1. Os fatos
No
dia 16 de julho de 2012, LUÍS INÁCIO LUCENA ADAMS, Advogado Geral da União,
assinou a Portaria n° 303, que ataca diretamente os Povos Indígenas, suas
terras e a Fundação Nacional do Índio.
A
Portaria segue as Condicionantes do Supremo Tribunal Federal no processo da
Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Apesar do próprio STF já ter negado
qualquer ligação entre este processo e as demais Terras Indígenas do Brasil,
algo levou a AGU a fundi-los.
Em
23 de maio de 2012, o ministro do STF Ricardo Lewandowski negou seguimento à
Reclamação (RCL) 13769, na qual o Município de Amarante do Maranhão alegou que
a sentença proferida pelo Juízo da 20ª Vara Federal da Seção Judiciária do
Distrito Federal, em mandado de segurança impetrado pelo município maranhense,
teria desrespeitado a decisão do STF no processo envolvendo a Terra Indígena
Raposa Serra do Sol (PET 3388/RR). Segundo o ministro Ricardo Lewandowski, no
caso Raposa Serra do Sol, o Plenário do STF declarou especificamente a
constitucionalidade da demarcação contínua da Terra Indígena e de seu
respectivo procedimento administrativo-demarcatório, desde que observadas 19
condições ou salvaguardas institucionais para conferir maior teor de
operacionalidade ao acordão. Tal decisão não tem efeito vinculante, segundo
esclareceu.
O
que ocorre com o Brasil neste momento? Já ouvimos argumentos de que o Brasil
precisa crescer economicamente e, por isso, necessita de desenvolvimento:
hidrelétricas, rodovias, ferrovias, linhas de transmissão. O incômodo declarado
pelo Governo Federal, por meio da imprensa, é a presença indígena nos locais de
obras do PAC e PAC2, apontando as Terras Indígenas, como a Funai, alvos de
tentativas de aceleração do processo de licenciamento de obras.
Os
primeiros ataques foram as Portarias Interministeriais 420 a 424, que estabelecem
prazos para a Funai se posicionar frente aos Estudos de Impactos, sendo
automaticamente aprovados, caso a Funai não responda no prazo. Mas ninguém
lembrou que a Funai possui apenas 16 servidores assoberbados de processos para
trabalhar em todo Brasil com licenciamentos de todas as obras de significativo
impacto, quando precisaria de 350, no mínimo para equiparar-se ao Ibama.
Agora,
com esta Portaria 303 da AGU, ficou estabelecido mais um ponto delicado para os
indígenas. A AGU passa por cima de muitos estudos antropológicos, complexidades
acadêmicas, e define o que é “usufruto” indígena de suas terras. A quem
interessa esta Portaria? Foi feita as pressas? Leiamos o texto na íntegra.
[fonte: da postagem de Nuno Nunes]
2. A Portaria
ADVOCACIA-GERAL
DA UNIÃO
PORTARIA
No- 303, DE 16 DE JULHO DE 2012
Dispõe sobre as
salvaguardas institucionais às terras indígenas conforme entendimento fixado
pelo Supremo Tribunal Federal na Petição 3.388 RR.
O ADVOGADO-GERAL DA
UNIÃO, no uso das atribuições que lhe conferem o art. 87, parágrafo único,
inciso II, da Constituição Federal e o art. 4º, incisos X e XVIII, da Lei
Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, e considerando a necessidade de
normatizar a atuação das unidades da Advocacia-Geral da União em relação às
salvaguardas institucionais às terras indígenas, nos termos do entendimento
fixado pelo Supremo Tribunal Federal na Petição 3.388-Roraima (caso Raposa
Serra do Sol), cujo alcance já foi esclarecido por intermédio do PARECER
nº153/2010/DENOR/CGU/AGU, devidamente aprovado, resolve:
Art. 1º. Fixar a
interpretação das salvaguardas às terras indígenas, a ser uniformemente seguida
pelos órgãos jurídicos da Administração Pública Federal direta e indireta,
determinando que se observe o decidido pelo STF na Pet. 3.888-Roraima, na forma
das condicionantes abaixo:
“(I) o usufruto das
riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas (art.
231, § 2º, da Constituição Federal) pode ser relativizado sempre que houver,
como dispõe o art. 231, 6º, da Constituição, relevante interesse público da
União, na forma de lei complementar”.
“(II) o usufruto dos
índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais
energéticos, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional”.
“(III) o usufruto dos
índios não abrange a pesquisa e lavra das riquezas minerais, que dependerá
sempre de autorização do Congresso Nacional assegurando-lhes a participação nos
resultados da lavra, na forma da Lei”.
“(IV) o usufruto dos
índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, devendo, se for o caso, ser
obtida a permissão de lavra garimpeira”.
“(V) o usufruto dos
índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional; a
instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções
militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas
energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho
estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho
de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às
comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI”.
“(VI) a atuação das
Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas
atribuições, fica assegurada e se dará independentemente de consulta às
comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI”.
“(VII) o usufruto dos
índios não impede a instalação, pela União Federal, de equipamentos públicos,
redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções
necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de
saúde e educação”.
“(VIII) o usufruto
dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a
responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade”.
“(IX) o Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da
área da unidade de conservação também afetada pela terra indígena com a
participação das comunidades indígenas, que deverão ser ouvidas, levando-se em
conta os usos, tradições e costumes dos indígenas, podendo para tanto contar com
a consultoria da FUNAI”.
“(X) o trânsito de
visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à
unidade de conservação nos horários e condições estipulados pelo Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade”.
“(XI) devem ser
admitidos o ingresso, o trânsito e a permanência de não-índios no restante da
área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela FUNAI”.
“(XII) o ingresso, o
trânsito e a permanência de não-índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer
tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas”.
“(XIII) a cobrança de
tarifas ou quantias de qualquer natureza também não poderá incidir ou ser
exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de
transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações
colocadas a serviço do público, tenham sido excluídos expressamente da
homologação, ou não”.
“(XIV) as terras
indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio
jurídico que restrinja o pleno exercício do usufruto e da posse direta pela
comunidade indígena ou pelos índios (art. 231, § 2º, Constituição Federal c/c
art. 18, caput, Lei nº 6.001/1973)”.
“(XV) é vedada, nas
terras indígenas, a qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades
indígenas, a prática de caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de
atividade agropecuária ou extrativa (art. 231, § 2º, Constituição Federal, c/c
art. 18, § 1º. Lei nº 6.001/1973)”.
“(XVI) as terras sob
ocupação e posse dos grupos e das comunidades indígenas, o usufruto exclusivo
das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas,
observado o disposto nos arts. 49, XVI e 231, § 3º, da CR/88, bem como a renda
indígena (art. 43 da Lei nº 6.001/1973), gozam de plena imunidade tributária,
não cabendo à cobrança de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns
e ou outros”.
“(XVII) é vedada a
ampliação da terra indígena já demarcada”.
“(XVIII) os direitos
dos índios relacionados às suas terras são imprescritíveis e estas são
inalienáveis e indisponíveis (art. 231,§ 4º, CR/88)”.
“(XIX) é assegurada a
participação dos entes federados no procedimento administrativo de demarcação
das terras indígenas, encravadas em seus territórios, observada a fase em que
se encontrar o procedimento”.
Art. 2º. Os
procedimentos em curso que estejam em desacordo com as condicionantes indicadas
no art. 1º serão revistos no prazo de cento e vinte dias, contado da data da
publicação desta Portaria.
Art. 3º. Os procedimentos
finalizados serão revisados e adequados a presente Portaria.
Art. 4º. O
procedimento relativo à condicionante XVII, no que se refere à vedação de
ampliação de terra indígena mediante revisão de demarcação concluída, não se
aplica aos casos de vício insanável ou de nulidade absoluta.
Art. 5°. O
procedimento relativo à condicionante XIX é aquele fixado por portaria do
Ministro de Estado da Justiça.
Art. 6º. Esta
Portaria entra em vigor na data de sua publicação.
LUÍS INÁCIO
LUCENA ADAMS
3. Protesto da Funai
Nota técnica da Funai sobre a
Portaria nº 303/12 da AGU
A
Fundação Nacional do Índio – Funai, órgão federal responsável pela coordenação
da política indigenista do Estado brasileiro, vem a público manifestar sua
contrariedade à edição da Portaria n.º 303, de 16 de julho de 2012, que “fixa a
interpretação das salvaguardas às terras indígenas, a ser uniformemente seguida
pelos órgãos jurídicos da Administração Pública Federal direta e indireta,
determinando que se observe o decidido pelo STF na Pet. 3.388-Roraima, na forma
das condicionantes”.
Entendemos
que a medida restringe o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas,
especialmente os direitos territoriais, consagrados pela Constituição Federal,
ao adotar como parâmetro decisão não definitiva do Supremo Tribunal Federal
para uniformizar a atuação das unidades da Advocacia-Geral da União.
O
julgamento da Petição 3.388-Roraima (referente ao caso da Terra Indígena Raposa
Serra do Sol) ainda não foi encerrado, tendo em vista a existência de embargos
de declaração pendentes de decisão junto à Corte Suprema, os quais visam
esclarecer a interpretação e os efeitos atribuídos às condicionantes
estabelecidas na decisão do caso mencionado.
Além
disso, o próprio Supremo já se manifestou no sentido de que a decisão proferida
no caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol não possui efeito vinculante para
os demais processos envolvendo a demarcação de terras indígenas, conforme
consta nas Reclamações 8.070 e 13.769.
A
uniformização da atuação das unidades da Advocacia-Geral da União em relação
aos processo envolvendo a demarcação de terras indígenas deve ser embasada em
decisões definitivas do Supremo Tribunal Federal, sob pena de aumentar a
insegurança jurídica e, principalmente, colocar em risco os direitos garantidos
constitucionalmente às comunidades indígenas.
Por
essas razões, é imprescindível a revisão dos termos da Portaria nº 303, de 16
de julho de 2012.
Fundação
Nacional do Índio
Brasília, 20 de julho, de 2012
4. COIAB exige
imediata revogação da
Portaria
A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira-COIAB,
vem de público exigir a imediata revogação da Portaria 303 da Advocacia Geral
da União (AGU) que orienta os órgãos do governo federal a aplicar as
condicionantes decididas pelo Supremo Tribunal Federal na demarcação da TI
Raposa Serra do Sol/RR, para todas as terras indígenas do país. Somente a
SUSPENSÃO dos efeitos como anunciado, não é suficiente. Exigimos sua revogação.
De forma arbitrária, essa Portaria antecipa a decisão final do Supremo
Tribunal Federal sobre o caso e estabelece seu efeito vinculante as demais
terras indígenas, expressamente negado recentemente pelo Ministro Ricardo
Lewandowski, numa Reclamação do Município de Amarante/MA contra portarias da
Funai.
A Portaria, o que é ainda mais grave, questiona a validade de tudo o
que já foi feito em relação à demarcação das terras indígenas. Isso quer dizer
que inclusive as terras já demarcadas, poderiam ser revistas. Ela atende assim
plenamente as expectativas dos grileiros de se apossarem definitivamente das
terras indígenas.
A inciativa da AGU rasga todas as letras da Carta Magna do país e com
ela os direitos indígenas reconhecidos pela Constituição Federal e pela
Convenção 169 da OIT e afronta a memória das numerosas lideranças indígenas
mortas pelo latifúndio, que entregaram a vida para assegurar a terra sagrada
para o futuro de seus povos. Com as incertezas levantadas sobre a legalidade da
demarcação das terras indígenas estimula irresponsavelmente uma nova onda de
violência contra os povos indígenas.
Essa portaria faz parte de uma série de iniciativas, tomadas no âmbito
do Executivo e do Legislativo que visam desconstruir os direitos dos povos
indígenas, das comunidades tradicionais e da natureza, a exemplo das Portarias
Interministeriais 420 a 424, que estabelecem prazos irrisórios para a Funai se
posicionar frente aos Estudos de Impactos e licenciamento de obras, da mudança
do Código Florestal para facilitar a exploração da natureza e da PEC 215 para
inviabilizar a demarcação das terras indígenas. A finalidade é remover os
chamados obstáculos ao desenvolvimento, com a incorporação de novas terras para
o agronegócio e facilitar o acesso e a super exploração dos recursos naturais.
As terras indígenas e a luta dos povos indígenas para manterem seus
projetos próprios de vida resistem contra essa perspectiva insustentável do
ponto de vista social e ambiental. Na região sul da Amazônia, por exemplo, é
facilmente percebível como as terras indígenas aparecem como verdadeiros oásis
verdes em meio a terra arrasada pelo latifúndio, sem florestas e sem gente.
A luta pela revogação da Portaria 303, contra a PEC 215 e em defesa das
terras indígenas, por isso, não é só dos povos indígenas, mas de todos aqueles
que estão preocupados em assegurar condições dignas de vida para as futuras
gerações.
Manaus, 24 de julho de 2012.
Coordenação das Organizações Indígenas – COIAB
5. A indignação do Cimi
O Conselho Indigenista Missionário, Cimi, considera a Portaria 308/2012, publicada no Diário Oficial da União, neste dia 26 de julho, uma flagrante tentativa, por parte do governo brasileiro, de ludibriar a opinião pública e os próprios povos indígenas no Brasil.
Ao protelar a entrada em vigor da Portaria 303/2012 para o dia 24 de setembro de 2012, sob a justificativa de realização de “oitiva dos povos indígenas sobre o tema”, a Portaria 308/2012 mostra-se flagrantemente contraditória e impraticável.
Contraditória pelo fato de que, em tese, os indígenas seriam consultados sobre a possibilidade de ‘abrir mão’ do direito à consulta em casos de utilização de seus territórios para atender interesses governamentais e privados ainda que causem grandes danos para suas vidas.
Impraticável pelo fato de não existirem as mínimas condições de realização de um efetivo processo de “oitiva” - de acordo com o que determina a legislação em vigor, de modo a assegurar a realização da consulta “prévia, livre e informada” -, num prazo de 60 dias, com os cerca de 240 povos indígenas existentes no país.
O Cimi reitera que, diante da inquestionável ilegalidade e ilegitimidade da Portaria 303/2012, não resta outra alternativa digna, por parte do Governo brasileiro, senão a sua revogação imediata e definitiva.
O Cimi reafirma o compromisso de, junto com os povos indígenas, fazer uso de todos os meios jurídicos possíveis para demonstrar a ilegalidade da portaria 303/2012.
Brasília, DF, 26 de julho de 2012
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