CHICO BUARQUE " MINHA HISTÓRIA ": Me conhecem só pelo meu nome de Menino Jesus






Minha história (Gesù bambino)
Dalla - Palotino - versão de Chico Buarque/1970
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Notas  
Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar
Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar
Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente
E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente

Ele assim como veio partiu não se sabe pra onde
E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe
Esperando, parada, pregada na pedra do porto
Com seu único velho vestido cada dia mais curto

Quando enfim eu nasci minha mãe embrulhou-me num manto
Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo
Mas por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher
Me ninava cantando cantigas de cabaré

Minha mãe não tardou a alertar toda a vizinhança
A mostrar que ali estava bem mais que uma simples criança
E não sei bem se por ironia ou se por amor
Resolveu me chamar com o nome do Nosso Senhor

Minha história é esse nome que ainda hoje carrego comigo
Quando vou bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome de Menino Jesus 
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A música “Minha História” tem alguns fatos curiosos na sua gênese e na própria justificativa do seu nome. A música original, 4 marzo 1943, também é conhecida como Gesú Bambino - Menino Jesus em italiano - foi composta no início dos anos setenta na Itália por Lúcio Dalla (foto a esqueda) e Palotino e abordava a história das mães solteira adolescentes sob a ótica dos filhos, frutos de relacionamentos com soldados estrangeiros no período da 2° grande guerra, daí seu subtítulo: “Os filhos da guerra”. A versão italiana foi premiada com o 3º lugar do Festival de San Remo de 1971. 

Chico Buarque, amigo de Dalla, com o brilhantismo de sempre, adaptou a letra para nossa realidade tratando a música sob o prisma de um filho de uma prostituta de caís. O compositor brasileiro brincava em relação ao subtítulo da música italiana – Filhos da Guerra -dizendo que sua música seria chamada filhos da Puta. Brincadeiras à parte, Buarque resolveu colocar o nome de “Menino Jesus”. Era tempo de ditadura, os militares não gostaram e, como era comum na época, censuraram. O cantor resolveu colocar o nome definitivo “Minha história”. 





Abertura do Ano Santo e da Porta da Miserícórdia




Eleitos por misericórdia, enviados para servir



          No dia 8 de dezembro de 2015, festa da Imaculada Conceição e dia do cinquentenário da conclusão do Concílio Ecumênico Vaticano II, o Papa Francisco inicia a celebração de um “Jubileu Extraordinário da Misericórdia”, com a abertura da Porta Santa. O papa aproveita uma antiga tradição judaico-cristã (cf. Lev. 25), que a cristandade celebrou pela primeira vez no ano 1300, para envolver povo e hierarquia na continuidade criativa do Concílio, e para cobrar da Igreja a Missão de anunciar e praticar o “Evangelho da Misericórdia” (EG 188). Ao mesmo tempo pode-se entender esse Ano Santo antecipado ou “extraordinário” como sutil aviso, que o Papa Francisco não conta alcançar, em sua função de “bispo de Roma”, o próximo Ano Santo Ordinário, que seria em 2025.


          Já na Evangelii gaudium Francisco nos avisou: “O tempo é superior ao espaço” (EG 222-225). O tempo significa “processo”, “transformação”, “saída”, “kairós”, “Igreja acidentada, ferida, enlameada”. O espaço, porém, significa “poder”, “colonização”, “latifúndio”, “escravidão”, “desigualdade”, “Igreja – Cidadela privilegiada” ((Misericordiae vultus/MV, 4). O Ano Santo procura recuperar o horizonte do bem viver e interromper os vícios do espaço.


 Maria, a misericordiosa desatadora dos nós



          Em 1986, por ocasião de sua estadia de alguns meses na Alemanha, o então Jorge Mario Bergoglio descobriu em Augsburg, na Igreja dos jesuítas de São Pedro, o original da imagem de Nossa Senhora Desatadora dos Nós. Logo, Bergoglio tornou-se um eficiente divulgador e adepto dessa devoção à qual até então ninguém deu a mínima atenção. Através da imagem de “Maria Desatadora dos Nós”, Francisco transformou a imagem da “Puríssima” (em Cuba) e da “Imaculada Conceição”, cujo olhar é voltado ao céu, em mulher do povo. A “Desatadora dos Nós” olha sempre para os que vieram da grande aflição e pedem “sua mão” para desatar o emaranhado de nós de sua vida. A Desatadora dos Nós nos aguarda na “Porta da Misericórdia” (MV 3), não em Roma para conseguir, ex opere operato, uma “indulgência plenária” e animar o comércio local. A “Porta da Misericórdia” encontramos aberta sempre quando alguém “rompe a barreira de indiferença” (MV 15) “nas mais variadas periferias existenciais”.


Deus olhou nele com misericórdia



          Desde jovem estudante, o Papa Francisco se achou guiado pela misericórdia de Deus. Seu escudo de bispo e papa resume essa experiência de Deus misericordioso em sua vida: “Olhou-o com misericórdia e o escolheu” (miserando atque eligendo). É na casa de Mateus, cobrador de impostos e marginal social, que Jesus defende a misericórdia para com publicanos e pecadores contra o rigorismo dos fariseus: “A salvação, que Deus nos oferece, é obra da sua misericórdia” (EG 112), revelada por Jesus Cristo, que, com a sua morte e ressurreição, nos comunica a misericórdia infinita do Pai” (EG 164).


          A misericórdia não substitui a justiça, mas a ultrapassa: “Jesus vai além da lei, a sua partilha da mesa com aqueles que a lei considerava pecadores permite compreender até onde chega a sua misericórdia” (MV 20). Segundo Santo Agostinho, “é mais fácil que Deus contenha a ira do que a misericórdia” (MV 21).


          A missão dos eleitos, de Davi e Pedro, de Paulo e Agostinho não aconteceu por causa de seus méritos, mas por causa da misericórdia de Deus. O povo de Israel compreendeu a Lei como Dom do amor de Deus, não como castigo. A misericórdia é uma herança da “espiritualidade judaica do pós-exílio que atribuía um especial valor salvífico à misericórdia” (EG 193).

Pecado irreversível?


          Já nos primórdios do cristianismo surgiu a questão do pecado irreversível, que deveria ser castigado com exclusão da comunidade cristã e sem possibilidade de uma intervenção misericordiosa. No caso dos batizados, que cometeram um pecado grave, a Igreja optou pela não exclusão desses batizados impondo-lhes uma prática penitencial que permitiu uma posterior reconciliação com a comunidade. Mas, até o início do Vaticano II, havia também casos de exclusão definitiva, seguindo a definição da Bula Cantate Domino, do Concilium Florentinum, de 1442. Esse concílio definiu, “que ninguém que vive fora da Igreja Católica, nem pagãos, judeus, heréticos ou cismáticos participarão da vida eterna, mas que irão para o fogo eterno `que é preparado para o diabo e seus anjos´ (Mt 25,41)”. Recentemente, nas discussões sobre a acolhida dos divorciados na comunhão eucarística, o Sínodo sobre “A Vocação e a Missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo” (2015) revelou divergências profundas.


          Para estabelecer um consenso possível nessas questões, que são sobretudo de ordem cultural, o Papa Francisco propôs a realização de um Ano Santo da Misericórdia e deu para entender, que somente a sinodalidade como modus operandi e a misericórdia, como modus vivendi nos areópagos e nas periferias de hoje, seriam capazes de propulsionar a “conversão pastoral”. Conversão pastoral significa transformação missionária da Igreja e a Igreja missionária, por sua vez, é uma “Igreja em saída” (cf. EG 20-33), simbolizada pela porta aberta. Na “Porta da Misericórdia” se manifesta a onipotência de Deus (cf. EG 37). Em sua onipotência, Deus se faz pequeno como no presépio e na cruz.


 Retomar o Vaticano II e a missão


          Alguém poderia perguntar: “O que o cinquentenário do final do Concílio tem a ver com a misericórdia”? Francisco responderia, provavelmente, com as palavras de João XXIII: “Nos nossos dias, a Esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia que o da severidade” ou com as palavras de Paulo VI: “Desejamos notar que a religião do nosso Concílio foi, antes de mais, a caridade” (MV 4). A comunidade missionária precisa constantemente aprender de Deus o “desejo inexaurível de oferecer misericórdia”, de “tomar iniciativa sem medo”, de “procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos” (EG 24).


          Ao abrir o portal do Ano da Misericórdia em nossas comunidades vamos reconhecer, novamente, a nossa identidade mais profunda como liberdade e solidariedade. A liberdade na porta aberta do centro nos impulsiona para a solidariedade na periferia. E o encontro nas periferias humanas é o início de uma aliança da misericórdia que nos faz reconstruir um mundo sem centro e sem periferia.
Paulo Suess