Grave crise no governo boliviano: Evo Morales suspende obra de estrada que perpassa território indígena


Protestos contra a estrada que atravessa território indígena

A estrada inviável

Em meio a uma das piores crises de seu governo, o presidente da Bolívia, Evo Morales, suspendeu a construção de um trecho rodoviário que tem financiamento do Brasil e foi contratado com a construtora brasileira OAS. Ele acabou cedendo após semanas de protestos de indígenas, que rejeitam a passagem da estrada por uma reserva. Morales pretende agora fazer uma consulta ampla à população local. O governo brasileiro vai aguardar a decisão final dos bolivianos.
A reportagem é de Fabio Murakawa, Sergio Leo e Chico Santos e publicada pelo jornal Valor, 28-09-2011.





A estrada, que liga os departamentos (províncias) de Beni e Cochabamba, tem 306 km e está orçada em US$ 415 milhões, dos quais US$ 332 milhões financiados pelo BNDES. A conclusão estava prevista para 2014. As obras do trecho 1 e 3 já estão em andamento.

Protesto e repressão


O trecho principal, porém, é o 2, que atravessa o Tipnis - uma reserva indígena de 1 milhão de hectares, onde vivem de 10 mil a 12 mil indígenas. Esse trecho responde por cerca de 40% do valor total da estrada. O início dos trabalhos, agora suspenso por Morales, estava marcado para 2012.

A repressão pela polícia a uma marcha de protesto indígena, que pretendia chegar a La Paz, foi o estopim para a suspensão da obra. Segundo a imprensa boliviana, um bebê morreu por asfixia quando policiais lançaram gás lacrimogêneo num acampamento indígena. Haveria ainda desaparecidos, que teriam sido levados pela polícia. Não há confirmação independente dessas notícias. Em reação, os indígenas bloquearam estradas.

O confronto gerou uma grave crise no governo. Por discordar da ação da polícia, a ministra da Defesa, Cecilia Chacón, renunciou anteontem. Já ontem renunciaram o ministro e o vice-ministro do Interior, criticados pela repressão.

O diretor-superintendente da área internacional da OAS, Augusto César Uzêda, disse ao Valor ter recebido ordem do governo boliviano para continuar as obras nos trechos 1 e 3 da rodovia. Já a preparação para a execução do trecho 2 foi suspensa até que haja a consulta à população prometida por Morales. Não há data para isso, nem se sabe como ela será realizada.
Vitória do povo: suspensão do projeto 

Segundo Uzêda, há atualmente 2.200 pessoas envolvidas na construção da estrada. Ele informou que, apesar de o BNDES ainda não ter liberado nenhuma parcela do financiamento, a empresa recebeu cerca de US$ 40 milhões do governo boliviano pelas obras já feitas. "O meu contrato não é com o BNDES, é com o governo da Bolívia."

O executivo disse que não acredita que a rodovia não seja executada em sua totalidade. "Não tenho dúvida de que [o trecho 2] vai sair. Existe uma rodovia que é [prevista por] uma lei, que vai ser feita", disse ele. "Pode-se discutir a possibilidade de mudança do traçado."

A estrada encurtaria em cerca de 500 km o caminho entre Beni e Cochabamba. Segundo Uzêda, ainda seria viável um traçado cerca de 200 km mais longo que o previsto, mas que ainda teria de atravessar áreas do Tipnis. Os indígenas propõem que seja feito um novo projeto e que o trajeto seja desviado da reserva. Para a OAS, isso inviabilizaria a estrada, pois anularia o objetivo de encurtar o caminho.

O caso cria problemas para o Brasil. Há preocupação com o caráter anti-Brasil de alguns protestos em La Paz. Há cerca de dez dias, manifestantes colocaram uma placa de "interditado" nas fachadas da embaixada brasileira e de uma agência do Banco do Brasil na capital. Em outras manifestações, estudantes distribuíram panfletos acusando o "imperialismo brasileiro" pelo interesse em realizar a estrada, que faz parte do Iirsa, conjunto de obras prioritárias criado para facilitar a integração de infraestrutura da América do Sul.

Em viagem à Bolívia, no fim de agosto, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva reuniu-se com Morales e o aconselhou a adotar uma postura menos beligerante em relação aos indígenas. O mesmo conselho foi dado pelo assessor especial da Presidência para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, que esteve no país uma semana depois, segundo fontes.

A presidente Dilma Rousseff e o ministro de Relações Exteriores, Antônio Patriota, foram informados da crise gerada pela repressão aos protestos indígenas quando estavam ainda na Assembleia Geral da ONU, em Nova York. Dilma não chegou a falar com Morales.

O governo brasileiro avalia ter "flexibilidade" para apoiar as autoridades bolivianas na solução do impasse. A orientação de Dilma é analisar as propostas que serão feitas por Morales, caso ele decida mudar o projeto. O BNDES, segundo uma autoridade, pode manter o financiamento para outro trajeto que evite o trecho polêmico.

O BNDES confirmou que "não realizou nenhum desembolso para a obra e vai aguardar a definição do governo boliviano em relação ao prosseguimento do projeto".

Há no governo brasileiro uma corrente que acredita que o financiamento à obra não deveria ter sido aprovado antes de um acordo entre Morales e os indígenas. "Teremos problemas, qualquer que seja a nossa posição", disse ao Valor uma fonte brasileira no mês passado. "Se o BNDES não liberar o financiamento, a relação entre Morales e o Brasil vai estremecer. Se liberar do jeito que está, o Brasil será lembrado como um espoliador por décadas. É a crônica de um problema anunciado."


Porque cantamos - Elogio da dialética

        Porque cantamos

Mário Benedetti

...você perguntará por que cantamos

cantamos porque o rio esta soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino


cantamos pela infância e porque tudo
e porque algum futuro e porque o povo
cantamos porque os sobreviventes
e nossos mortos querem que cantemos


cantamos porque o grito só não basta
e já não basta o pranto nem a raiva
cantamos porque cremos nessa gente
e porque venceremos a derrota


cantamos porque o sol nos reconhece
e porque o campo cheira a primavera
e porque nesse talo e lá no fruto
cada pergunta tem a sua resposta


cantamos porque chove sobre o sulco
e somos militantes desta vida





          Elogio da Dialética


Bertolt Brecht

A injustiça passeia pelas ruas com passos seguros.
Os dominadores se estabelecem por dez mil anos.
Só a força os garante.
Tudo ficará como está.
Nenhuma voz se levanta além da voz dos dominadores.
No mercado da exploração se diz em voz alta:
Agora acaba de começar:
E entre os oprimidos muitos dizem:
Não se realizará jamais o que queremos!
O que ainda vive não diga: jamais!
O seguro não é seguro. Como está não ficará.
Quando os dominadores falarem
falarão também os dominados.
Quem se atreve a dizer: jamais?
De quem depende a continuação desse domínio?
De quem depende a sua destruição?
Igualmente de nós.
Os caídos que se levantem!
Os que estão perdidos que lutem!
Quem reconhece a situação como pode calar-se?
Os vencidos de agora serão os vencedores de amanhã.
E o "hoje" nascerá do "jamais".

Terra indígena um risco à soberania nacional - despejo neles!

Laranjeira Nhanderu urgente:

mais um despejo decretado




“E como se  meu coração saltasse fora do peito. Assim é minha dor quando falam que vamos de novo ser despejados”. Essa expressão de Faride, lideranças Kaiowá Guarani,  demonstra a situação de aflição, angústia e revolta com que a comunidade recebe mais uma sentença do despejo. Eufemisticamente fazem crer que a “transferência forçada”, para um inóspito cantinho de terra do DNIT, às margens da rodovia 163. É mais uma ação ignominiosa ,somada às atitudes genocidas que vem sendo perpetradas com esse povo.

Dourando a pílula
Terra é Vida, Despejo é Morte

A cínica forma de oficiar mais esse despejo, remetendo a responsabilidade da mesma à Funai,  é dourar a pílula, lavando as mãos diante de mais uma cruel violência e afronta aos direitos constitucionais e legislação internacional da qual o Brasil é signatário, que garantem aos povos indígenas o reconhecimento de suas terras.. A lei 6.001 de 1973 já determinava que o governo brasileiro seria obrigado a demarcar as terras indígenas dentro de cinco anos. Mais de 30 anos de sofrimento se passaram. E para reforçar essa obrigação do Estado, a Constituição de 1988 novamente dá um prazo de cinco anos para que o governo demarque todas as terras indígenas. Vão-se mais de 20 anos e os Kaiowá Guarani não tiveram a maioria de suas terras sequer identificadas.
Cabe mais uma vez a pergunta: a quem interessa essa afronta aos direitos, responsável por intermináveis conflitos, insuportável  sofrimento, e inúmeros assassinatos de lideranças desse povo?

Aflição e dor

Juízes decidiram a expulsão, a Funai já recebeu a intimação, e o prazo para execução da mesma expira hoje, dia 21 de setembro. Quando a primavera se anuncia, com ela também chegam os decretos de aflição. Na mente e no coração dos 150 indígenas que estão num pequeno pedaço de área de proteção ambiental, à beira do rio Brilhante, passam as cenas de um ano e meio que viveram à beira da estrada. Nesse período tiveram  três de seus membros mortos por atropelamento, perdendo inúmeros animais de criação esmagados pelos pesados veículos da rodovia, seus barracos alagados.  Enfim, uma ladainha de sofrimentos que querem repetir.
A realidade vivida por essa comunidade a beira da estrada foi conhecida, pela CDDP Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humano, Pelo Secretário Geral da CNBB, Survival, Anistia Internacional, dentre outro.  
Enquanto a presidente Dilma faz a abertura solene de mais uma sessão das Nações Unidas – ONU,  provavelmente não estará sentido a angustia e sofrimento da comunidade Kaiowá Guarani de Laranjeira Nhanderu e da maioria desse povo que não tem suas terras reconhecidas e demarcadas.
Enquanto o CNJ – Conselho Nacional de Justiça se empenha em contribuir com a solução definitiva das terras indígenas no Mato Grosso do Sul,  os despejos vão na contramão dessa iniciativa.
O que eles querem é apenas permanecer no local em que se encontram até que os relatórios de identificação sejam concluídos e eles possam viver em paz. Que a Funai cumpra sua obrigação de publicar o quanto antes os relatórios de identificação e desta forma tenha uma solução definitiva dessa situação.
Uma faixa de solidariedade aos Kaiowá Guarani, em setembro de 2009 dizia “Terra é  Vida, Despejo é  Morte”. Essa comunidade precisa do apoio e solidariedade de todas as pessoas de boa vontade no Brasil e no mundo.
Egon Heck
Povo Guarani Grande Povo
Dourados, 21 de setembro de 2011

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Despejo em defesa do agronegócio:

  Terra indígena é ameaça, diz Câmara

Em reação à restrição imposta pelo governo à compra ou ao arrendamento de terras por empresas brasileiras de capital estrangeiro, uma subcomissão especial da Câmara produziu um raciocínio original para defender o agronegócio. Nota técnica alega que terras indígenas representam uma ameaça à soberania nacional maior do que as terras em mãos de estrangeiros.
 
 Trechos da reportagem de Marta Salomon, publicada na íntegra pelo jornal O Estado de S. Paulo, 24-09-2011.

 O argumento [...] “que apenas 0,5% (ainda que subestimados) sejam ocupados por estrangeiros, o que pode ser considerada uma ameaça maior à soberania: terras indígenas ou terras de propriedades de estrangeiros?", diz o relatório.
 
A compra de terras por estrangeiros tornou-se assunto polêmico desde que a Advocacia Geral da União (AGU), em agosto de 2010, determinou que empresas brasileiras de capital estrangeiro deveriam ser tratadas como estrangeiros e se submeter ao limite fixado para a compra e arrendamento de terras. O parecer ocupou o lugar de um entendimento que vigorava havia mais de dez anos.

Desde então, os cartórios não cumprem a exigência de registrar negócios com imóveis feitos por empresas com capital estrangeiro. A corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon afirmou que os negócios não estariam suspensos, mas seriam feitos por meio de "laranjas", para fugir das restrições. Os cartórios afirmaram que não têm como checar a participação acionária de empresas compradoras.
 
No Congresso
 
A resistência à movimentação do governo, que inclui uma proposta de projeto de lei destinado a deter o avanço de estrangeiros sobre terras no País, tomou forma no Congresso. A Comissão de Agricultura da Câmara criou uma subcomissão especial em junho para cuidar do processo de compra de terras por estrangeiros.
 
O presidente da subcomissão, deputado Homero Pereira (PR-MT), confirmou o teor da nota técnica. Com audiência marcada na Casa Civil da Presidência para a próxima terça-feira, Pereira antecipa alguns resultados.
 
O primeiro ponto de embate com o governo é o entendimento de que a lei deve garantir segurança jurídica aos investidores estrangeiros no País. Em outras palavras, isso significa uma oposição aos limites impostos a empresas brasileiras de capital estrangeiro. O deputado alega que o parecer da AGU deixou em suspenso projetos de investimentos nas áreas de produção de grãos, cana-de-açúcar e florestas plantadas.
 
O advogado José Eduardo Giaretta Eulálio, com clientes no setor, diz que o parecer da AGU causou "danos bilionários". Só na área de papel e celulose, estariam em curso investimentos de R$ 37 bilhões. A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) pondera que as restrições impostas pelo governo também atrapalham a concessão de crédito aos produtores rurais.
 
Pereira adianta, porém, que a compra e o arrendamento de terras por empresas de capital estrangeiro devem ser conhecidos por um sistema de informação do governo. Desde 1998, o registro desse tipo de negócio deixou de ser feito pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que mantém um cadastro desatualizado. "Temos que produzir uma fonte confiável de informação", diz.

Discurso de Bento XVI no parlamento federal da Alemanha (22.09.2011)

Como um farol:
Um discurso brilhante a longa distância

O fato de um Pontífice discursar do palanque oficial, convidado como Chefe de Estado a um Parlamento, só tem dois precedentes: João Paulo II o fez em Roma e em Varsóvia. Como anunciado, muitos integrantes da oposição socialdemocrata, verde e de esquerda não presenciaram o evento.



Veja a íntegra do discurso de Bento XVI:

  Ilustre Senhor Presidente Federal!
 Senhor Presidente do Bundestag!
 Senhora Chanceler Federal!
 Senhor Presidente do Bundesrat!
 Senhoras e Senhores Deputados!

 Constitui para mim uma honra e uma alegria falar diante desta Câmara Alta, diante do Parlamento da minha Pátria alemã, que se reúne aqui em representação do povo, eleita democraticamente para trabalhar pelo bem da República Federal da Alemanha. Quero agradecer ao Senhor Presidente do Bundestag o convite que me fez para pronunciar este discurso, e também as amáveis palavras de boas-vindas e de apreço com que me acolheu. Neste momento, dirijo-me a vós, prezados Senhores e Senhoras, certamente também como concidadão que se sente ligado por toda a vida às suas origens e acompanha solidariamente as vicissitudes da Pátria alemã. Mas o convite para pronunciar este discurso foi-me dirigido a mim como Papa, como Bispo de Roma, que carrega a responsabilidade suprema da Igreja Católica. Deste modo, vós reconheceis o papel que compete à Santa Sé como parceira no seio da Comunidade dos Povos e dos Estados. Na base desta minha responsabilidade internacional, quero propor-vos algumas considerações sobre os fundamentos do Estado liberal de direito.

Seja-me permitido começar as minhas reflexões sobre os fundamentos do direito com uma pequena narrativa tirada da Sagrada Escritura. Conta-se, no Primeiro Livro dos Reis, que Deus concedeu ao jovem rei Salomão fazer um pedido por ocasião da sua entronização. Que irá pedir o jovem soberano neste momento tão importante: sucesso, riqueza, uma vida longa, a eliminação dos inimigos? Não pede nada disso; mas sim: «Concede ao teu servo um coração dócil, para saber administrar a justiça ao teu povo e discernir o bem do mal» (1 Re 3, 9). Com esta narração, a Bíblia quer indicar-nos o que deve, em última análise, ser importante para um político. O seu critério último e a motivação para o seu trabalho como político não devem ser o sucesso e menos ainda o lucro material. A política deve ser um compromisso em prol da justiça e, assim, criar as condições de fundo para a paz. Naturalmente um político procurará o sucesso, sem o qual não poderia jamais ter a possibilidade de uma acção política efectiva; mas o sucesso há-de estar subordinado ao critério da justiça, à vontade de actuar o direito e à inteligência do direito. É que o sucesso pode tornar-se também um aliciamento, abrindo assim a estrada à falsificação do direito, à destruição da justiça. «Se se põe de parte o direito, em que se distingue então o Estado de uma grande banda de salteadores?» – sentenciou uma vez Santo Agostinho (De civitate Dei IV, 4, 1). Nós, alemães, sabemos pela nossa experiência que estas palavras não são um fútil espantalho. Experimentámos a separação entre o poder e o direito, o poder colocar-se contra o direito, o seu espezinhar o direito, de tal modo que o Estado se tornara o instrumento para a destruição do direito: tornara-se uma banda de salteadores muito bem organizada, que podia ameaçar o mundo inteiro e impeli-lo até à beira do precipício. Servir o direito e combater o domínio da injustiça é e permanece a tarefa fundamental do político. Num momento histórico em que o homem adquiriu um poder até agora impensável, esta tarefa torna-se particularmente urgente. O homem é capaz de destruir o mundo. Pode manipular-se a si mesmo. Pode, por assim dizer, criar seres humanos e excluir outros seres humanos de serem homens. Como reconhecemos o que é justo? Como podemos distinguir entre o bem e o mal, entre o verdadeiro direito e o direito apenas aparente? O pedido de Salomão permanece a questão decisiva perante a qual se encontram também hoje o homem político e a política.

Grande parte da matéria que se deve regular juridicamente, pode ter por critério suficiente o da maioria. Mas é evidente que, nas questões fundamentais do direito em que está em jogo a dignidade do homem e da humanidade, o princípio maioritário não basta: no processo de formação do direito, cada pessoa que tem responsabilidade deve ela mesma procurar os critérios da própria orientação. No século III, o grande teólogo Orígenes justificou assim a resistência dos cristãos a certos ordenamentos jurídicos em vigor: «Se alguém se encontrasse no povo de Scizia que tem leis irreligiosas e fosse obrigado a viver no meio deles, (…) estes agiriam, sem dúvida, de modo muito razoável se, em nome da lei da verdade que precisamente no povo da Scizia é ilegalidade, formassem juntamente com outros, que tenham a mesma opinião, associações mesmo contra o ordenamento em vigor» [Contra Celsum GCS Orig. 428 (Koetschau); cf. A. Fürst, «Monotheismus und Monarchie. Zum Zusammenhang von Heil und Herrschaft in der Antike», in Theol.Phil. 81 (2006) 321-338; a citação está na página 336; cf. também J. Ratzinger, Die Einheit der Nationem, Eine Vision der Kirchenväter (Salzburg-München 1971) 60].

 Com base nesta convicção, os combatentes da resistência agiram contra o regime nazista e contra outros regimes totalitários, prestando assim um serviço ao direito e à humanidade inteira. Para estas pessoas era evidente de modo incontestável que, na realidade, o direito vigente era injustiça. Mas, nas decisões de um político democrático, a pergunta sobre o que corresponda agora à lei da verdade, o que seja verdadeiramente justo e possa tornar-se lei não é igualmente evidente. Hoje, de facto, não é de per si evidente aquilo que seja justo e possa tornar-se direito vigente relativamente às questões antropológicas fundamentais. À questão de saber como se possa reconhecer aquilo que verdadeiramente é justo e, deste modo, servir a justiça na legislação, nunca foi fácil encontrar resposta e hoje, na abundância dos nossos conhecimentos e das nossas capacidades, uma tal questão tornou-se ainda muito mais difícil.
 
Como se reconhece o que é justo? Na história, os ordenamentos jurídicos foram quase sempre religiosamente motivados: com base numa referência à Divindade, decide-se aquilo que é justo entre os homens. Ao contrário doutras grandes religiões, o cristianismo nunca impôs ao Estado e à sociedade um direito revelado, nunca impôs um ordenamento jurídico derivado duma revelação. Mas apelou para a natureza e a razão como verdadeiras fontes do direito; apelou para a harmonia entre razão objectiva e subjectiva, mas uma harmonia que pressupõe serem as duas esferas fundadas na Razão criadora de Deus. Deste modo, os teólogos cristãos associaram-se a um movimento filosófico e jurídico que estava formado já desde o século II (a.C.). De facto, na primeira metade do século II pré-cristão, deu-se um encontro entre o direito natural social, desenvolvido pelos filósofos estóicos, e autorizados mestres do direito romano [cf. W. Waldstein, Ins Herz geschrieben. Das Naturrecht als Fundament einer menschlichen Gesellschaft (Augsburg 2010) 11ss; 31-61]. Neste contacto nasceu a cultura jurídica ocidental, que foi, e é ainda agora, de importância decisiva para a cultura jurídica da humanidade. Desta ligação pré-cristã entre direito e filosofia parte o caminho que leva, através da Idade Média cristã, ao desenvolvimento jurídico do Iluminismo até à Declaração dos Direitos Humanos e depois à nossa Lei Fundamental alemã, pela qual o nosso povo reconheceu, em 1949, «os direitos invioláveis e inalienáveis do homem como fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça no mundo».

Foi decisivo para o desenvolvimento do direito e o progresso da humanidade que os teólogos cristãos tivessem tomado posição contra o direito religioso, requerido pela fé nas divindades, e se tivessem colocado da parte da filosofia, reconhecendo como fonte jurídica válida para todos a razão e a natureza na sua correlação. Esta opção realizara-a já São Paulo, quando afirma na Carta aos Romanos: «Quando os gentios que não têm a Lei [a Torah de Israel], por natureza agem segundo a Lei, eles (…) são lei para si próprios. Esses mostram que o que a Lei manda praticar está escrito nos seus corações, como resulta do testemunho da sua consciência» (Rm 2, 14-15). Aqui aparecem os dois conceitos fundamentais de natureza e de consciência, sendo aqui a «consciência» o mesmo que o «coração dócil» de Salomão,  a razão aberta à linguagem do ser. Deste modo se até à época do Iluminismo, da Declaração dos Direitos Humanos depois da II Guerra Mundial e até à formação da nossa Lei Fundamental, a questão acerca dos fundamentos da legislação parecia esclarecida, no último meio século verificou-se uma dramática mudança da situação. Hoje considera-se a ideia do direito natural uma doutrina católica bastante singular, sobre a qual não valeria a pena discutir fora do âmbito católico, de tal modo que quase se tem vergonha mesmo só de mencionar o termo. Queria brevemente indicar como se veio a criar esta situação. Antes de mais nada é fundamental a tese segundo a qual haveria entre o ser e o dever ser um abismo intransponível: do ser não poderia derivar um dever, porque se trataria de dois âmbitos absolutamente diversos. A base de tal opinião é a concepção positivista, quase geralmente adoptada hoje, de natureza. Se se considera a natureza – no dizer de Hans Kelsen – «um agregado de dados objectivos, unidos uns aos outros como causas e efeitos», então realmente dela não pode derivar qualquer indicação que seja de algum modo de carácter ético (Waldstein, op. cit., 15-21). Uma concepção positivista de natureza, que compreende a natureza de modo puramente funcional, tal como a conhecem as ciências naturais, não pode criar qualquer ponte para a ética e o direito, mas suscitar de novo respostas apenas funcionais. Entretanto o mesmo vale para a razão numa visão positivista, que é considerada por muitos como a única visão científica. Segundo ela, o que não é verificável ou falsificável  não entra no âmbito da razão em sentido estrito. Por isso, a ética e a religião devem ser atribuídas ao âmbito subjectivo, caindo fora do âmbito da razão no sentido estrito do termo. Onde vigora o domínio exclusivo da razão positivista – e tal é, em grande parte, o caso da nossa consciência pública –, as fontes clássicas de conhecimento da ética e do direito são postas fora de jogo. Esta é uma situação dramática que interessa a todos e sobre a qual é necessário um debate público; convidar urgentemente para ele é uma intenção essencial deste discurso.

O conceito positivista de natureza e de razão, a visão positivista do mundo é, no seu conjunto, uma parcela grandiosa do conhecimento humano e da capacidade humana, à qual não devemos de modo algum renunciar. Mas ela mesma no seu conjunto não é uma cultura que corresponda e seja suficiente ao ser humano em toda a sua amplitude. Onde a razão positivista se considera como a única cultura suficiente, relegando todas as outras realidades culturais para o estado de subculturas, aquela diminui o homem, antes, ameaça a sua humanidade. Digo isto pensando precisamente na Europa, onde vastos ambientes procuram reconhecer apenas o positivismo como cultura comum e como fundamento comum para a formação do direito, reduzindo todas as outras convicções e os outros valores da nossa cultura ao estado de uma subcultura. Assim coloca-se a Europa, face às outras culturas do mundo, numa condição de falta de cultura e suscitam-se, ao mesmo tempo, correntes extremistas e radicais. A razão positivista, que se apresenta de modo exclusivista e não é capaz de perceber algo para além do que é funcional, assemelha-se aos edifícios de cimento armado sem janelas, nos quais nos damos o clima e a luz por nós mesmos e já não queremos receber estes dois elementos do amplo mundo de Deus. E no entanto não podemos iludir-nos, pois em tal mundo autoconstruído bebemos em segredo e igualmente nos “recursos” de Deus, que transformamos em produtos nossos. É preciso tornar a abrir as janelas, devemos olhar de novo a vastidão do mundo, o céu e a terra e aprender a usar tudo isto de modo justo.

Mas, como fazê-lo? Como encontramos a entrada justa na vastidão, no conjunto? Como pode a razão reencontrar a sua grandeza sem escorregar no irracional? Como pode a natureza aparecer novamente na sua verdadeira profundidade, nas suas exigências e com as suas indicações? Chamo à memória um processo da história política recente, esperando não ser mal entendido nem suscitar demasiadas polémicas unilaterais. Diria que o aparecimento do movimento ecológico na política alemã a partir dos Anos Setenta, apesar de não ter talvez aberto janelas, todavia foi, e continua a ser, um grito que anela por ar fresco, um grito que não se pode ignorar nem acantonar, porque se vislumbra nele muita irracionalidade. Pessoas jovens deram-se conta de que, nas nossas relações com a natureza, há algo que não está bem; que a matéria não é apenas uma material para nossa feitura, mas a própria terra traz em si a sua dignidade e devemos seguir as suas indicações. É claro que aqui não faço propaganda por um determinado partido político; nada me seria mais alheio do que isso. Quando na nossa relação com a realidade há qualquer coisa que não funciona, então devemos todos reflectir seriamente sobre o conjunto e todos somos reenviados à questão acerca dos fundamentos da nossa própria cultura. Seja-me permitido deter-me um momento mais neste ponto. A importância da ecologia é agora indiscutível. Devemos ouvir a linguagem da natureza e responder-lhe coerentemente. Mas quero insistir num ponto que – a meu ver –, hoje como ontem, é descurado: existe também uma ecologia do homem. Também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece. O homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza, e a sua vontade é justa quando respeita a natureza e a escuta e quando se aceita a si mesmo por aquilo que é e que não se criou por si mesmo. Assim mesmo, e só assim, é que se realiza a verdadeira liberdade humana.

Voltemos aos conceitos fundamentais de natureza e razão, donde partíramos. O grande teórico do positivismo jurídico, Kelsen, em 1965 – com a idade de 84 anos (consola-me o facto de ver que, aos 84 anos, ainda se é capaz de pensar algo de razoável) –, abandonou o dualismo entre ser e dever ser. Antes, ele tinha dito que as normas só podem derivar da vontade. Consequentemente – acrescenta ele – a natureza só poderia conter em si mesma normas, se uma vontade tivesse colocado nela estas normas. Mas isto – diz ele – pressuporia um Deus criador, cuja vontade se inseriu na natureza. «Discutir sobre a verdade desta fé é absolutamente vão» – observa ele a tal propósito (citado segundo Waldstein, op.cit., 19). Mas sê-lo-á verdadeiramente? – apetece-me perguntar. É verdadeiramente desprovido de sentido reflectir se a razão objectiva que se manifesta na natureza não pressuponha uma Razão criadora, um Creator Spiritus?

Aqui deveria vir em nossa ajuda o património cultural da Europa. Foi na base da convicção sobre a existência de um Deus criador que se desenvolveram a ideia dos direitos humanos, a ideia da igualdade de todos os homens perante a lei, o conhecimento da inviolabilidade da dignidade humana em cada pessoa e a consciência da responsabilidade dos homens pelo seu agir. Estes conhecimentos da razão constituem a nossa memória cultural. Ignorá-la ou considerá-la como mero passado seria uma amputação da nossa cultura no seu todo e privá-la-ia da sua integralidade. A cultura da Europa nasceu do encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma, do encontro entre a fé no Deus de Israel, a razão filosófica dos Gregos e o pensamento jurídico de Roma. Este tríplice encontro forma a identidade íntima da Europa. Na consciência da responsabilidade do homem diante de Deus e no reconhecimento da dignidade inviolável do homem, de cada homem, este encontro fixou critérios do direito, cuja defesa é nossa tarefa neste momento histórico.
Ao jovem rei Salomão, na hora de assumir o poder, foi concedido formular um seu pedido. Que sucederia se nos fosse concedido a nós, legisladores de hoje, fazer um pedido? O que é que pediríamos? Penso que também hoje, em última análise, nada mais poderíamos desejar que um coração dócil, a capacidade de distinguir o bem do mal e, deste modo, estabelecer um direito verdadeiro, servir a justiça e a paz. Agradeço-vos pela vossa atenção!
 Fonte: vatican.va

“Vivemos em paz com nossos vizinhos há mais de 140 anos” (Dilma na ONU), mas temos uma indústria bélica próspera e armamos ditadores.

“O Brasil é um vetor de paz” (Dilma na ONU),
mas a paz ainda não chegou aos Guarani Kaiowá
 da terra Laranjeira Nhanderu (MS)!

 "Yes, nós temos indústria bélica, mas armas não são bananas; não se pode vendê-las sem atentar para o provável uso que terão", escreve Daniel Mack, coordenador de políticas da área de controle de armas do Instituto “Sou da Paz”, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 22-09-2011.

A comandante da paz


Eis o artigo.

Entre os escombros deixados pela insurreição na Líbia figuram centenas de pistolas Taurus, brasileiríssimas, em depósito de Muammar Gaddafi. Surpresa? Nenhuma: o Brasil não tem um histórico de extrema prudência quando se trata de suas exportações bélicas. Mas há luz no fim do túnel.
O país vendeu US$ 10 milhões em armamento à Líbia durante a década de 1980. Não sabemos a quantas andou o comércio desde então (considerando que, no intervalo entre 1992 e 2003, vigorou um embargo), mas as armas podem ter sido comercializadas por (ou desviadas de) países vizinhos: Argélia, Tunísia e Egito foram alguns dos que compraram recentemente armas fabricadas no Brasil.
Infelizmente, armar repressores não é raro. Não é necessário clarividência para perceber certas coisas:
já não era infame o ditador Robert Mugabe em 2003, quando o Brasil vendeu ao Zimbábue controlado por ele mais de US$ 2 milhões em munição? O egípcio Hosni Mubarak não era um sabido repressor em 2009, quando adquiriu armas brasileiras? Terão as 50 mil armas exportadas para o Iêmen entre 2000 e 2008 sido usadas na repressão contra o recente levante popular naquela nação?
Também armas de guerra o Brasil parece vender a esmo: em 2010, exportou à Malásia um sistema de bombas cluster, hoje vedado por tratado que o Brasil se recusa a assinar. Dois anos antes, uma carga de cem mísseis havia sido negociada com o Paquistão.
Nem sabemos como se chega a cada decisão, regida pela Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar, documento secreto elaborado em plena ditadura (1964-1985). Paira uma dúvida sobre a maneira como o Ministério da Defesa e o Itamaraty conduzem o processo, sobre a sorte de critérios a guiá-los.
Que o sigilo nessa matéria não seja eterno.
Yes, nós temos indústria bélica, mas armas não são bananas. Não se pode vendê-las sem levar em conta a provável finalidade com que serão usadas.
Esses itens não entram na lógica do "quanto mais, melhor" do comércio internacional - já que são concebidos para gerar dano a seres humanos. Podemos vender Bananas a quem quiser comprar - armas, só para quem sabe usar.
A indústria precisa mesmo dessas transferências irresponsáveis - e o governo federal, do custo político de autorizá-las- se, só no ano de 2009, vendeu quase 1 milhão de armas para os Estados Unidos e na vizinhança de 30 milhões de munições para o Reino Unido?
A pergunta que urge fazer é: queremos armas brasileiras em mãos responsáveis ou com sérios riscos de serem usadas em massacres de civis em países não democráticos ou conflituosos?
A boa notícia é que a situação está prestes a mudar. Em julho do ano que vem, será negociado no âmbito da Organização das Nações Unidas um tratado sobre o comércio de armas, o Arms Trade Treaty (ATT).
A ideia é criar regras globais para a transferência internacional desses itens: entram em sua jurisdição desde pistolas e munições até mísseis e tanques. Bem negociado, o ATT tornaria ilegais transferências "irresponsáveis", a partir de análises de risco caso a caso sob o prisma de direitos humanos e probabilidade de desvios, entre alguns outros critérios.
O Brasil tem participado do processo, que corre desde 2006, de forma tímida -sem a liderança esperada dadas a relevância da violência armada e da indústria de armas no país. Por vezes, o governo parece dar maior valor a aspectos comerciais do que àqueles que dizem respeito à segurança humana.
Que as armas "made in Brazil" de Gaddafi reforcem a disposição do país por um tratado que evite a compra livre de armas por parte de ditadores e sanguinários.
Resignação? Despejo paira sobre
 Laranjeira Nhanderu pela terceira vez
   
As bombas cluster (palavra em inglês que pode ser traduzida por cacho), segundo http://soudapaz.org são uma espécie de caixa cheia de explosivos. Cada bomba contém centenas ou milhares de pequenos explosivos, que têm entre o tamanho de um saco de chá (100 gramas) e uma granada (1 quilo). Ao ser lançada por um avião, a bomba se abre antes de chegar ao solo e os explosivos se espalham por uma área de cerca de 28 mil metros quadrados, equivalente a quatro campos de futebol. A área-alvo é pulverizada, mas raramente todos os explosivos são detonados ao tocar o solo. Em média, 10% falham e passam a funcionar como minas terrestres, capazes de matar e mutilar civis. “Essa arma contraria os princípios humanitários. Os civis viram vítimas da bomba mesmo décadas depois do fim da guerra”, diz Silvia Backes, representante da Cruz Vermelha no Brasil.


1 As bombas cluster são lançadas por aviões. Elas carregam em seu interior milhares de explosivos
2 Ainda no ar, as bombas liberam os explosivos. Eles podem se espalhar por uma área de até 28 mil m2, equivalente a quatro campos de futebol
3 Cerca de 90% dos explosivos são detonados ao tocar o solo. Os que não explodem passam a funcionar como minas terrestres. Os explosivos de 100 gramas, do tamanho de um saquinho de chá, podem provocar amputações. Os de 1 quilo, do tamanho de uma granada, matam

NOTA BENE:

- 13.300 civis já morreram ou ficaram feridos por bombas cluster;

- 1 bilhão de bombas cluster estão nos estoques somente dos EUA;

- 95 países já assinaram o Tratado de Oslo para banir as bombas cluster.

Religiosidade e migração religiosa no Brasil

"Uma só religião, para mim é pouca"



"Reza é que sara da loucura. (...) Muita religião, seu moço! Eu , não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma , para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matías é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca .

[ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 13 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1979, p.15]

Na última semana do mês de agosto de 2011 foram publicados os dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Tais dados trazem algumas informações interessantes sobre a religiosidade do povo brasileiro.

O primeiro aspecto da pesquisa que chama a atenção é o aumento das pessoas que não mantêm vínculos com a sua crença. Declaram-se pertencentes a uma denominação religiosa, mas reconhecem que não são praticantes. Entre os católicos isso já era bem visível. A novidade está por conta dos evangélicos, onde os não praticantes passaram de 0,7% para 2,9%.


Tal situação revela que as pessoas, cada vez mais, constroem sua religiosidade sem se preocupar com o que dizem as suas instituições religiosas. Vale a interpretação pessoal e não a orientação das lideranças e das igrejas. Para as instituições religiosas isso representa um grande desafio, uma vez que tal fenômeno enfraquece o poder de controle sobre as pessoas e de transmissão das tradições religiosas. Pode ser o início do fim de muitas igrejas e religiões, pelo menos em determinadas partes do mundo.

Embora não seja totalmente uma novidade, uma vez que o fenômeno já vem de algum tempo, um segundo elemento bem significativo é o aumento do trânsito religioso. Trata-se da circulação de fiéis por diferentes denominações religiosas. As pesquisas apontam que pelo menos 53% dos brasileiros e das brasileiras já circularam por mais de uma denominação religiosa. A mobilidade entre os evangélicos chega a quase 40% dos adeptos de igrejas pentecostais e neopentecostais. Essa religiosidade funciona como um ônibus circular: tem sempre gente entrando e saindo. Isso revela a incapacidade cada vez maior de atrair e de segurar os fiéis, por parte das instituições e lideranças religiosas. As pessoas não se fixam mais nas instituições religiosas, mas exercitam o poder de livre escolha, como fazem para tantas outras questões. Há o afrouxamento dos vínculos e dos compromissos. As diferentes denominações não conseuem mais “segurar” seus adeptos. São incapazes de levar o fiel a aderir aos seus credos de modo permanente ou definitivo.

É claro que tal fenômeno tem a ver com a pós-modernidade, período em que tudo o que é sólido "se desmancha no ar”. Mas revela também uma profunda crise interna das instituições religiosas. Elas não exercem mais poder de atração sobre os fiéis que nelas estão ou chegam. Mostra como seus processos pedagógicos e metodológicos não mais funcionam para os tempos atuais. Precisam encontrar alternativas. Mas isso continua muito difícil, uma vez que tais instituições, diante de fenômenos como esses que a pesquisa menciona, ao invés de buscarem outros caminhos, se fecham nos casulos do fundamentalismo e do conservadorismo. Elas continuam rígidas, fechadas, intransigentes e insensíveis aos verdadeiros problemas das pessoas que pedem mais flexibilidade, compreensão, misericórdia, perdão e ternura.

Um terceiro dado revelado pela pesquisa mostra que são as mulheres a mudarem de religião com mais frequência. E fazem isso mais por razões altruístas do que por motivos pessoais. As razões vão desde a recuperação de um casamento até a preocupação com um filho ou um parente doente. Já os homens mudam de religião na tentativa de resolver questões pessoais. Também aqui aparece a crise das instituições. Fazem muito barulho na mídia e nos templos, mas na prática não acompanham e nem seguem de perto os seus fiéis. Há rebanhões, encontros de massas, concentrações, acampamentos, mas as pessoas continuam se sentindo sozinhas, abandonadas. Por isso vivem mudando de religião, de igreja, na tentativa desesperada de encontrar alguém que as ajude e escute concretamente.

A atual política das igrejas é de arrebanhar multidões e não de solidariedade, de escuta e de oferecer apoio real às pessoas. Essas continuam se sentindo sozinhas e sem ninguém. Os templos religiosos se tornaram supermercados da fé, onde se vendem "kits de salvação” a preços diferenciados, segundo o poder aquisitivo de seus fiéis. As igrejas se tornaram agências de prestação de serviços religiosos. O marketing e a propaganda atraem os fiéis para que comprem os kits. Mas, ao experimentarem os produtos, os fiéis descobrem que eles não passam de propaganda enganosa, uma vez que a vida não muda num passe de mágica, com o consumo de um produto religioso. Por isso vão à busca de outros kits, na esperança de um dia encontrar algum "elixir milagreiro” ou uma medalhinha que resolva todos os seus problemas.

Há mais um dado que me chamou muito a atenção: o crescimento no Brasil da religião mulçumana. Pesquisas revelam que o número de convertidos na comunidade mulçumana do Rio de Janeiro pulou de 15% em 1997 para 85% em 2009. Segundo os dados, a conversão de brasileiros para o islã cresceu em 25%. Em Salvador, 70% da comunidade mulçumana são de pessoas convertidas. O crescimento se dá não obstante toda a propaganda anti-islâmica desenvolvida pelos países ocidentais, liderados pelos Estados Unidos. A pesquisa está em consonância com os dados mundiais. Segundo algumas estimativas, em 2050, os mulçumanos serão a maior religião da Europa em número de fiéis.




 
O que faz uma religião tão perseguida, e tida como perigosa para a liberdade e a democracia, crescer de modo tão acelerado? Alguns pesquisadores acreditam que as pessoas estão se dando conta de que o islã não é esse "bicho-papão” pintado pela propaganda ocidental. Sua religiosidade permite maior compreensão de certos problemas, inclusive mundiais, que outras formas de religiosidade não conseguem oferecer. Ele se apresenta como uma religião menos intransigente do que aquilo que se pinta na propaganda midiática. Por outro lado, oferece mais solidez e motivações do que as religiões tradicionais do país.

Portanto, o perfil da religiosidade brasileira aponta para uma autonomia religiosa dos fiéis. Estamos cada vez mais deixando de lado a fé institucionalizada para abraçar uma religiosidade mutante, híbrida e pouco ortodoxa. Os contornos religiosos são escritos a lápis para serem apagados e refeitos sempre que for preciso. Quem sabe seja a oportunidade para que as instituições religiosas, acostumadas a tratar seus fiéis como simples "cordeirinhos”, aproveitem para fazer revisão de suas práticas, começando a enxergar o óbvio: hoje as pessoas querem ser autônomas e livres. Não mais aceitam ser amarradas pelo "cabresto” das lideranças religiosas.
José Lisboa Moreira de Oliveira

[O autor é filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília. Fonte integral na Adital.]

Apelo ao bom senso: Padres austríacos propõem e praticam reformas

Salvação sem privilégios - suprema lei

Párocos, vigários, diáconos, a maior parte com idade avançada, alguns aposentados, mas não menos determinados "a mover as águas" dentro da Igreja Católica. No total, 337 membros do clero austríaco defendem um "convite à desobediência". O apelo é promovido por uma associação de padres diocesanos, para os quais "a recusa de Roma de realizar reformas tão esperadas e a inércia dos bispos não apenas permite, mas também exige que se siga a própria consciência e se aja em consequência".

[Publicamos aqui o Apelo à Desobediência da Iniciativa dos Párocos Austríacos. O texto foi publicado na página da iniciativa, www.pfarrer-initiative.at, 19-06-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.]

 Eis o texto do “Manifesto de Párocos Austríacos”:

 A recusa de Roma a uma reforma da Igreja há muito esperada e a inatividade dos nossos bispos não só nos permitem, mas também nos obrigam a seguir a nossa consciência e a agir de forma independente.
Nós, padres, queremos estabelecer, no futuro, os seguintes sinais:

 1. Rezaremos, no futuro, em todas as Missas, uma oração pela reforma da Igreja. Levaremos a sério a palavra da Bíblia: pedi e receberei. Diante de Deus, existe a liberdade de expressão.

2. Não recusaremos, em princípio, a Eucaristia aos fiéis de boa vontade. Isso é especialmente verdadeiro aos divorciados de segunda união, aos membros de outras Igrejas cristãs e, em alguns casos, também aos católicos que abandonaram a Igreja.

3. Evitaremos celebrar, se possível, nos domingos e dias de festa, mais de uma Missa ou de encarregar padres em viagem ou não residentes. É melhor uma liturgia da Palavra organizada localmente do que turnês litúrgicas.

4. No futuro, vamos considerar uma liturgia da Palavra com distribuição da comunhão como uma "Eucaristia sem padre", e assim nós a chamaremos. Dessa forma, cumpriremos a nossa obrigação dominical em tempos de escassez de padres.

5. Rejeitaremos também a proibição da pregar estabelecida para leigos competentes e qualificados e para professoras de religião. Especialmente em tempos difíceis, é necessário anunciar a Palavra de Deus.

6. Comprometer-nos-emos a que cada paróquia tenha o seu próprio superior: homem ou mulher, casado ou solteiro, de tempo integral ou parcial. Isso, no entanto, não por meio das fusões de paróquias, mas sim mediante um novo modelo de padre.

7. Por isso, vamos aproveitar todas as oportunidades para nos manifestar publicamente em favor da ordenação de mulheres e e de pessoas casadas. Vemo-los como colegas, e colegas bem-vindos, ao serviço pastoral.

Além disso, sentimo-nos solidários com aqueles colegas que, por causa do seu casamento, não podem mais exercer as suas funções, mas também com aqueles que, apesar de um relacionamento, continuam prestando seu serviço como padres.

Ambos os grupos, com sua decisão, seguem a sua consciência – como nós fazemos com o nosso protesto. Nós os vemos, assim como o papa e os bispos, como "nossos irmãos". Não sabemos o que mais deve ser um "coirmão". Um é o nosso Mestre – mas somos todos irmãos. "E irmãs" – se deveria dizer, no entanto, entre os cristãs e cristãos.

É por isso que queremos nos levantar, é isso que queremos que aconteça, é por isso que queremos rezar. Amém.

Domingo da Trindade, 19 de junho de 2011

As comunidades têm um direito à Eucaristia
Publicado no dia 19 de junho, por ocasião da Festa da Santíssima Trindade, o "protesto" proveniente da base da Igreja austríaca, teve depois um vasto eco midiático em todo o país. De acordo com uma pesquisa realizada pelo instituto Ökonsult, mais do que 71% dos austríacos consideram "justa e adequada" a iniciativa promovida pelo Pe. Helmut Schüller, ex-vigário-geral de Viena e diretor da Cáritas Austríaca.

O convite a desobedecer informa em preto e branco que os padres signatários irão dar a comunhão aos divorciados em segunda união e aos membros de outras Igrejas cristãs. Que deixarão leigos competentes pregarem, "incluindo professoras de religião". E que irão aproveitar todas as oportunidades para falar publicamente em favor da ordenação de mulheres e de pessoas casadas.

Há o suficiente para constranger o episcopado austríaco e, em primeiro lugar, o cardeal Christoph Schönborn, do qual o Pe. Schüller foi estreito colaborador. O arcebispo de Viena publicou no dia 7 de julho uma longa resposta ao manifesto na revista da diocese. Dizendo-se "chocado" com o convite dos padres dissidentes, o cardeal austríaco, próximo de Bento XVI, se mostra aberto ao diálogo no "sinal de estima recíproca", mas também avisa: "Aquele que, com uma consciência examinada, tem a convicção de que 'Roma' está em um caminho errado, que contradiz gravemente a vontade de Deus, deveria, ao contrário, tirar a conclusão de que não caminha mais junto à Igreja Católica Romana".

O cardeal Schönborn se recusa a tirar a conclusão da desobediência aberta, latente, nos fatos que ocorrem desde 2006, data da criação da associação desses padres reformadores. Depois de ter recebido no dia 10 de agosto passado, em um café da manhã, os quatro protagonistas da atual rebelião, entre os quais o Pe. Schüller, o arcebispo de Viena irá continuar a discussão no outono [europeu].

Para o cardeal dominicano, o apelo dos padres convida sobretudo a uma maior pedagogia com relação aos 5,5 milhões os católicos que a Igreja Católica conta oficialmente nesse país, em uma população de 8 milhões de habitantes. Ainda ferida pelo caso de Dom Groër – controversa nomeação em Viena desse arcebispo que teve que renunciar no final – e mais recentemente pelo escândalo dos abusos sexuais, a Igreja austríaca registrou no ano passado 80 mil abandonos.

"O cardeal (Schönborn) não pode resolver esse problema sozinho. Todos, bispos, abades, padres, representantes da iniciativa dos padres, devem discutir juntos o problema", afirmou Dom Martin Felhofer, influente abade na Áustria, que não hesitou em evocar o "risco de um cisma" no país. O movimento liderado pelo Pe. Schüller se opõe a "reunificar as paróquias" e promete, no seu manifesto, a solução alternativa das assembleias eucarísticas sem padres e de confiar a direção de cada paróquia a “um homem ou mulher, casado ou não, de tempo integral ou parcial".
[A reportagem é de Sébastien Maillard, publicada no jornal francês
 La Croix,07-09-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto da Unisinos.]