação ecumênica ‘estão intimamente ligadas ao esforço missionário da Igreja” (AG 6,6).

 Ao aprofundar a ideia da “atração de Deus”, Paulo Suess, observou que o Documento de Aparecida assumiu literalmente esse tópico. Demonstrou isso com as palavras do papa Bento XVI pronunciadas na abertura da Conferência de Aparecida, quando afirmou: ‘A Igreja não faz proselitismo. Ela cresce muito mais por atração’.




“Neste momento eclesial de migração de fiéis para outras denominações, de escândalos, de perda do sentido da relevância da missão, somos obrigados a admitir, que a ferida aberta da nossa Igreja, é a falta de atratividade ou, às vezes, substituída por uma atratividade alienada. Essa falsa atratividade está baseada em marketing, propaganda para uma determinada comunidade, eventos espetaculares ou atividades e obras que se silenciam sobre o escândalo da cruz”, observou, para em seguida, apresentar a “atração da missão” e a “atratividade da Igreja” como meta e metáfora.

“Os missionários e as missionárias não são caçadores de borboletas, mas zeladores das flores de um jardim que atrai as borboletas. Não salvam almas, mas vidas. Também o Bom Pastor e o Bom Samaritano não são caçadores de borboletas. A atração de Deus opera também na ovelha perdida e naquele que caiu na mão do ladrão e é encontrado pelo samaritano”.

Na opinião de Paulo Suess, o termo de comparação da natureza missionária é a “atração”. “A atratividade é a marca registrada do nosso Deus. Por tanto, o essencial da natureza missionária é sua atratividade: atrai como a natureza e atrai como Deus”, arrematou.

Simpósio faz memória da caminhada missiológica latino-americana





Por Jaime Carlos Patias


Prof. Sérgio Coutinho
O 2º Simpósio de Missiologia que acontece no Centro Cultural Missionário (CCM), em Brasília, abordou na manhã desta terça-feira, 26, o tema: “Memória e significado da caminhada missiológica latino-americana”. Ao abordar esse tema, o professor de Ciências da Religião e assessor nacional das CEBs, Sérgio Coutinho destacou dois conceitos: libertação e nova evangelização e apontou as expectativas embutidas em cada um deles.
Para Sérgio Coutinho, “esses dois conceitos se tornaram não só categorias teológico-pastorais, mas duas categorias históricas importantes para estudar a história da Igreja, particularmente na América Latina”. [...]
A partir do início dos anos de 1980 acontece uma ruptura no modelo eclesiológico defendido pelo Vaticano II e por Medellín: o termo libertação começa a perder espaço para o termo “Nova Evangelização” que carrega um projeto missionário para converter o mundo à Igreja Católica. “Nova Evangelização é um termo novo para um projeto histórico da Cristandade no qual não há verdadeira civilização fora dele. Quem precisa de conversão não é mais a Igreja, mas o mundo”, observou. [...] O conceito volta a ganhar força no Sínodo dos bispos para a Nova Evangelização realizado em Roma no mês de outubro do ano passado.

Prof. Roberto Marinucci
Na segunda parte desta manhã, o professor Roberto Marinucci, mestre em Missiologia e diretor da Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, conduziu a reflexão sobre “Os caminhos da missiologia no contexto pós-conciliar na América Latina. Marinucci sintetizou o impacto do encontro de Melgar (1968), do 1º Encontro de Pastoral de Missões no Alto Amazonas, em 1971 realizado em Iquitos, da Consulta de Assunção (1972), do 1º Encontro Panamazônico de Pastoral Indigenista (1977), do 1º Encontro Ecumênico de Pastoral Indigenista do Cone Sul da América Latina(1980), da 1ª  Consulta Ecumênica sobre Pastoral Indigenista na América Latina (Brasília, 1983), do Encontro dos 500 anos de resistência indígena (1992) e, finalmente do 1º Congresso Missiológico Internacional de 1999.
Segundo Marinucci, todos esses encontros tiveram um tipo de impacto sobre a realidade da missão hoje, na América Latina. “A qualidade da ação missionária se mede pela difusão da lógica evangélica, pela construção do Reino de Deus mediante a contemplação e o fortalecimento da ação do Espírito vivificador presente na história. Nesta ótica, há uma evidente aproximação entre a missiologia católica latino-americana e a missiologia protestante”, terminou o palestrante.

Começa, em Brasília, o 2º Simpósio de Missiologia no Brasil









O Centro Cultural Missionário de Brasília (CCM) e a Rede Ecumênica Latino America-na de Missiologos e Missiologas (RELAMI), promovem em Brasília, de 25 de fevereiro a 1 de março de 2012, um Simpósio de Missiologia. Tema: "Teologia para uma missão a partir da América latina hoje".
Esse segundo simpósio acontece 14 anos após o primeiro, realizado em São Paulo de 18 a 22 de maio de 1999, convocado pelo Curso de Pós-graduação em Missiologia da Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, que teve como tema: "Os confins do mundo no meio de nós".

O horizonte missiológico do Vaticano II forjou a transição de uma Igreja Cristandade para uma Igreja Povo-de-Deus. Por causa dos 50 anos que se passaram desde o início do Concílio (1962) e de certa estagnação na vida eclesial de hoje, muitos movimentos eclesiais e comunidades teológicas procuram reconstruir a dimensão histórica do significado e imperativo teológico-pastoral do Vaticano II para a vida da Igreja. Já o Documento de Aparecida (2007) nos pediu com insistência: "A Igreja é chamada a repensar profundamente e a relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias latino-americana e mundiais" (DAp 11).

[veja os sitios de www.ccm.org.br e www.pom.org.br ]



Por Jaime Carlos Patias   
25 / Fev / 2013


Um momento de oração abriu, na noite desta segunda-feira, 25, o 2º Simpósio de Missiologia, que reúne em Brasília, até o dia 1º de março, cerca de 50 pessoas entre, docentes, teólogos, pesquisadores, representantes de instituições missionárias, agentes de pastoral e animadores missionários, de todo o Brasil.
Promovido pelo Centro Cultural Missionário (CCM) e a Rede Ecumênica Latino Americana de Missiólogos e Missiólogas (RELAMI) o Simpósio tem como tema: “Teologia para uma missão a partir da América Latina hoje” e pretende refletir sobre o papel da missiologia na atual conjuntura eclesial.


“Estamos vivendo um momento especial, um tanto difícil na Igreja. Diante dessa situação, o que temos para propor?”, perguntou padre Paulo Suess ao motivar o tema de reflexão. “Ouvimos falar de corrupção, lutas pelo poder. Nossa inspiração vem dos pequenos e das bases, não vem da cúpula. O povo simples nos ajuda a pensar não numa Igreja gloriosa e grandiosa, mas autêntica. Temos de refletir sobre o que significa a missão a partir da América Latina hoje, um continente pobre e sofredor”, sublinhou. “Há muitas propostas de salvação. Achamos que a proposta de Jesus pode mudar nosso rumo. Nestes dias vamos refletir sobre a busca da autenticidade na palavra que proclamamos”, completou.
A missiologia é um ramo da teologia que estuda a missão na prática e em diferentes situações e contextos do mundo de hoje. “A Igreja precisa de gente que saiba dar as coordenadas sobre a Missão”, argumentou padre Estêvão Raschietti, SX, diretor do CCM, ao destacar os principais objetivos do Simpósio. O encontro tem por finalidade também, “constituir uma associação de missiólogos para qualificar a formação missionária e partilhar experiências no campo da missiologia”, completou.
O 1º Simpósio de Missiologia aconteceu em de São Paulo, em 1999, convocado pelo Curso de Pós-graduação em Missiologia da Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, e teve como tema: “Os confins do mundo no meio de nós”.

A Igreja na encruzilhada e o temor da irrelevância social. Entrevista com Luiz Roberto Benedetti


 A Igreja se encontra numa encruzilhada, num dilema: abrir-se ao mundo e dialogar com ele ou fechar-se sobre si mesma, constata o sociólogo. - Nota da IHU On-Line: A entrevista abaixo foi publicada, originalmente, no dia 25-01-2013. Propomos a sua releitura.
 
“Maio de 1968 fez dos direitos humanos uma busca de satisfação de direitos individuais. O politicamente correto produziu um minimalismo ético, constituído de normas pontuais, provocadas por interesses tribais e corporativos. A realidade é que não se sabe como preencher o vazio. Nesse quadro, sumariamente esboçado como pensar o conservadorismo? E a Igreja?”. A indagação vem do padre e sociólogo Luiz Roberto Benedetti. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele concorda que a Igreja Católica seja conservadora e que ela aposta no conservadorismo. “Mas o pensamento e praxis institucionais de caráter doutrinário, ao ignorar o contexto histórico, podem produzir frutos amargos, perdendo relevância social mesmo no patamar dos valores que apregoam como sendo constitutivos de seu estilo de pensamento de modos de vida”. Para Benedetti, na atual conjuntura eclesial, “parece em curso um processo de mediocrização crescente: imposição acrítica da doutrina, a falta de uma hermenêutica séria na pregação da Palavra, valorização do espetáculo e pompas rituais, as grandes concentrações e a decadência de uma educação teológica de caráter sapiencial e reflexivo ilustram o quadro”.
 


Confira a entrevista.

 
IHU On-Line - Como o senhor analisa a posição da Igreja no contexto atual? Percebe que ela estaria enfrentando a modernidade com uma aposta no conservadorismo?
 
Luiz Benedetti - Tento ir na contramão e evitar definições prévias ou aderir a posições já assentadas. Assim, por exemplo, de um lado, se afirma que a secularização é um fato e, mais ainda, um dado irreversível e que o pluralismo e crescimento dos grupos religiosos é sua expressão visível. De outro lado, a posição contrária que vê um renascer religioso que coloca em xeque tudo o foi teorizado até agora sobre este termo. Se aceita a teoria, pode-se no máximo admitir que há uma pós-secularização ou dessecularização. Outro exemplo: o próprio termo relativismo é insuficiente para caracterizar o contexto atual. De um lado, há a crise do pensamento metafísico; de outro, a crise do marxismo colocou por terra a pretensão de conferir um desígnio à História, portadora, no dizer de Otavio Paz, de uma transcendência mítica. Busca-se no estilo de vida, fundado no consumo, um sentido para a vida. Mais do que relativismo, o que se experimenta é um grande vazio, que não se sabe como preencher.
Pretensões institucionais de fazê-lo estão mergulhadas em reivindicações que agudizam contradições no interior dos grupos religiosos, confrontados com a predominância de aspirações e desejos subjetivos (que se acredita serem direitos inalienáveis) sobre doutrinas e normas. Maio de 1968 fez dos direitos humanos uma busca de satisfação de direitos individuais. O politicamente correto produziu um minimalismo ético, constituído de normas pontuais, provocadas por interesses tribais e corporativos. A realidade é que não se sabe como preencher o vazio. Nesse quadro, sumariamente esboçado como pensar o conservadorismo? E a Igreja? Olhemos a Praça de São Pedro, no Angelus do domingo, 13 de janeiro: enquanto membros de um grupo feminista se despia durante a alocução papal em protesto contra o modo como a instituição eclesiástica trata as mulheres, uma multidão, de mais de 350 mil pessoas, participava de marcha contra o projeto do presidente da França, Hollande, de liberar o casamento gay e garantir o seu direito de adotar filhos. E no campo da teoria antropológica, Marc Augé, perguntando se na questão homossexual existe algo mais conservador do que a reivindicação do casamento.
 

IHU On-Line - Quais as chances de sucesso da opção conservadora diante da crise de credibilidade da Igreja atualmente? Que riscos se corre indo por esse caminho?

 Luiz Benedetti - O conservadorismo funda-se na ideia de ordem e de integração de uma sociedade verticalizada e governada pelos “melhores”, por uma elite que se pretende modelo do pensamento e ação justos. Mas o problema não está em entendê-lo através de posições doutrinárias ou ideológicas pré-estabelecidas, mas sim de perscrutar traços que podem ajudar a desvendar se as atitudes são conservadoras ou não. E só no desenrolar dos fatos que o caráter transformador ou conservador se manifesta. Como exemplos, pode-se pensar no sacerdócio feminino ou na ordenação de homens casados, que podem acentuar ainda mais a clericalização da Igreja se não se vai às raízes da dominação clerical. Outro exemplo, fora do catolicismo: a Primavera Islâmica pode repetir o caso iraniano: O aitolá Khomeini, recebido como herói, libertador do domínio da dinastia de Reza Phalevi, aplaudido pelos comunistas, fez destes as primeiras vítimas de um regime religioso que, no caso, assumiu caráter totalitário. Mais, contrariando até mesmo o próprio Islamismo.

Mas, tanto num caso quanto no outro há, por parte das duas religiões citadas, apelo a uma tradição. Esta é, objetivamente, a concretização de uma identidade sociocultural que nem sempre dignifica a pessoa e favorece sua emancipação. A tradição forma, no dizer de Manheim, modos de vida; estes, por sua vez geram estilos de pensamento que levam os indivíduos a se relacionarem com a realidade dentro de um esquema que interessa a grupos situados em posição privilegiada dentro do status quo institucional. Nesse caso, no exemplo citado, é claro que a Igreja Católica é conservadora e aposta no conservadorismo. Mas, como lembrei acima, o pensamento e praxis institucionais de caráter doutrinário, ao ignorar o contexto histórico, podem produzir frutos amargos, perdendo relevância social mesmo no patamar dos valores que apregoam como sendo constitutivos de seu estilo de pensamento de modos de vida, para ficar mais uma vez nos termos de Manheim. As instituições são conservadoras, governadas pela lei de sua autoreprodução. Para isso fazem adaptações pontuais.
No caso da Igreja Católica ela lida com o conflito através de mecanismos do tipo heresia e canonização. Pode-se ver um exemplo concreto na retomada da onda de canonizações no pontificado de João Paulo II. João XXIII e Paulo VI utilizaram pouco este mecanismo. Seu horizonte de visão e ação estava no mundo. O que a Igreja tinha a dizer estava mais em discernir os sinais dos tempos do que em propor modelos “prontos” de vida cristã. A própria reação a canonizações (Pio XII e os judeus, por exemplo) confirma a força simbólica desse mecanismo.


Conservadorismo: dados

 O conservadorismo implica em um duplo movimento, de cima para baixo e vice-versa. Há uma espécie de retroalimentação. O peso maior ou menor do vértice ou da base depende de momentos e situações históricas definidas. Fala-se da Cúria Romana, como modelo de conservadorismo, mas nem ela é um todo monolítico, se considerarmos as pessoas que ocupam cargos. Entretanto, se levarmos em conta os mecanismos que a regem, sua dinâmica interna – a burocracia impessoal e a distância pastoral, a falta de contato direto com o povo de Deus – seu funcionamento se reduz ao papel frio de controladora da vida da Igreja. Às vezes tem-se a impressão que se inventam problemas para gerar controvérsias e, dessa forma, ter como mostrar trabalho. Assim, o campo da regulação dos ritos é um terreno fértil para a geração de discussões. Só que esse mecanismo funciona e bem na medida em que provoca um movimento de baixo para cima. Um exemplo muito banal: a ausência de inquietação com os destinos do mundo por parte de seminaristas e os novos padres. Seu horizonte de preocupação restringe-se ao funcionamento da vida interna da Igreja. Sem ter o mundo e a história como horizonte de vida e pensamento cai-se na mediocridade. E então vestes e horários ficam mais importantes que as alegrias e dores do povo de Deus.
Problema crucial está na escolha dos quadros intermediários da Igreja: são vitais para sua atuação na sociedade. As nomeações têm obedecido a critérios nos quais pesa mais a submissão que a capacidade de contribuir para dar novos rumos ao caminhar da Igreja. A obediência pode ser caracterizada como subserviência. Isso porque o conservadorismo gira em torno de três eixos: a obediência tornada subserviência que faz o indivíduo ficar a serviço de tarefas pré-estabelecidas no tempo e no espaço; o carreirismo, fruto do poder como privilégio e favor e não como serviço: e a burocracia, cuja impessoalidade se entende como racionalização e eficácia.
 

 IHU On-Line - O que esperar de um cenário em que, ao mesmo tempo, se diluem as bases tradicionais de pertença religiosa, a liberdade religiosa, o pluralismo e a secularização e se abre espaço para projetos religiosos de viés conservador e fundamentalista?

 Luiz Benedetti - Para mim, aqui está a raiz dos problemas que a Igreja enfrenta. Discute-se realmente no interior da Igreja essas questões? O viés conservador se radica muito mais na ausência de discussão séria e competente para fazê-lo do que em posições doutrinárias que, conservadoras ou não, alimentem o debate e dinamizem a recepção ativa da ortodoxia e alimentem uma praxis criativa. Valha repetir o exemplo: a religiosas norte-americanas incomodam o aparato burocrático porque são competentes no exercício de seu serviço cristão e na capacidade de dialogar com o mundo. E aí vem a intervenção disciplinar, de caráter punitivo, ao invés de se deixar interrogar por uma postura social e eclesialmente responsável. Isso sem falar no levantamento prévio da suspeita.
Na atual conjuntura eclesial parece em curso um processo de mediocrização crescente: imposição acrítica da doutrina, a falta de uma hermenêutica séria na pregação da Palavra, valorização do espetáculo e pompas rituais, as grandes concentrações e a decadência de uma educação teológica de caráter sapiencial e reflexivo ilustram o quadro.


IHU On-Line - Quais os maiores desafios que a Igreja precisa enfrentar na contemporaneidade? Como ela tem feito isso, na sua opinião?

 Luiz Benedetti - Diria, simplificando e muito, que a Igreja se encontra numa encruzilhada, num dilema: abrir-se ao mundo e dialogar com ele ou fechar-se sobre si mesma. No primeiro caso, precisa qualificar-se e sua política de silenciamento dos teólogos, de intervenção em grupos socialmente atuantes e gozando de reconhecimento social explícito (caso das religiosas americanas) mostra que não foi este o caminho escolhido. No segundo caso, fechar-se sobre si mesma, leva a refugiar-se em modelos institucionais de pensamento, ação e formação de quadros que deram certo numa determinada época histórica. Seminário, paróquia, o uso do latim como língua universal constituem aspectos sintomáticos de uma totalidade fechada e imune às interrogações da realidade. Sente-se na Igreja um centralismo crescente preocupado com sua autoreprodução. Um exemplo está na preocupação em fortalecer o status institucional católico da Caritas, fortalecendo sua identidade confessional até mesmo caminhando numa direção proselitista em um campo que sempre foi muito além do assistencialismo. Deu força a ações encarnadas e encarnatórias acima de horizontes ideológicos. Estes não podem ocupar o lugar que cabe à “Graça”. Mostrar-se católico, neste caso, pode aparecer como uma logomarca da ação caritativa (que não conhece horizontes confessionais-ideológicos). No campo da cultura, o “imbróglio” Universidade Católica do Peru caminha na mesma direção.
 

IHU On-Line - Como o senhor percebe a postura de Bento XVI de robustecer a Igreja Católica frente aos desafios impostos pelo avanço do pluralismo religioso e cultural?

Luiz Benedetti - Robustecer a Igreja num mundo de pluralismo religioso e cultural significa, antes de mais nada, preparar quadros qualificados para o diálogo adulto e responsável. E isso só é possível em clima de liberdade. Quando esta desaparece, ou pior, cede lugar ao medo, instaura-se a mediocridade, cria-se um saber de manual, de repetição de fórmulas. Pior: alimenta-se a imagem da Igreja como praticante de uma espécie de polícia do pensamento tão a gosto da imprensa que explora à saciedade esta faceta. Aliás, nem sempre de maneira justa. Só que não se pode esquecer: livros proibidos provocam corrida às livrarias e seus autores adquirem respeito e guarida em centros de produção de pensamento, que prezam acima de tudo a competência e honestidade intelectuais. Por outro lado, não se pode esquecer que esse quadro de mediocrização se generaliza cada vez mais no ambiente acadêmico como um todo.

IHU On-Line - Como o campo religioso católico brasileiro se articula com o cenário internacional da Igreja? Qual a especificidade do catolicismo brasileiro?

Luiz Benedetti - O último censo diz tudo. A sensação, pessoal, e, por que não, o temor, é o de uma Igreja que caminha para a irrelevância social. Mais adaptada ao mundo (que combate) do que parece. Fixemo-nos num dado: a prática cultual. Um padre mostrou-me a assembleia reunida para a Eucaristia e comentou: somos cada vez mais a Igreja das cabeças brancas. Referia-se a faixa etária dos participantes. O catolicismo brasileiro, na realidade, são catolicismos. Se tomarmos o catolicismo “oficial” (na falta de outro termo) a esperança reside no profetismo, num catolicismo de resistência, o mesmo que assumiu o Vaticano II, combateu a ditadura e luta pelo direito dos pobres. Nas comunidades, pouco visíveis, mas capazes de uma solidariedade pequena, despojada, mas que faz frente ao individualismo contemporâneo. Quanto ao catolicismo popular: o pentecostalismo se alimenta dele. Os cientistas sociais se perguntam: não será ele, em suas formas novas, um catolicismo rural urbanizado?
 

IHU On-Line - Fazendo uma breve retrospectiva da diversidade e da unidade da Igreja Católica e de seus dilemas entre o início da década de 1960 e a década de 1990, como o senhor percebe a Igreja hoje, em comparação a este período? Qual o espaço que ocupam hoje, para os fiéis católicos, as três vertentes básicas da instituição: Templo, Praça e Coração?

Luiz Benedetti - Nos anos 1960 a unidade se dava em termos de uma pastoral planejada, de atuação colegiada dos bispos. Havia uma “vanguarda” episcopal, nomeada por D. Armando Lombardi, que buscou entre os padres que eram assistentes da Ação Católica, bispos capazes de dar um novo perfil ao episcopado, sensíveis à dinâmica histórica, aos problemas da realidade social em transformação, capazes, no dizer de um acadêmico, de aprender com os leigos e escapar ao mundo da formação seminarística (no seminário não se podia ler Jacques Maritain). A consagração dessa realidade pelo Concílio Vaticano II, dando à colegialidade episcopal um papel “sacramental” foi radicalmente alterada com a “ligação” direta bispo-papa, a colegialidade reduzida a um agregado “afetivo”, a obediência livre e responsável substituída pela submissão em todos os níveis da vida religiosa católica, os movimentos de caráter emocional-intimista, doutrinariamente fundamentalistas alteraram radicalmente o quadro de “utopias” em ação dos anos 1960. Mas é preciso acrescentar. Nos anos 1960, as Igrejas oriundas da Reforma viviam a mesma efervescência. E se alimentavam umas às outras. As produções do Conselho Mundial de Igrejas eram lidas por nós. Hoje o mesmo processo ocorre ao inverso:
Templo: poucos jovens, rituais que seduzem menos pelo mistério e pela Palavra que pela pompa vazia e mentalidade rubricista.

Praça: os leigos estão no mundo, lugar de exercício de sua vocação batismal? Os ministérios leigos não representam uma saída para o verdadeiro problema que é a busca de novas formas de exercício do sacerdócio ministerial? Por isso mesmo, no momento não estão na praça. São clericalizados.
Coração: não se vê um horizonte favorável aos movimentos de caráter emocional. Há uma sensação, apenas uma sensação, de esgotamento. Mesmo porque são incapazes de agir sobre a sociedade em que surgiram e transformar a Igreja que lhes deu força. E mais: o forte componente emocional tende a se esgotar rapidamente e não deixar nada no seu lugar.


IHU On-Line - Qual o sentido do fundamentalismo religioso contemporâneo? Como ele se relaciona (e talvez se justifica) com outros fenômenos de nosso tempo?

Luiz Benedetti - Há que se escapar de uma visão que o vincula estreitamente às suas origens, fundadas na reação ao evangelismo liberal, à recusa de uma hermenêutica “moderna” na compreensão da Palavra de Deus. Ele é bem mais que isso. É uma atitude de vida, um modo de ser no mundo. Nesse sentido ele se apresenta como adesão irrestrita a um Grande Texto, assumido literalmente. Pode ser a Bíblia, o Alcorão, a própria Constituição de um país (um fundamentalismo tipicamente americano, no dizer de Agnes Heller). Apresenta-se como um modo de fazer frente a uma desordem e fragmentação internas, provocadas pela subjetivação intimista que faz do gosto pessoal o critério último da consciência moral. Mas é preciso perguntar: será que a sociedade recusa os parâmetros que a Igreja prega? Ela precisa deles e os solicita. O que ela recusa é a imposição pela violência – simbólica ou física. Mesmo porque esses parâmetros são funcionais. Eles delimitam o campo da ação “legítima” e, nesse sentido, “situam” num mapa significativo indivíduos e grupos. Os indivíduos sabem o que é certo ou errado. E isso traz segurança. Impede que sejamos, na expressão de Berger, “homeless mind” (um mundo sem lar). O que, em absoluto, não quer dizer que se norteiem pelos parâmetros propostos. Uma demonstração de que a sociedade não recusa verdades está na aceitação e difusão ampla da literatura de autoajuda, um tipo de guia que traz pronto um mundo no qual não é preciso pensar, refletir, escolher, decidir. A autoajuda dispensa o discernimento e a escolha. Responde ao homem moderno cuja angústia é ter que escolher.

''Mahony em Roma? Ele que veja com a sua consciência'', diz bispo


 

Dom Charles Scicluna, nos últimos dez anos e até poucas semanas atrás, foi o promotor do tribunal da Doutrina da Fé. Ninguém melhor do que para dizer se têm razão aqueles que pedem que o cardeal arcebispo emérito de Los Angeles, Roger Mahony, não participe do conclave por causa das acusações de não ter denunciado no passado diversos casos de pedofilia no clero, ou não.

A reportagem é de Paolo Rodari, publicada no jornal La Repubblica, 20-02-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto [Unisinos, 21.2.2013].

No seu escritório dentro do palácio do ex-Santo Ofício, durante anos, Scicluna examinou arquivos em níveis muito explosivos, não só os casos de pedofilia nas dioceses norte-americanas, mas também a vida dupla de Maciel Degollado, fundador dos Legionários de Cristo, até as personalidades limítrofes do padre Lawrence Murphy, abusador em um instituto de crianças surdas em Milwaukee, e muitos outros.

Eis a entrevista.

Dom Scicluna, quem é Mahony?

Um cardeal muito humilde, que não conseguiu frear os casos de pedofilia na sua diocese como seria justo.

O senhor já se encontrou com ele?

Diversas vezes, reservadamente, no meu escritório, tanto nos anos do prefeito Joseph Ratzinger, quanto nos de William Joseph Levada. Ele vinha pedir ajuda, conselhos sobre como agir.

Sobre o que vocês falavam?

Era depois de 2002, o ano em que os bispos norte-americanos reunidos em Dallas decidiram pela primeira vez inaugurar a linha de "tolerância zero" contra a pedofilia. Mahony, como todos os bispos, tentava entender como se comportar depois de anos em que a Igreja não agira corretamente.

O senhor está dizendo que, antes de 2002, os bispos norte-americanos encobriam os pedófilos?

Não havia linhas claras, principalmente em nível diocesano. Cada um agia como podia, e, infelizmente, em alguns casos, Mahony errou. O seu erro não foi só o de não ter sabido extirpar a raiz do problema da pedofilia. Mas também que, quando se conta de que o fenômeno havia se deflagrado na diocese, ele publicou os nomes de todos os padres acusados.

Ele não fez bem?

Não, porque uma coisa é comunicar os nomes dos culpados, outra é comunicar os nomes daqueles que são suspeitos de sê-lo. Entre os acusados ele também colocou a si mesmo, porque dois monsenhores do Vaticano haviam suspeitado dele. Francamente, pareceu-me demais.

Ele entrará no conclave?

Acredito que sim, mas em todo caso ele decidirá em consciência o que fazer. Não é uma situação fácil para ele. Nas últimas semanas, ele teve uma discussão com o seu antecessor, José Gomez, que pressionou para destituí-lo de todo cargo, a quem Mahony lembrou que sempre aceitou no passado o seu modo de agir. Não foi um bom exemplo, e acredito que essas polêmicas contribuíra para agitá-lo.

Ratzinger sempre foi informado sobre Mahony e os casos de pedofilia?

Sempre, certamente. E lutou para limpar, para agir pelo bem das vítimas. Mas não se trata apenas de crimes contra o sexto mandamento, mas também da arrogância e da falta de humildade e pobreza que às vezes caracteriza o modo de ser dos ministros de Deus.

Ratzinger também sabia do padre Maciel?

Em 2004, Maciel festejou na Basílica de São Paulo Fora dos Muros os 60 anos de sacerdócio. Toda a Cúria Romana foi, incluindo bispos e cardeais. O único que ficou em casa foi Ratzinger, então prefeito da Doutrina da Fé. Ele sabia bem, de fato, quem ele tinha na frente, tanto é que, um mês depois, ele deu oficialmente o pontapé inicial na investigação vaticano contra ele. Foi um sofrimento enorme para ele, porque ele estava bem ciente de quanta consideração Maciel gozava na Cúria Romana. Mas ele agiu indo contra a corrente por amor à verdade. Mas gostaria de dizer outra coisa.

Sim?

A política de Ratzinger foi a de limpar a Igreja da sujeira, mas também de usar misericórdia. Ele sempre teve a consciência, como São Paulo, que os homens de Deus guardam um tesouro em vasos de barro. A imagem mais forte à qual ele tentou se referir foi a visão tida por Santa Hildegard de Bingen, a místico e naturalista alemã que viveu no século XII. Ela viu uma mulher belíssima, cujo vestido, porém, estava rasgado, dilacerado por causa dos sacerdotes, dos seus pecados. Essa mulher é a Igreja Católica, manchada pelos pecados dos padres, mas, apesar de tudo, bela, desejável, um lugar onde qualquer pessoa que erra sempre pode recomeçar, um lugar de misericórdia. [...]

 

O decano e o camerlengo: as duas Igrejas de Sodano e Bertone


 
Nos primeiros meses como secretário de Estado, o cardeal Tarcisio Bertone (Romano Canavese, 1934) se assomava de vez em quando ao apartamento a ele reservado ao lado dos seus escritórios, no primeiro andar, sob os afrescos de Rafael. Todas as vezes, fumaça preta: o apartamento ainda estava ocupado. O antecessor, cardeal Angelo Sodano (Isola D'Asti, 1927), ainda não havia ido embora. Assim, Bertone se resignava a subir ao seu alojamento provisório, na torre de São João.
 


A reportagem é de Aldo Cazzullo, publicada no jornal Corriere della Sera, 13-02-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Hoje, dois homens que não se amam se encontram regendo a Igreja em uma transição muito delicada, sem precedentes no mundo moderno, com um papa a ser eleito e outro ainda em vida, e com o conclave mais numeroso da história – 117 cardeais –, mas sem uma figura hegemônica. Não são homens do futuro. Sodano regeu o governo vaticano na segunda parte da era de João Paulo II; Bertone exerceu a mesma função no atribulado pontificado de Bento XVI. Agora são chamados à última missão: um como decano do Sacro Colégio; outro, como camerlengo.

Sodano terá o papel que, após a morte de Wotjyla, coube a Ratzinger: servir de catalisador das ansiedades e das esperanças dos cardeais, ser o seu confidente e o seu guia, e celebrar a missa "Pro Eligendo Romano Pontifice", em que Ratzinger proferiu a histórica homilia contra o relativismo, antes de conduzir os purpurados ao conclave.

Mas Sodano não irá ao conclave, tendo superado os 80 anos. Ao contrário, Bertone irá. Que, como camerlengo, convocará os cardeais a Roma, presidirá as três ou mais reuniões preparatórias do Conselho, identificará os relatores que apresentarão a situação da Igreja, incluindo aquele que terá a tarefa particularmente delicada de falar aos colegas sobre a situação financeira.

Tanto Sodano quanto Bertone são do Piemonte. E os piemonteses não se tornam papas. Nenhum, em 2.000 anos (haveria Pio V, o papa de Lepanto, nascido em Bosco Marengo, que hoje é província de Alessandria, mas à época fazia parte do Ducado de Milão). Sodano, no entanto, teve um papel no conclave de 2005, enfileirando os cardeais da Cúria ao lado de Ratzinger, que o manteve por mais de um ano no mesmo posto, antes da (lenta) passagem de consignas.

E Bertone terá o que dizer no próximo conclave vindouro. Não é verdade que a renúncia repentina o deslocou. O papa, assim, se isentou das pressões que vinham de fora e de dentro do Vaticano para que substituísse o secretário de Estado. E evitou que fosse cortado do conclave, como aconteceria em menos de dois anos. Bertone tem poucas possibilidades de se tornar papa. Ele tem muitas possibilidades de impedir que um homem de quem ele não gosta se torne papa.

Sodano não gostou quando Bertone substituiu rapidamente os seus homens, para além da lógica normal da alternância. O novo secretário de Estado tomou posse no dia 15 de setembro, e no fim de outubro removeu Castrillón Hoyos da lidernça da Congregação para o Clero. Sete meses depois, o substituto de Sodano, Leonardo Sandri, tornou-se prefeito da Congregação para as Igrejas Orientais, com uma promoção interpretada como uma remoção.

As relações entre Bertone e Giovanni Battista Re, prefeito da Congregação para os Bispos, também não são fáceis: o poderoso prelado da Bréscia foi substituído pelo canadense Ouellet, hoje na linha da frente entre os papáveis. O início do governo de Bertone foi manchado por um evento que, nas crônicas dessa segunda-feira, não foi lembrado, mas no passado foi usado contra ele no Vaticano: o novo arcebispo de Varsóvia, Stanislaw Wielgus, foi forçado a renunciar no mesmo dia da sua posse, depois de ter confessado que havia sido um informante do regime comunista polonês, nos mesmos anos em que o cardeal Wojtyla era vigiado pela polícia política.

Desastrosa também foi a gestão da paz com os lefebvrianos, incluindo o antissemita Williamson. Mas a acusação mais grave que os homens de Sodano movem contra a temporada de Bertone diz respeito ao IOR: o papa fez a escolha da transparência justamente enquanto o Banco do Vaticano estava envolvido nas duas investigações mais incandescentes abertas pela magistratura italiana, sobre Finmeccanica [segundo maior grupo industrial da Itália] e sobre a aquisição do Antonveneta [9º maior banco da Itália] (não por acaso, nessa segunda-feira à noite, na recepção na embaixada junto à Santa Sé, Bertone assegurava que não existem no IOR contas referentes ao caso Antonveneta-MPS).

Dom Viganò é um homem crescido com Sodano. Ele escreveu ao papa quando descobriu que Bertone pretendia removê-lo do governatorato do Vaticano para mandá-lo para os Estados Unidos. Enquanto isso, o prelado do IOR, Piero Pioppo, durante muito tempo secretário de Sodano, foi transferido para o Camarões. Quanto a Pietro Parolin, que Sodano havia nomeado como subsecretário para as Relações com os Estados, foi enviado para a Venezuela.

Seria um erro, porém, pensar em uma relação deteriorada e áspera no plano pessoal. No Vaticano, não seria possível, muito menos em uma fase histórica como a que estamos vivendo. Os dois cardeais se respeitam e, às vezes, também estiveram do mesmo lado: como quando o papa convocou o seu pupilo Schönborn, réu por ter criticado a expressão – "fofocas" – com a qual o decano havia rotulado a ressonância midiática sobre o escândalo da pedofilia; o arcebispo de Viena encontrou no escritório papal tanto Bertone quanto Sodano e foi forçado a fazer um pedido de desculpas público.

A verdadeira diferença entre os dois, além do caráter, está na biografia e no estilo.

Sodano vem da escola da diplomacia vaticana. Estudou na Gregoriana e na Lateranense, trabalhou nas nunciaturas do Equador e do Uruguai, em 1968 Casaroli o chamou para a Secretaria de Estado e lhe confiou dossiês delicadíssimos com os países do Leste, como a libertação do cardeal Mindszenty das prisões húngaras. Dez anos depois, quando foi núncio no Chile de Pinochet, não evitou as inevitáveis polêmicas, mas saiu ileso.

Bertone não é um diplomata. É um salesiano. Formou-se em Turim, entre o lendário oratório Valdocco, o de Dom Bosco, e o liceu Valsalice, onde jogava futebol como zagueiro, amadurecendo a fé juventina. Acredita nas obras e na atividade, às vezes degenerada – segundo os críticos – em ativismo. É mais impetuoso do que delicado, mais sem escrúpulos do que prudente.

Sodano saía com um único carro de escolta; Bertone se move com a gendarmeria vaticana atrás. Sodano sempre se manteve distante do trabalho de Ruini na presidência da CEI [Conferência Episcopal Italiana]; Bertone escreveu para Bagnasco reivindicando para si as relações com o Estado italiano (mesmo que o novo chefe dos bispos logo tenha conquistado a própria autonomia).

Segundo a velha escola diplomática, a coroa sempre era protegida, ad effusionem sanguinis, como Sodano gosta de repetir: até o derramamento do próprio sangue. Bertone é acusado de ter forçado o papa a se expor para remediar os seus erros. É verdade, porém, que nunca lhe faltou o apoio do papa. De 1995 a 2003, Bertone foi secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, da qual Ratzinger era prefeito.

Nos últimos tempos, quando Bento XVI aparecia em público na sua fragilidade, ele sempre procurava com os olhos o secretário de Estado na primeira fila, e quando cruzava o olhar com ele se sentia mais seguro. No fim, ao invés de removê-lo, preferiu ele mesmo ir embora.