Primeiro de Maio: Dia do trabalhador e do trabalho



Novos paradigmas de industrialização
exigem novos conceitos de justiça



Na fábrica moderna, quase tudo é automatizado e digital, graças à convergência de poderosas tecnologias, de software inteligente, novos materiais, milhares de computadores, robôs habilidosos, impressoras 3D, processos de realidade virtual e até simuladores de voo. É claro que, vez ou outra, podemos encontrar, como espécies em extinção, máquinas e ferramentas típicas da segunda revolução industrial, como furadeiras, prensas, lixadeiras, tornos e fresas convencionais. Para quem não tenha visitado fábricas modernas nos últimos anos, a visão de uma dessas indústrias do século XXI produz verdadeiro choque, em particular, na indústria automotiva e na aeronáutica.

Muitas fábricas modernas se assemelham a laboratórios de informática, pois a maioria dos operadores senta-se diante de telas de computadores. Um exemplo desse avanço são as impressoras 3D, máquinas que produzem não só joias, sapatos e fones de ouvido, mas também reproduzem peças de alta complexidade, controlado por computador.

Novos paradigmas

Novas técnicas permitem que a indústria produza objetos minúsculos com muito maior precisão e segurança. A nanotecnologia começa a participar do dia a dia da produção dos dispositivos mais avançados. Os novos materiais são mais leves, mais fortes e mais duráveis do que os antigos. A fibra de carbono está substituindo o aço e o alumínio numa gama de produtos que vai do avião às mountain bikes. [...]

Para onde vão os empregos eliminados nesse processo? Vão para as áreas de serviços, começando pelos mais sofisticados, como os de educação, pesquisa, projetos, controle de qualidade, saúde, entretenimento, artes, comunicações e os de cuidados pessoais.

Relembremos que a primeira revolução industrial começou na Inglaterra poucos anos depois da invenção da máquina a vapor, por James Watt, em 1760, com a mecanização da indústria têxtil e das bombas que retiravam água das minas de carvão. Já a segunda revolução industrial, no começo do século XX, foi marcada pela produção em massa, como na linha móvel de montagem de Henry Ford. [Ethevaldo Siqueira, O Estado de S. Paulo, 29-04-2012.]

As duas primeiras revoluções industriais tinham por objetivo usar a tecnologia para produzir produtos baratos e em grandes quantidades. A substituição do trabalho braçal, na primeira, e o desenvolvimento de sofisticadas estratégias gerenciais, na segunda, não visavam substituir trabalhadores por máquinas, uma vez que os trabalhadores desempenhavam papel central e indispensável no processo produtivo.


Revolução tecno-científica e biotecnológica

A Terceira Revolução Industrial ou Revolução Tecno-científica permitiu o desenvolvimento de atividades na indústria que aplicam tecnologias de ponta em todas as etapas produtivas. O impacto das novas tecnologias não se restringe apenas às indústrias, mas afeta as empresas comerciais, as prestadoras de serviços e, até mesmo, o cotidiano das pessoas comuns. A Terceira Revolução Industrial não se restringe a alguns países europeus, aos EUA e ao Japão, mas se espalha pelo mundo todo. É causa e, ao mesmo tempo, consequência da globalização.
Na fase contemporânea da Terceira Revolução Industrial, busca-se combinar as vantagens das produções artesanal e industrial, evitando o alto custo da primeira e a inflexibilidade da última. Com a aplicação das novas descobertas científicas no processo produtivo, ocorre a ascensão de atividades que empregam alta tecnologia. Como exemplos, temos a informática, que produz computadores e softwares; a microeletrônica, que fabrica chips, transistores e produtos eletrônicos; a robótica, que cria robôs para uso industrial; as telecomunicações, que viabilizam as transmissões de rádio e televisão, a telefonia fixa e móvel e a Internet; a indústria aeroespacial, que fabrica satélites artificiais e aviões; e a biotecnologia, que produz medicamentos, plantas e animais manipulados geneticamente.

Vale lembrar que, atualmente, o mundo ruma na direção da Quarta Revolução Industrial. Estamos ingressando numa revolução que mobiliza as ciências da vida, sob a forma da biotecnologia, assim como várias áreas das ciências exatas e de outros ramos do conhecimento, e que responde pelo nome de nanociência ou nanotecnologia [Ronaldo Decicino].

Dessolidarização

No mundo capitalista, a inserção de tecnologias promove uma dinamização produtiva, intensifica o trabalho, cria produtos e mercadorias de maior qualidade e, para concorrer em um mercado cada vez mais competitivo, gera diminuição de custos. Esse processo desencadeia uma enorme acumulação de capitais pelos donos dos meios de produção que posteriormente serão usados para realizar investimentos no desenvolvimento de novos produtos e na geração de inéditas tecnologias de ponta, sempre a serviço da indústria e da produção lucrativa. Flexibilização e terceirização como novas formas de gestão e organização do trabalho, inspiradas no toyotismo, muitas vezes, burlam a legislação trabalhista. Mas flexibilização e terceirização criaram também novas formas de dessolidarização “legal”, enriquecimento exorbitante de setores sociais privilegiados e exploração descontrolada de outros setores pela aceleração e precarização de determinados processos de produção. A solidariedade não dá conta da acumulação do capital. Exige justiça! 

Índio é retirado do STF após protesto. Não viu sua etnia contemplada com as cotas e chamou ministros de 'urubus'. Kafka explica.


A sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) foi suspensa (veja postagem anterior)  por cerca de 5 minutos nesta quinta-feira depois de um protesto de dois índios, que pediam a inclusão dos povos indígenas no sistema de cotas em julgamento. Ainda dentro do Plenário, o índio identificado como Araju Sepeti Guarani chamou os ministros do STF de "racistas" e "urubus". 
Durante o voto do ministro Luiz Fux, o presidente da Corte, Carlos Ayres Britto, tentou pedir calma aos manifestantes, mas Guarani e Carlos Pankararu acabaram sendo imobilizados e retirados à força por um grupo de seguranças do Tribunal. "Igualdade é negro, é cigano, é índio, são todos. Defendemos a cota para indígenas", disse Pankakaru. Genericamente, todos estariam de acordo.



Para a interpretação do protesto pode servir o conto de

Franz Kafka (1883-1924): Diante da Lei

Diante da lei está um porteiro. Um homem do campo chega a esse porteiro e pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O homem do campo reflete e depois pergunta se então não pode entrar mais tarde.
- É possível - diz o porteiro - mas agora não.
Uma vez que a porta da lei continua como sempre aberta e o porteiro se põe de lado, o homem se inclina para olhar o interior através da porta. Quando nota isso , o porteiro ri e diz:
- Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem: eu sou poderoso. E sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala porém existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso suportar a simples visão do terceiro.
O homem do campo não esperava tais dificuldades: a lei deve ser acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele; agora, no entanto, ao examinar mais de perto o porteiro, com o seu casaco de pele, o grande nariz pontudo, a longa barba tártara, rala e preta, ele decide que é melhor aguardar até receber a permissão de entrada. O porteiro lhe dá um banquinho e deixa-o sentar-se ao lado da porta.
Ali fica sentado dias e anos. Ele faz muitas tentativas para ser admitido e cansa o porteiro com os seus pedidos. Às vezes o porteiro submete o homem a pequenos interrogatórios, pergunta-lhe a respeito da sua terra natal e de muitas outras coisas, mas são perguntas indiferentes, como as que os grandes senhores fazem, e para concluir repete-lhe sempre que ainda não pode deixá-lo entrar. O homem, que havia se equipado com muitos objetos para a viagem, emprega tudo, por mais valioso que seja, para subornar o porteiro. Com efeito, este aceita tudo, mas sempre dizendo:
-Eu só aceito para você não julgar que deixou de fazer alguma coisa.
Durante todos esses anos, o homem observa o porteiro quase sem interrupção. Esquece os outros porteiros e este primeiro parece-lhe o único obstáculo para a entrada na lei. Nos primeiros anos , amaldiçoa-o em voz alta e lamenta pelo acaso infeliz; mais tarde, quando envelhece, apenas resmunga consigo mesmo. Torna-se infantil e uma vez que, por estudar o porteiro anos a fio, ficou conhecendo até as pulgas da sua gola de pele, pede a estas que o ajudem a fazê-lo mudar de opinião.
Finalmente sua vista enfraquece e ele não sabe se de fato está ficando mais escuro em torno ou se apenas os olhos o enganam. Não obstante reconhece agora no escuro um brilho que irrompe inextinguível da porta da lei. Mas já não tem mais muito tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências daquele tempo convergem na sua cabeça para uma pergunta que até então não havia feito ao porteiro. Faz-lhe um aceno para que se aproxime, pois não pode mais endireitar o corpo enrijecido. O porteiro precisa curvar-se profundamente até ele, já que a diferença de altura mudou muito em detrimento do homem:
-O que é que você ainda quer saber? pergunta o porteiro. Você é insaciável.
-Todos aspiram à lei - diz o homem. Como se explica que em tantos anos ninguém além de mim pediu para entrar?
O porteiro percebe que o homem já está no fim e para ainda alcançar sua audição em declínio ele berra:
-Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a.

STF decide por unanimidade que sistema de cotas é constitucional



O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu nesta quinta-feira (26.4.) por unanimidade que o sistema de cotas raciais em universidades é constitucional. A decisão não obriga nenhuma instituição a adotar o sistema. Atualmente, não existe lei que torne as cotas obrigatórias.
O julgamento tratou de uma ação proposta pelo DEM contra o sistema de cotas da UnB (Universidade de Brasília), que reserva 20% das vagas para autodeclarados negros e pardos. O presidente do STF, Carlos Ayres Britto, iniciou seu voto por volta das 19h30, antecipando que acompanha o voto do relator Ricardo Lewandowski. Ayres Britto disse durante o voto que os erros de uma geração podem ser revistos pela geração seguinte e é isto que está sendo feito. No dia anterior, o relator da matéria, o ministro Ricardo Lewandowski afirmou que o sistema de cotas em universidades cria um tratamento desigual com o objetivo de promover, no futuro, a igualdade. Para ele, a UnB cumpre os requisitos, pois definiu, em 2004, quando o sistema foi implantado, que ele seria revisto em dez anos. "A política de ação afirmativa deve durar o tempo necessário para corrigir as distorções."

Em nome do Ministério Público Federal, a vice-procuradora geral da República, Deborah Duprat (foto), disse, que não existe democracia racial no Brasil. “A abolição não significou a transformação da coisa em sujeito. Não precisamos de dados estatísticos, basta um olhar na composição dos cargos do alto escalão do Estado brasileiro ou nas grandes corporações e, na contrapartida, olhar para a população carcerária desse país e para quem é parado pela polícia nas cidades brasileiras”.
Os movimentos negro e indígena consideram a decisão do STF positiva. De acordo o fundador e coordenador da Educafro, frei Davi, a organização vai procurar fundamentação jurídica para pressionar as universidades. A Educafro é uma instituição que tem o objetivo de realizar a inclusão de negros em instituições públicas e privadas de ensino superior.

De regente a terceiro violinista (no telhado). Entrevista com Sérgio Coutinho


Pastoral de eventos ou pastoral evangelizadora?



 
“Enquanto cada vez mais a sociedade trabalha para encontrar formas mais participativas, inclusive propondo o debate por um Estado mais democrático, a Igreja deu pouquíssimos passos na direção de uma verdadeira sinodalidade”, constata o historiador Sérgio Coutinho em entrevista a IHU On-Line: (http://www.ihu.unisinos.br ). Coutinho é presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina (CEHILA-Brasil) e assessor nacional da Comissão Episcopal para o Laicato - CEBs.

Confira trechos da entrevista.

IHU - O ano de 2012 começou com uma novidade para a Igreja do Brasil: a indicação de Dom João Braz de Aviz ao cardinalato. O que essa nomeação indica em termos de conjuntura eclesial, tanto no Brasil como na Cúria?

Sérgio Coutinho - Este último Consistório revelou bem que a Cúria em nada é “católica”, ou seja, “universal”. O que assistimos foi uma chuva de nomeações de novos cardeais europeus e, principalmente, italianos, sendo que muitos deles são ainda membros da própria Cúria Romana. No momento em que é noticiado, pela imprensa, o cotidiano das intrigas curiais (conhecido por "Vatileaks"), o Papa Bento XVI não teve a força política necessária para “esvaziar” o poder dos chefes dos diversos dicastérios e que, em certo sentido, são eles mesmos os que tramam em segredo (agora não mais, depois do vazamento dos documentos) por sua saída e, até mesmo, por sua morte (!). [...]

Além disso, a nomeação de D. João Braz Avis também revela uma tendência eclesial, já sentida desde o pontificado de João Paulo II: a força dos movimentos e das novas comunidades. Dom João nada entende de “Vida Religiosa consagrada” (dicastério do qual é reponsável), mas é membro do Focolares. Isso nos indica que o Vaticano deseja mesmo é valorizar as “novas formas” de vida religiosa consagrada e, nesse sentido, um membro desses movimentos dentro da cúria romana, e ainda mais como cardeal, terá um peso inegável no próximo conclave. [...]

IHU - Outra novidade recente é que D. Lorenzo Baldisseri, núncio apostólico no Brasil, foi recentemente nomeado novo secretário da Congregação para os Bispos. Seu substituto já foi anunciado. Qual a importância desse cargo na atual conjuntura da Igreja brasileira?

S.C. - Para o caso da Igreja brasileira, não podemos nos esquecer do trabalho importante de D. Armando Lombardi na colaboração e indicação do episcopado brasileiro no período imediatamente anterior e posterior ao Concílio Ecumênico Vaticano II. O resultado foi uma geração de bispos excepcional e que levará muitos anos para se repetir algo semelhante. Um quadro episcopal que levou a cabo as intuições e determinações desse Concílio, fazendo da Igreja do Brasil uma das que mais criativamente trabalhou na sua recepção, sendo inclusive vista por Roma como uma Igreja “rebelde” em muitas vezes.

Dom Baldisseri, seguindo seus sucessores e a política eclesial de “concentração católica” (Danielle Hervieu-Leger) iniciada pelo Papa João Paulo II, e aprofundada por Bento XVI, procurou escolher candidatos não tanto por sua formação teológica, mas por sua fidelidade ao projeto de fortalecer a “identidade católica” diante de uma sociedade cada vez mais secularizada e relativizada. [...]

IHU - 2012 também será o grande ano de preparação para a Jornada Mundial da Juventude - JMJ, no Rio de Janeiro, com a presença do papa, em julho de 2013. O que espera desse encontro? Por outro lado, como analisa os primeiros passos da organização?

S.C. - Do ponto de vista da organização, parece que as coisas vão indo dentro do cronograma estipulado. Como também vemos uma boa participação da juventude católica na recepção da Cruz e do Ícone. No entanto, ainda não conseguimos visualizar os resultados propriamente pastorais ou de evangelização de todo esse processo. Não se vê (ou se viu) nada que enfrentasse de forma aberta e corajosa os grandes desafios da juventude atualmente: desemprego, violência, exploração... nada se fala sobre a falta de políticas públicas voltadas para a juventude. Alguns dizem que a Campanha da Fraternidade de 2013 provocará essas questões. Espero que sim.

Mas o que podemos concluir já de imediato com a preparação desse evento é aquela mesma impressão que tenho da escolha de D. João Aviz: a presença majoritária, e até dominante, nos encaminhamentos da JMJ dos movimentos e novas comunidades, em detrimento dos grupos das Pastorais da Juventude (Pastoral da Juventude, Pastoral da Juventude Rural, Pastoral da Juventude Estudantil e Pastoral da Juventude do Meio Popular). A questão é se queremos uma pastoral de massa, de eventos, ou uma pastoral verdadeiramente evangelizadora. Vamos acompanhar melhor os próximos passos.

IHU - Além disso, 2012 será um ano de duas grandes celebrações: os 50 anos da inauguração do Concílio Vaticano II e os 40 anos da publicação do livro Teologia da Libertação. Perspectivas, de Gustavo Gutiérrez. Começando pelo Concílio, no contexto brasileiro, o que é necessário retomar com mais força depois desses 50 anos dos debates conciliares e o que ficou “esquecido”? Por outro lado, onde é preciso “reatualizar” o Concílio para o momento atual da Igreja no Brasil?

S.C. - Parece-me que uma temática conciliar que necessitaria aprofundar é o da “horizontalidade” na Igreja. [...]. “Comunhão e participação” foi a compreensão dos bispos nas conferências de Medellín e Puebla da eclesiologia conciliar de “povo de Deus”. Foi também a compreensão dos bispos da CNBB no momento de recepção do Concílio. Foi por isso mesmo que, aqui, desenvolvemos e aprofundamos uma série de instâncias participativas, mesmo em contextos políticos de pouquíssima ou nenhuma participação democrática. Assembleias gerais do episcopado, assembleias diocesanas, paroquiais, comunitárias, assembleias dos organismos, conselhos pastorais diversos, equipes de liturgia, ministérios laicais. Enfim, uma série de práticas que favoreciam a participação e a “opinião pública” dentro da Igreja.

O que assistimos nos últimos 25 anos foi um processo cada vez mais exacerbado de “clericalização”, ou de “verticalização” na Igreja. O estudo de Direito Canônico passou a ser o carro chefe da formação dos futuros presbitérios, mesmo os de Institutos Religiosos. Isso significa que se vêm enfatizando muito mais a obediência às rubricas e normas eclesiásticas do que propriamente na construção de caminhos de evangelização. Conselhos paroquiais cada vez mais centralizados e cumprindo papel meramente figurativo, marcadamente consultivo. Quando for deliberativo, cumpre a função dos membros apenas apertar a tecla de “confirmar” o que pensa o padre.

Desse modo, os institutos de formação presbiteral insistem numa formação para o exercício do culto e para o exercício do poder administrativo-burocrático-canônico, em detrimento do evangelizador-pastoral. [...] O que temos são jovens presbíteros com forte formação estético-disciplinar e pouco ético-pastoral. E é justamente neste nó que passam os conflitos com o laicato, cada vez mais desejoso de participar da vida eclesial, e das muitas propostas pastorais diocesanas, e até das iniciativas da CNBB, que ficam emperradas por “pequenos príncipes” mais parecidos com o de Nicolau Maquiavel do que de Saint-Exupéry. [...]

IHU - Com relação à Teologia da Libertação - TdL, o Brasil desponta como um dos seus principais “polos produtores” de reflexão e publicações, com grandes teólogos relevantes nesse debate. Como o senhor vê o papel da TdL no contexto eclesial brasileiro contemporâneo? O discurso está defasado, ainda pensando com categorias sociopolíticas do contexto das ditaduras? Ou há novas perspectivas sendo desbravadas?

S.C. - Independentemente do contexto histórico latino-americano geral e brasileiro, em particular, a TdL centra toda a sua energia reflexiva e, principalmente, prática em dois polos: os pobres e o Reinado de Deus.

Os pobres são o “lugar teológico”. Onde houver pobres, onde houver seres humanos que não tenham “vida e vida em abundância”, Deus estará se revelando, colocando-se ao lado deles por meio de homens e mulheres que denunciarão o “pecado social” que ainda teima em ceifar a vida de muitos dos “pequeninos”. Nesse sentido, a TdL ainda tem muito a contribuir não só num “discurso sobre Deus”, mas principalmente sensibilizando os cristãos para dar testemunho daquilo pelo qual Jesus deu sua vida: o Reinado de Deus.

Há uma relação direta entre o Reino e os pobres, pois é deles que pertence “o governo soberano de Deus”. O Reinado de Deus é um reinado de justiça, misericórdia, paz e de vida plena. Este foi o sonho de Jesus e deve ser o sonho de todos e todas que se dizem seus discípulos (as): lutar para a construção de uma sociedade justa e fraterna, no campo e na cidade, e, de modo especial, para os pobres.

IHU - Tendo em vista o panorama político, econômico e social que desponta para o Brasil em 2012, quais serão, em sua opinião, as grandes questões que a Igreja deveria abordar neste próximo ano?

S.C.- Sem dúvida nenhuma, a grande questão em que a Igreja poderá contribuir muito está expressa na temática da 5ª Semana Social Brasileira: “Um novo Estado, caminho para uma nova sociedade do bem viver”.

A Igreja quer dar sua contribuição neste ano eleitoral para discutir “Estado para que e para quem?”. O que temos é um Estado a serviço do capitalismo e dos grupos de pressão vinculados às grandes organizações monopolistas. Nesse sentido, a Igreja pretende estimular os movimentos sociais a continuarem nas lutas reivindicativas por políticas públicas que possam atender verdadeiramente aos interesses da sociedade como um todo: educação e saúde de qualidade, valorização do pequeno agricultor, por uma reforma agrária e por uma distribuição de renda mais justa entre outras mais.

IHU - Em diversos âmbitos, veem-se obstáculos para uma interlocução fecunda da Igreja com a cultura e a sociedade brasileiras contemporâneas. O que se vê são embates ou censuras. Como fomentar um diálogo inter-religioso e intercultural mais maduro no Brasil?

S.C. - De fato, é contraditória a posição da Igreja em muitos momentos. Como disse acima, ela quer contribuir para um debate mais profundo sobre o papel do Estado democrático, mas internamente nunca se viu tanto “verticalismo” e controle da “opinião pública” na Igreja, de modo especial do laicato mais crítico. Todos os anos ela coloca na “pauta do dia” temas de relevância nacional por meio das Campanhas da Fraternidade, mas luta para manter seus privilégios seculares por meio do Acordo Brasil-Santa Sé. [...]

Para fomentar um diálogo mais maduro, como você pergunta, é fundamental a Igreja reconhecer que ela não possui mais “poderio territorial” (e isso já faz tempo desde as campanhas de Garibaldi e do Tratado de Latrão em 1929) e “poderio espiritual” da época da Cristandade. É como aquela metáfora: “Durante pelo menos 10 séculos a Igreja foi a regente de uma grande orquestra. Agora ela é chamada a ser o ‘terceiro violino’ dessa mesma orquestra”. Para alguns dentro da Igreja isso é um absurdo e ela precisa lutar por sua “verdadeira” identidade. Para outros, essa é a grande oportunidade da Igreja viver mais próximo do seu mestre e ser fiel ao seu projeto.

Amartya Sen, Prêmio Nobel de economia, abre o ciclo de conferências “Fronteiras do Pensamento” em São Paulo


Presença cara

Agradável como o sorriso do indiano Amartya Sen é seu pensamento. O Prêmio Nobel de 1998 defende “Desenvolvimento como Liberdade”, articula disciplina fiscal com o Estado democrático liberal e bem-estar social com o mercado livre. O Índice de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento contou com a contribuição direta de Sen.
Liberdade para Sen inclui variáveis culturais e interpessoais norteadas por valores que consideram “renda” e “riqueza” como meios e não como fins. Mercadorias são fetiches, com múltiplas formas de alienação embutidas, não fins. Crescimento per capita e PIB são indicadores limitados para o bem viver e o bem-estar das pessoas e do Estado. Como definir os fins? Os valores referenciais abrem um horizonte de uma pluralidade centrífuga. A ruptura com a abordagem utilitarista e métrica abre a discussão urgente em torno de uma ética econômica (“Sobre Ética e Economia”, São Paulo: Companhia das Letras, 1999) e prática política moral. O trabalho que tornou Sen mais conhecido é um livro de 1981 sobre pobreza e fome (Pobreza e Fome: Um Ensaio sobre Direito e Privação). As pesquisas de Sen sempre foram centradas na economia das nações em desenvolvimento e no estudo das condições de vida das populações mais pobres do planeta.

Infelizmente, os pobres de São Paulo não vão poder ouvir a palestra de Sen e de nenhum dos palestrantes do seminário internacional “Fronteiras do Pensamento”. O acesso ao seminário se dará exclusivamente através da aquisição do Passaporte de acesso, que garante a participação nas oito conferências, realizadas entre abril e outubro de 2012, na Sala São Paulo. O pacote para as oito conferências (compras seletivas não são permitidas) é de R$ 2.240,00 na Plateia Central e de R$ 1.960,00 na Plateia Elevada da Sala São Paulo, Praça Júlio Prestes (www.fronteiras.com ).



Dia de São Jorge


Os pobres, que são barrados na Sala São Paulo, se encontrarão hoje nas Igrejas de São Jorge. Centenas de fiéis de todo o país comemoram nesta segunda-feira o Dia de São Jorge, santo que morreu aos 23 anos, no dia 23 de abril, por professar sua fé cristã. São Jorge é considerado o padroeiro extraoficial do Rio de Janeiro, seguido de São Sebastião, que é o oficial. Por causa do alto número de devotos, foi decretado feriado estadual em 2008 no dia de sua morte. Durante o dia todo irão acontecer missas e celebrações em homenagem ao santo. Na Igreja de Quintino, uma das principais do santo no Rio, os festejos começaram às 4h15 com a encenação do "Mito do Dragão", seguida da missa da alvorada às 5h.



Segundo a tradição, São Jorge nasceu na Capadócia, região do centro da Anatólia, que atualmente faz parte da República da Turquia. Na adolescência, Jorge entrou para o exército e, dada suas habilidades com as armas, logo foi promovido a capitão do exército romano, recebendo depois o título de conde da Capadócia. Após a morte da mãe e vendo a extrema pobreza do povo distribuiu suas riquezas aos mais carentes. Na corte do imperador Diocleciano, Jorge foi contra a determinação para matar todos os cristãos. Seu ato foi considerado uma afronta pelo imperador Diocleciano e o guerreiro foi torturado para que negasse a sua fé. Como ele não renunciou ao cristianismo, foi degolado no dia 23 de abril de 303. São Jorge é reverenciado na umbanda e no candomblé como Ogum, orixá ferreiro, senhor dos metais.

El Condor pasa - todavia

A memória não se apaga por decretos




O poeta argentino Juan Gelman (81) era um dos principais convidados da “Primeira Bienal do Livro e da Leitura”, de Brasília. Falou com ironia do ex-ditador Jorge Videla. Seu reconhecimento da morte de 7 ou 8 mil pessoas durante o período em que governou a Argentina no regime militar, de 1976 a 1983, seria um sinal de "modéstia" do político criminoso, “porque não foram 8 mil, mas 30 mil mortes". Gelman teve seu filho e sua nora assassinados, além de uma neta desaparecida.

O filho do poeta, Marcelo Gelman, após ter sido sequestrado e torturado, foi assassinado por uma ação combinada das ditaduras argentina e uruguaia, nos marcos da Operação Condor que estabelecia a cooperação entre as ditaduras latino-americanas. Sua nora, María Claudia García, que tinha 19 anos e estava grávida, foi sequestrada e detida junto com o marido, mas como foi transferida para o Uruguai, até hoje seu paradeiro não é conhecido. Enquanto isso, a neta, Macarena, foi roubada por militares e deixada na porta da casa de um policial uruguaio. Só foi encontrada pelo avô em 2000.

Ao falar sobre as chamadas "leis do perdão", que livraram de responsabilidade os repressores argentinos, o escritor, hoje residente no México, destacou: "não conheço nenhuma vítima que tenha delegado a terceiros a faculdade do perdão". Gelman evitou comentar a vigência da Lei de Anistia, decretada pelo ditador João Batista Figueiredo, em 1979, e ratificada pelo Supremo Tribunal Federal há dois anos. À pergunta, se a memória pode ser apagada por decreto, ele responde:


“Há 2.500 anos na Grécia de Péricles houve uma ditadura, a ditadura dos 400. Quando essa ditadura foi derrubada, obrigaram todos os cidadãos a jurar que não iriam recordar nada do que havia ocorrido, ou seja, estabeleceram o esquecimento por decreto. Isso é impossível: por mais decretos que se queiram impor, não há esquecimento dos crimes cometidos pelas ditaduras. Os familiares sabem muito bem o que perderam e uma sociedade que diz que “é preciso não olhar para trás”, que “não se deve ter olhos nas costas”, “que não é o caso de abrir velhas feridas”, é uma sociedade que se equivoca.”

Cf. também a entrevista de Egídio Schwade cedida ao Instituto Humanitas Unisinos:“Waimiri-Atroari: vítimas da Ditadura Militar. Mais um caso para a Comissão da Verdade” em: www.urubui.blogspot.com


ÍNDIO PATAXÓ HÃ-HÃ-HÃE BALEADO NA REGIÃO DE PAU BRASIL (BA)



Nem reza nem polícia – justiça!


O conflito entre fazendeiros e índios no sul da Bahia teve uma escalada de violência ontem, dia 20 de abril, com um índio pataxó baleado próximo ao rio Pardo, em Pau Brasil (550 km de Itabuna). Segundo a Polícia Federal, Ivanildo dos Santos, 29, levou um tiro na coxa por volta das 13h de ontem e foi levado para um hospital em Itabuna. Ainda não foram identificados suspeitos do ataque, mas as lideranças indígenas afirmam que fazendeiros da região estão contratando pistoleiros para tentar expulsar os índios das áreas retomadas. A região de Pau Brasil virou uma zona de disputa conflagrada entre índios e fazendeiros por um território de 54 mil hectares. Os índios Pataxó Hã-Hã-Hãe iniciaram em fevereiro uma série de retomadas de terra para pressionar o Supremo Tribunal Federal a julgar a ação de 1982 que pede a nulidade dos títulos de propriedade de fazendeiros. Apesar do clima de tensão, há pequena presença policial na área [fonte: Graciliano Rocha, enviado especial a Pau Brasil, BA, 21.4.2011].

Jagunços pararam nosso carro

Nós estávamos seguindo por uma estrada em Pau Brasil. Por volta das 8h, quando estávamos subindo uma colina, fomos surpreendidos no ponto alto da estrada por um grupo de jagunços armados de escopetas e revólveres na cintura. Doze ao todo. Os que estavam encapuzados se postaram diante do carro e gritaram para pararmos. Eu e o motorista procuramos sair calmamente do veículo e, para mostrar que não estávamos armados, colocamos as mãos no capô. Os homens encapuzados nos mandaram deitar no chão. Fomos então revistados e interrogados. Explicamos que éramos de São Paulo e trabalhávamos como jornalistas da Folha. "Cadê a carteirinha?", perguntaram. Pedimos que olhassem dentro do veículo. Inspecionaram nossos equipamentos e documentos e depois botaram tudo de volta. Mandaram então que nós entrássemos no carro e fôssemos embora dali sem olhar para nenhum deles - alguns não estavam encapuzados -, se não iriam atirar. Alguns quilômetros à frente fomos parados por outro grupo de jagunços -sete deles, mas só um com escopeta. Não estavam de capuz. Questionaram o que fazíamos na região. Explicamos e nos identificamos novamente. "Sai daqui! Sai daqui!", gritaram. Rodamos até encontrar um grupo de agentes da Polícia Federal. Contamos então o que nos sucedeu. Até agora a PF diz não ter achado armas com índios e fazendeiros [Depoimento de Joel Silva, enviado especial da Folha a Pau Brasil, cf. F.d.SP., 21.4.2012, caderno poder].



Retomadas no retrovisor histórico

As propriedades indígenas estão instaladas dentro de uma área de 54,1 mil hectares, que abrange os municípios de Pau Brasil, Itaju do Colônia e Camacan, demarcados como Território Indígena Catarina Paraguaçu em 1936. Até o final de 2011, os Pataxó Hã-Hã-Hãe ocupavam 18 mil hectares da Terra Indígena Caramuru-Paraguassu. Até então, os indígenas aguardavam os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) votar pela nulidade dos títulos dos ocupantes do território, que corre há 30 anos sem votação, sendo que o ex-ministro Eros Grau, relator do processo, votou de forma favorável aos indígenas, ou seja, pela anulação dos títulos. Apesar da regulamentação, a partir da década de 1940 as terras passaram a ser arrendadas pelo governo federal a fazendeiros que, mais tarde, receberam títulos de posse dos terrenos do governo baiano. Em 1982, a Fundação Nacional do Índio (Funai) propôs uma ação cível ordinária ao Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a anulação de 400 títulos emitidos pelo governo baiano. A ação tem relatoria da ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha e chegou a ter o julgamento agendado para 20 de outubro último, mas o governo do Estado pediu para que a matéria fosse retirada da pauta pelo risco de 'grave comoção pública e eventual desordem social' que a decisão poderia acarretar. Em 31 de março, a ministra entrou com pedido de urgência para a reinclusão do processo na pauta do STF.

Existe o temor, na região, de que ocorra um conflito armado entre as partes. Na quarta-feira, cerca de mil pessoas, entre religiosos, estudantes e comerciantes, promoveram uma caminhada em Itaju do Colônia para pedir o fim dos conflitos entre indígenas e fazendeiros. A Polícia Militar monta barreiras nas estradas da região para impedir confrontos entre as partes. Mas este conflito não será resolvido nem com reza nem com polícia. O que se exige é justiça. [Fontes: Renato Santana, Cimi, 16/04/2012, e Tiago Déciomo, de O Estado de S. Paulo, 20/04/2012]

CNBB E CIMI IRMANADOS NA DEFESA DOS POVOS INDÍGENAS





A presença da Igreja nas aldeias juntos aos povos indígenas, em uma perspectiva de solidariedade, de doação, de respeito e de generosa aceitação das culturas. Esta é a missão do Conselho Indiginista Missionário (CIMI), conforme afirmou o bispo da Prelazia de Xingu (PA) e presidente do CIMI, Dom Erwin Kräutler.

“Precisamos sensibilizar a sociedade, pois só envolvendo as pessoas com os sofrimentos desse povo vamos conseguir conscientizar que temos uma grande dívida com os povos indígenas”, afirmou o bispo.

Fundado em 1972, o CIMI celebra neste ano 40 anos de lutas a favor dos povos indígenas. De acordo com Dom Erwin o que mais marcou a luta do CIMI ao longo destes anos foi o sangue derramado de seus mártires. “Acredito que não exista uma pastoral que tenha gerado tantos mártires quanto esta. O sangue derramado dos mártires é a semente dessa luta pela ressurreição dos povos indígenas”, acrescentou.

Dom Erwin destacou que o atual cenário dos povos indígenas não é favorável à suas lutas. “A política indigenista oficial não é favorável aos povos indígenas. Lamentamos que embora os índios estejam ancorados pela lei, ela não seja respeitada”, concluiu.

(Fonte: sitio CNBB)

Dom Édson Damian na 50a. Assembleia da CNBB em Aparecida: “Temos uma dívida social imensa com os povos indígenas”



 QUI, 19 DE ABRIL DE 2012, do sítio da CNBB


“Temos uma dívida social imensa com os povos indígenas pelos massacres, genocídios, inomináveis crueldades e injustiças praticadas ao longo destes 512 anos de invasão e extermínio”, disse dom Édson Tasquetto Damian, bispo de São Gabriel da Cachoeira (AM), presidente da celebração eucarística realizada no Santuário Nacional de Aparecido neste segundo dia da 50a. Assembleia dos Bispos da CNBB.



 Dom Damian é bispo na diocese onde 90% da população é formada por povos indígenas e trabalha em profunda sintonia com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), um dos organismos vinculados à CNBB com atuação reconhecida na história recente do Brasil. Ele lembrou da fundação do Conselho e destacou: “o seu início, é marcada pelo testemunho dos mártires. Lembro apenas alguns: Pe Rodolfo Lukenbein, Simão Bororo,  Pe João Bosco Penido Burnier, Ângelo Pereira Xavier, cacique Pancaré, Ângelo Kretã, líder dos Kaingang, Marçal Tupã-y, líder Guarani que saudou o papa João Paulo II quando visitou o Brasil em 1980, Ir Cleusa Rody Coelho, Pe Ezechiel Ramin, Ir Jesuíta Vicente Cañas. Xicão Xucuru, Galdino de Jesus, queimado vivo por um bando de jovens em Brasília, Cacique Nísio Gomes Guarani Kaiowá, o último que foi assassinado, em novembro do ano passado, no Mato Grosso do Sul”.

 O CIMI tem 40 anos de existência que foram comparados por dom Damian, durante a homilia, como “o tempo em que o povo hebreu andou pelo deserto rumo à Terra Prometida e ajudam a manter viva a esperança dos povos indígenas que aguardam o processo de demarcação de 335 territórios e de outros 348 que ainda estão em fase de reivindicação”. O bispo de São Gabriel da Cachoeira manifestou seu apreço pelas comunidades indígenas “Sempre me encanto com estes irmãos. Apesar de uma vida dura e penosa nunca perdem a alegria e a fé que se expressam no sorriso límpido, espontâneo, cativante. Quando adoecem demoram até uma semana, nas frágeis embarcações com motor de ‘rabeta’, para serem transportados a São Gabriel, debaixo de sol abrasador ou de chuva torrencial. Dizia-me um médico que muitos chegam tão debilitados que se torna muito difícil ou até impossível o tratamento”.
 Dom Damian, diante dos mais de 340 bispos reunidos em Aparecida, compartilhou uma experiência vivida com o Papa Bento XVI. Ele contou que na visita “ad limina”de 2010, ficou surpreso com duas perguntas feitas pelo Papa. A primeira: “O povo da sua região está destruindo a floresta?” Dom Damian disse que teve a alegria de informá-lo “que na bacia do Rio Negro apenas 4% das florestas foram derrubadas, ao passo que em alguns Estados da Amazônia elas já foram totalmente destruídas pela ganância avassaladora das madeireiras, do agronegócio e das hidrelétricas. D. Erwin Kräutler, nosso presidente do CIMI, não se cansa de denunciar a grande destruição  e os minguados resultados da faraônica hidrelétrica de Belo Monte. Os índios são nossos mestres na preservação ambiental e no desenvolvimento sustentável. “Nossa vida depende da vida da floresta”, costumava dizer nossa mártir Ir Doroty Stang.
 A segunda pergunta feita por Bento XVI foi: “Os índios são bons católicos. Eles se confessam?” Dom Damian respondeu: “Todos, se confessam, desde as crianças que há pouco fizeram a Eucaristia até aos mais idosos. E com um detalhe original. A maioria começa dizendo: ‘Agora vou me confessar na minha língua’. Continua contando dom Damian dizendo que o Papa reagiu e o indagou: “E você entende todas as línguas?” E o bispo respondeu: “De que jeito, respondi. São 18 línguas e tão diferentes umas das outras. Mas quem perdoa é o Pai que criou todos os povos e culturas e Ele se entende muito bom com seus filhos prediletos. Assim a boa nova das culturas indígenas acolhe a Boa nova de Jesus”.
Antes de terminar a homilia, o bispo de Sao Gabriel da Cachoeira fez um agradecimento: “Agradeço, de coração, a todos os que, com generosidade e abnegação, se dedicam à causa indígena como uma causa do Reino, às missionárias e missionários do CIMI, às dioceses e seus agentes de pastoral, às congregações religiosas,  enfim, a todos os que vivem ‘em estado de missão inculturada e se empenham para que nossa Igreja se  torne realmente morada de povos irmãos e, assim também, casa dos povos indígenas”.
 


A íntegra da homilia cedida por Dom Edson Tasqueto Damian, bispo de São Gabriel da Cachoeira (AM):

 “Devemos obedecer antes a Deus do que aos homens. O Deus de nossos pais ressuscitou Jesus, a quem vós matastes, pregando-o numa cruz. Disso nós somos testemunhas, nós e o Espírito Santo, que Deus concedeu àqueles que lhe obedecem” (At 5 30 e 32).
 
Estas palavras do Apóstolo Pedro fazem ecoar a verdade que o Senhor nos diz no Evangelho: “Aquele que vem do Alto, dá testemunho daquilo que viu e ouviu. Quem aceita o seu testemunho atesta que Deus é verdadeiro. Aquele que acredita no Filho possui a vida eterna” (Jo 3, 31-32 e 36).

“O Espírito Santo e nós”, congregados nesta jubilosa 50ª Assembléia da CNBB, acima de tudo, expressamos nosso vigoroso testemunho no Bom Pastor Ressuscitado, fundamento de nossa fé e razão de nossa esperança. Ele está vivo no meio de nós. Queremos ser testemunhas dele no seio da  Igreja e no coração do mundo.

Na luz e na força do Espírito do Ressuscitado somos hoje convidados a rezar pelos queridos povos indígenas no dia que lhes é dedicado. Queremos também testemunhar e  render graças a Deus pelos 40 anos de atuação profética do Cimi – Conselho Indigenista  Missionário.

Depois de 20 anos de convivência das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucuald com o povo Tapirapé, no rio Araguaia, no oitavo ano da ditadura militar, cinco anos depois da extinção do SPI – Serviço de Proteção ao Índio - por corrupção, sadismo e massacres a dinamite e metralhadoras, 10 anos depois início do Vaticano II, quatro anos depois da Conferência de Medellín, no período mais repressivo da história do Brasil, nosso amado e saudoso Dom Ivo Lorscheiter, então secretário geral da CNBB, no dia 23 de abril de 1972, reuniu em Brasília um pequeno grupo de missionários para discutir o projeto de Lei n. 2328 que tramitava na Câmara e dispunha sobre o Estatuto do Índio.

Quem fez parte deste grupo? Além de Dom Ivo, lá estavam D. Henrique Froehlich, D. Geraldo Sigaud, D. Eurico Kräutler, D. Pedro Casaldáliga. D. Tomás Balduíno, D. Estevão Avelar, e os missionários Luís Gomes de Arruda, Tomás de Aquino e Sílvia Wewering.  Estes irmãos da primeira hora foram seguidos por uma multidão de testemunhas “da grande tribulação” (cf Ap 7,14). Temos uma dívida histórica e social imensa com os povos indígenas pelos massacres, genocídios, inomináveis crueldades e injustiças praticadas ao longo destes 512 anos de invasão e extermínio. Os missionários do Cimi desencadearam uma marcha de solidariedade fraterna. Lançaram sementes de esperança e forjaram a possibilidade de sobrevivência através das demarcações de territórios e abertura de novos horizontes.

A história do Cimi, desde o seu início, é marcada pelo testemunho dos mártires. Lembro apenas alguns missionários e indígenas: Pe. Rodolfo Lukenbein, Simão Bororo e Pe. João Bosco Penido Burnier, Ângelo Pereira Xavier, cacique Pancararé, Ângelo Kretã, líder dos Kaingang, Marçal Tupã-y, líder Guarani que saudou o papa João Paulo II quando visitou o Brasil em 1980. Ir Cleusa Rody Coelho, Pe. Ezechiel Ramin, Ir. Jesuíta Vicente Cañas. Xicão Xucuru, Galdino de Jesus, queimado vivo por um bando de jovens em Brasília, cacique Nísio Gomes Guarani Kaiowá, o último que foi assassinado e seu corpo sequestrado, em novembro do ano passado, no Mato Grosso do Sul.

Os 40 anos de caminhada do Cimi recordam os 40 anos que o povo hebreu andou pelo deserto rumo à Terra Prometida e ajudam a manter viva a esperança dos povos indígenas que aguardam o processo de demarcação de 335 territórios e de outros 348 que ainda estão em fase de reivindicação. Como não lembrar neste momento os 30 anos de luta sofrida e paciente dos índios de Roraima para se apropiarem  da TI Raposa Serra do Sol? Eu era administrador diocesano quando o secretário da presidência da república encarregou-me de comunicar ao presidente do CIR - Conselho Indígena de Roraima - que naquele dia, 15 de abril de 2005, o presidente assinaria o decreto da homologação. Chorando de alegria, o tuchaua Jacir José de Souza, grande líder Macuxi, pronunciou estas palavras inesquecíveis: “Assim como o povo da Bíblia e nós cristãos celebramos todos os anos a festa da Páscoa, o dia 15 de abril será por nós lembrado para sempre como o dia  da libertação da TI Raposa Serra do Sol”. Oxalá todos os índios que vivem acampados nas margens das estradas ou confinados em exíguos espaços, possam um dia reaver a terra que lhes pertence e ter  reconhecidos os direitos consignados pela Constituição Federal.

Agora, Deus me concede a imerecida graça de conviver com povos indígenas de 23 etnias, que falam 18 línguas diferentes e constituem mais de 90% da população na longínqua e pobre Igreja de São Gabriel da Cachoeira, na fronteira com a Colômbia e a Venezuela. Em 2014, celebraremos com gratidão os 100 anos de presença evangelizadora dos missionários salesianos e salesianas na imensa bacia do Rio Negro, que abrange 293.000 Km2.

Um dia recebi a visita da sábia antropóloga indigenista, Manuela Carneiro da Cunha. Dom Erwin me segredou que ela varava madrugadas com a equipe de trabalho a fim de encontrar os termos exatos para formular os direitos indígenas na Constituição de 88. Ela estava em São Gabriel para colaborar com outros pesquisadores que haviam descoberto que os índios cultivavam mais de 300 espécies de mandioca. Inclusive sabiam  cruzar as  diferentes espécies. Constataram também que a parte mais importante do enxoval que uma noiva indígena levava para a aldeia do seu futuro marido eram as manivas, isto é, as ramas de mandioca que ela havia aprendido a cultivar com sua mãe. Os casamentos da região são sempre interétnicos. Um indígena sempre se casa com uma jovem de uma etnia diferente. Por isso, a noiva ao mudar-se para a nova aldeia leva consigo as espécies de mandioca que ela aprendeu a cultivar na sua casa paterna.

Quando visito as aldeias espalhadas ao longo dos rios, depois de cansativas jornadas de “voadeira”, todos correm até a beira para receber o bispo e o tuchaua me saúda chamando-me de “excelência nosso pastor”. “Excelências são vocês”, respondo-lhes, que moram tão isolados e vivem desprovidos dos mínimos recursos. O Rio Negro, apesar de ser o maior afluente do Amazonas, devido às numerosas cachoeiras e à acidez de suas águas, é chamado de “rio da fome”, pois não fornece peixes nem para saciar a fome dos seus ribeirinhos.

Sempre me encanto com estes irmãos. Apesar de uma vida dura e penosa nunca perdem a alegria e a fé que se expressam no sorriso límpido, espontâneo, cativante. Quando adoecem demoram até uma semana, nas frágeis embarcações com motor de “rabeta”, para serem transportados a São Gabriel, debaixo de sol abrasador ou de chuva torrencial. Dizia-me um médico que muitos chegam tão debilitados que se torna muito difícil ou até impossível o tratamento.

Na audiência particular com o Papa Bento, durante a “visita ad limina”de 2010, fiquei surpreso com a primeira pergunta que me fez: “O povo da sua região está destruindo a floresta?” Tive alegria de informá-lo de que na bacia do Rio Negro apenas 4% das florestas foram derrubadas, ao passo que em alguns Estados da Amazônia elas já foram totalmente destruídas pela ganância avassaladora das madeireiras, do agronegócio e das hidrelétricas. D. Erwin Kräutler, nosso presidente do Cimi, não se cansa de denunciar a grande destruição  e os minguados resultados da faraônica hidrelétrica de Belo Monte. Os índios são nossos mestres na preservação ambiental e no desenvolvimento sustentável. “A morte da floresta é o fim da nossa vida”, costumava dizer nossa mártir Ir. Doroty Stang.

O Papa também me perguntou: “Os índios são bons católicos. Eles se confessam?” Todos, se confessam, respondi-lhe, desde as crianças que há pouco fizeram a Eucaristia até aos mais idosos. E com um detalhe original. A maioria começa dizendo: “Agora vou me confessar na minha língua”. E o Papa reagiu: “E você entende todas as línguas?” De que jeito, respondi. São 18 línguas e tão diferentes umas das outras. Mas quem perdoa é o Pai que criou todos os povos e culturas e Ele se entende muito bom com seus filhos prediletos”. Assim a boa nova das culturas indígenas acolhe a Boa nova de Jesus.

Muitas vezes, no meio dos povos indígenas, sentimos a presença de Deus e a verdade profética da palavra de S. Paulo (cf. Is 52,15): “Vê-lo-ão aqueles a quem não foi anunciado e haverão de conhecê-lo aqueles que dele não ouviram falar” ( Rm 15,21). Ao defender os projetos históricos dos povos indígenas, redescobrimos o Deus da Bíblia, que faz aliança com os pobres. O Deus, cuja justiça favorece as vítimas; o Deus do despojamento e da gratuidade, da proximidade e da libertação.

Agradeço, de coração, a todos os que, com generosidade e abnegação, se dedicam à causa indígena como uma causa do Reino, às missionárias e missionários do Cimi, às dioceses, prelazias e seus agentes de pastoral, às congregações religiosas,  enfim, a todos os que vivem “em estado de missão inculturada (DAp, n.213) e se empenham para que nossa Igreja se  torne realmente morada de povos irmãos e, assim também, casa dos povos indígenas (cf DAp, n.8).

Permitam-me, por fim, que diga um “bom dia” aos meus diocesanos nas três línguas indígenas que, em São Gabriel da Cachoeira, são consideradas oficiais, além do português:

“Puranga ara” – “Puraga”( Nheengatu ou Língua Geral)
“Hekoapi waikaa”  - “Waikaa”(Baniwa)
“Wã’kati, masã” – “Wã’ká” (Tukano).

Um cordial abraço aos primeiros integrantes da Fazenda da Esperança de S. Gabriel, inaugurada no dia 24 de março, com as bênçãos do Cardeal Dom Cláudio Hummes, presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia.

Divino e adorável Bom Pastor Ressuscitado, querida Mãe Aparecida, abençoai e acompanhai com carinho nossas irmãs e irmãos  indígenas. Dai força e coragem às heróicas missionárias e missionários que convivem com eles e lutam para ajudá-los na conquista dos seus direitos. Respeitadas as nossas diferenças e enriquecidos por elas, somos todos iguais, porque somos todos irmãos no amor do Pai, no abraço Redentor do Filho, na comunhão do Espírito Santo.

Dom Edson Tasquetto Damian
Bispo de São Gabriel da Cachoeira (AM)