Bergoglio, um papa sem medo, tanto no Vaticano, como no Rio de Janeiro


“Se não tem medo no Vaticano, por que terá aqui?”. Marina está feliz. Acaba de chegar de Buenos Aires, depois de mais de 50 horas de viagem num ônibus, junto com outras centenas de jovens que não queriam perder por nada no mundo o encontro, no Rio de Janeiro, com seu compatriota Francisco. Ela, com 18 anos, fazia parte da multidão que na segunda-feira à tarde cercou Jorge Mario Bergoglio no trajeto do aeroporto à Catedral. Marina disse que, embora as imagens retransmitidas ao vivo por um helicóptero da televisão pudessem causar preocupação e até medo, a sensação sobre o fato é muito diferente.
 A reportagem é de Pablo Ordaz,
publicada no jornal El País, 23-07-2013.

 “As pessoas não esperavam ver o Papa tão de perto, num carro pequeno, com o vidro aberto, sorrindo, e houve uma reação lógica, festiva, de ir abraçá-lo. Contudo, eu garanto que em nenhum momento houve perigo. Como o Papa vai ter medo das pessoas que o querem?”.
A resposta não é tão simples. Dias antes da chegada do Papa ao Brasil, vinha se falando do difícil equilíbrio entre os anseios de Bergoglio – nada de carros blindados, nem de ruas tomadas militarmente – e a lógica preocupação daqueles que precisam garantir sua segurança numa cidade e num país envolvidos num contínuo protesto, unido ao seu crônico problema de segurança para os cidadãos. Embora o papa Francisco tenha uma mensagem de ruptura, mais próxima dos indignados do que daqueles que os governam, dos pobres do que daqueles que se beneficiam da desigualdade, não deixa de ser um chefe de Estado e o líder de uma Igreja que representa, como nenhuma outra, o poder e a riqueza.
Os incidentes de segunda-feira – provocados por um erro eventual daqueles que deveriam abrir-lhe o caminho entre o aeroporto e a Catedral – serviram, não obstante, para reforçar a imagem de simplicidade de quem, seja entre as pessoas que o querem ou entre as intrigas vaticanas, não perde o sorriso, nem a determinação.
 A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) – que foi inaugurada oficialmente, na terça-feira, com uma missa na praia de Copacabana e com 355.000 inscritos – supõe para o Papa uma baforada de ar fresco em relação aos dias difíceis vividos no Vaticano. A detenção de monsenhor Nunzio Scarano, envolvido junto com um agente da bolsa e um antigo espião numa operação de tráfico de dinheiro sujo, e as notícias que revelam o passado obscuro de dom Battista Ricca, seu recém-nomeado homem de confiança no Instituto para as Obras de religião (IOR), deixam claro que os venenos que amargaram os últimos dias de Bento XVI não desapareceram. Muito pelo contrário. Joseph Ratzinger era um intelectual tímido, isolado e bloqueado pela Cúria. Jorge Mario Bergoglio, ao contrário, já deu mostras de que não tremerá o pulso na hora de reformar ou eliminar, caso necessário, o banco do Vaticano ou as viciadas estruturas econômicas do Vaticano.
Para ninguém do entorno de Francisco passou despercebido que, na segunda-feira pela manhã, quando subiu as escadarias do avião que o traria para o Rio de Janeiro, ele carregava pessoalmente uma volumosa maleta preta com sua documentação pessoal. Essa que, ainda, não pode confiar a ninguém. No seu retorno para Roma, continuará mudando, enquanto o deixarem, as vigas enfermas da Igreja.

Padrão Fifa - na Educação, na Saúde, no Transporte


Carta Aberta à Sociedade
 
 
 
Prioridade Padrão Fifa
 Fifa Padrão (FP)
 Há tempos o futebol deixou de ser somente uma saudável prática esportiva. Muitas vezes, no lugar do espírito esportivo, são impostos à organização desse esporte uma série de interesses econômicos e políticos. Futebol virou mercadoria e sua finalidade o lucro. A entidade máxima do futebol mundial, a FIFA, tem como verdadeiro objetivo aumentar seu já milionário patrimônio. Uma série de escândalos tornou pública a forma corrupta como essa entidade age. É nesse contexto que o Brasil vai sediar a Copa de 2014. Com superpoderes, a FIFA impôs uma série de requisitos para ser cumprido. Essas exigências fazem parte da rentabilidade que a entidade e suas empresas parceiras terão com a realização do evento. Na prática, não deixarão nenhum legado social positivo. Pelo contrário, fatos históricos (África do Sul, entre outros) apontam para outra direção.
 

Nós, cidadãos e cidadãs, que trabalhamos e pagamos impostos, perguntamos: é justo uma entidade corrupta ditar o quê o país deve fazer? Deve o Estado brasileiro se submeter aos seus ditames? Vale gastar tantos recursos públicos em um evento que dura apenas um mês? Fica cada vez mais evidente que quem ganhará com a realização da Copa é o setor imobiliário; as incorporadoras e as empreiteiras lucrarão com as obras e serviços a serem realizados e com a especulação imobiliária. Através de seu poder econômico e político, esses setores pressionam o Estado para usufruir enormes somas de dinheiro público em benefício próprio. Observamos a repetição de histórias trágicas: superfaturamentos; falta de transparência; agressões aos direitos humanos; repressão aos pobres; despejos forçados e desrespeito com a população em geral.
 


A Copa acelera dois processos já em curso: a repressão aos pobres e aos movimentos populares e a supervalorização fundiária. Isso em todas as cidades-sede da Copa. A Copa não pode servir de pretexto para o aumento de políticas repressivas e contribuir para o agravamento de problemas como o da moradia. Temos problemas sérios como o assassinato de jovens da periferia, principalmente de jovens negros e negras, a violência generalizada contra as mulheres, os/as trabalhadores/as formais e informais e os movimentos sociais. Cabe lembrar que, durante a Copa realizada na África do Sul, houve um grande aumento do tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para a exploração sexual. [...]
 


No caso da cidade de São Paulo, é mentiroso o argumento de que o Estádio em Itaquera trará benefícios para toda a zona leste. O desenvolvimento da zona leste é obrigação do Estado, uma dívida histórica que este tem em prover saúde, educação, moradia, políticas para a infância e a juventude, desenvolvimento urbano e transporte de qualidade. Essas responsabilidades não devem estar atreladas à Copa, dado os interesses privados que esse evento comporta.
O Estádio é importante, mas é mais do que perverso se apropriar da paixão da torcida para justificar uma obra que só trará lucros a alguns setores; que o empenho para a construção do Estádio seja maior que o empenho para a construção da Universidade Federal da Zona Leste; que seja motivo para construir mais avenidas na região, com o transporte público, inclusive o metrô, já completamente saturados. [...]
O Comitê Popular da Copa/SP é formado por entidades e organizações populares. Como trabalhadores/as organizados/as, temos um projeto de sociedade e de cidade diferente do que está sendo imposto. Não admitimos desrespeito às leis, acordos obscuros e violação aos direitos humanos. Contamos com o apoio de todas as entidades, órgãos da imprensa e setores da população preocupados com os rumos que a organização da Copa está tomando.
    *Pelo fim dos despejos e das remoções!
    *Por moradia digna para toda a população!
    *Por políticas públicas para a população de rua!
    *Por políticas públicas para a juventude!
    *Pelo fim de todas as formas de violência e exploração das mulheres!
    *Pelo fim da violência policial e do genocídio da população negra e pobre!
    *Por trabalho decente e salário justo!
    *Pelo fim da perseguição aos trabalhadores informais!
    *Por educação pública, universal e de qualidade!
    *Pela universidade pública (UNIFESP) com cotas sociais e raciais!
    *Por transporte público, barato e de qualidade para toda a população!
    *Por saúde pública de qualidade pra toda a população!
    *Que todos possam usufruir o direito à cidade!
    *Por uma Copa com verdadeiro legado social!
    *Pela transparência e acesso à informação!
    *Pelo fim da elitização do futebol!
 
Comitê Popular da Copa SP

Dilma cede à pressão dos ruralistas e rifa os direitos indígenas, diz antropóloga da USP


Ricardo Mendonça, F.d.S.P.

 

A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, uma das mais influentes estudiosas da questão indígena no país, acusa a gestão Dilma Rousseff de promover um desenvolvimentismo de "caráter selvagem", sem "barreiras que atendam a imperativos de justiça, direitos humanos e conservação". Após citar "uma ofensiva sem precedentes no Congresso contra os índios", ela chama a atenção para um projeto de lei --alçado ao status de urgência "com o beneplácito do líder do governo"-- que permitiria o uso de terras indígenas para diversas finalidades, da construção de hidrelétricas à reforma agrária. "Se passar, será a destruição dos direitos territoriais indígenas", diz.
Outro alerta é para a proposta que tenta tirar do Executivo a responsabilidade exclusiva pelas demarcações, passando atribuições ao Congresso. Isso, diz, fará com que a demarcação "deixe de ser uma atividade de caráter eminentemente técnico e passe a ser exclusivamente político". Cunha também tem críticas ao Judiciário. Ela fala numa "tendência crescente e preocupante" de paralisar processos de demarcação em seu início. E estima que, hoje, 90% das terras em fase de demarcação estão judicializadas.
Folha - O que distingue o governo Dilma dos anteriores na questão indígena?
 Manuela Carneiro da Cunha - Já disse em outra ocasião que neste governo a mão direita e a mão esquerda parecem se ignorar. A esquerda promove uma maior justiça social; a direita promove um chamado desenvolvimento sem qualquer limite.
O problema não é o desenvolvimentismo em si, mas seu caráter selvagem: a ausência de barreiras que atendam a imperativos de justiça, de direitos humanos, de conservação. Custos humanos e ambientais não estão sendo considerados.
Assiste-se agora a uma ofensiva sem precedentes no Congresso contra os índios. São vários projetos que destroem garantias que a Constituição de 1988 assegurou. E a União, que é a tutora, portanto a protetora dos direitos indígenas, não se ergue contra isso.
A própria AGU (Advocacia-Geral da União), que se pautava por uma tradição de defesa dos direitos indígenas, se aliou à bancada ruralista quando editou a infeliz portaria 303 (norma que estende para todas as demarcações as 19 condicionantes criadas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, de Roraima).
Como interpretar as recentes ações do governo?
 Adotando uma interpretação caridosa, eu diria que o governo cede a pressões dos ruralistas, e rifa os direitos indígenas em troca de apoio.
Assim, na última quarta deu-se uma manobra escandalosa na Câmara: aprovou-se colocar em votação por acordo de líderes, e com o beneplácito do líder do governo, o regime de urgência para o Projeto de Lei Complementar 227/2012, que regulamentaria o parágrafo 6 do artigo 231 da Constituição, aquele que trata das terras indígenas.
O que significa?
 
Esse parágrafo abre uma exceção nos direitos de posse e usufruto exclusivo dos índios quando se tratar de relevante interesse da União.
O projeto, de autoria do vice-presidente da Confederação Nacional da Agricultura, pretende definir o que seria relevante interesse público da União. É assombrosa essa definição: praticamente tudo nela cabe. Permitiria que em terras indígenas passassem estradas, oleodutos, linhas de transmissão, hidrelétricas, ferrovias.

Pela primeira vez a Dilma ouviu os líderes indígenas
Permitiria que se concedessem áreas a terceiros em faixas de fronteira, que se mantivessem posseiros, agrupamentos urbanos, assentamentos de reforma agrária e até novos assentamentos. Permitiria que se mantivessem todas as terras sob domínio privado quando da promulgação da Constituição de 1988.
Permitiria tudo?
 Esta cláusula seria o equivalente da anistia que os ruralistas conseguiram no Código Florestal. Mas dessa vez não se trataria de escapar de multas e de ter de recompor paisagens degradadas. Seria legalizar e perpetuar o esbulho. Se uma lei como essa passar, será a destruição dos direitos territoriais indígenas.
As condicionantes do STF e a portaria da AGU que a senhora citou foram muito criticadas por indígenas e antropólogos. Quais são os problemas?

Várias dessas condicionantes surgiram como uma forma de permitir um consenso entre os ministros do STF em relação ao caso Raposa Serra do Sol. Quando a Advocacia-Geral da União quis estender a outros casos essas condicionantes, que ainda dependem de uma análise mais aprofundada do próprio Supremo, e que foram estabelecidas para aquele caso concreto, ela tentou consolidar abusivamente uma interpretação desfavorável aos índios.

Cite um exemplo
 Um exemplo é a alegada proibição de ampliação de terras indígenas. Essa condicionante se referia ao caso da Raposa, cuja demarcação havia sido validada pelo tribunal: não caberia ampliação de uma área recém demarcada. Quando se aplica essa mesma condição às terras guaranis, demarcadas em outro contexto, décadas atrás, fica evidente o absurdo. Nesse sentido, a portaria 303 é muito grave, pois denota uma intenção evidente de prejudicar os direitos indígenas em favor de interesses econômicos, contrariando toda a história da própria AGU, que sempre se destacou na defesa desses direitos.
O governo quer envolver a Embrapa, entre outros órgãos, nos processos de demarcação. Para alguns, há uma tentativa de enfraquecer a Funai. Qual a opinião da senhora?
 A presidenta parece estar cada vez mais refém do PMDB e do agronegócio, que se aliou aos evangélicos. Esse bloco se opõe ferozmente à demarcação e à desintrusão (retirada de invasores) das áreas indígenas.
Marta Azevedo (presidente da Funai que deixou o cargo em junho) anunciou desde sua posse que daria prioridade à situação nas regiões onde se concentram os interesses dos fazendeiros. Foi um feito no ano passado conseguir a desintrusão, após 20 anos, da área Xavante Marãiwatsede. Com isso, cutucou-se a onça com vara curta.
Há vários modos da mão direita do governo enfraquecer a causa dos índios. Uma é retirando atribuições da Funai. Outra é deixando-a sem dinheiro. E outra ainda é colocando como presidente alguém a serviço de outras agendas.
Corre o boato de que o senador Romero Jucá (PMDB-RR), que firmou sua carreira política como presidente da Funai e cuja atuação foi muito criticada, gostaria de colocar no posto uma pessoa sua.


Ganha força no Congresso a ideia de tirar do Executivo a responsabilidade exclusiva pelas demarcações. Que tal?

 Se a PEC 215 (Proposta de Emenda à Constituição) for aprovada, acabarão os processos de demarcação de terras indígenas, pois os direitos dessas minorias serão submetidos aos jogos de poder de todos os grupos de interesse representados no Congresso Nacional, sobretudo à poderosa bancada ruralista.
Seria colocar a raposa para cuidar do galinheiro. A demarcação deixa de ser uma atividade de caráter eminentemente técnico, como é hoje, e passa ser exclusivamente política.
Mas o Projeto de Lei Complementar 227/2012 (que define bens de interesse da União para fins de demarcação) é muito mais grave. É um rolo compressor esmagando a Constituição Federal.
 
Em que medida o Poder Judiciário é corresponsável pela demora nas demarcações e pelos conflitos?
Estima-se que que pelo menos 90% das terras em processo de demarcação estão judicializadas. As demoras são às vezes absurdas. No sul da Bahia, o caso Pataxó levou quase 100 anos para ser julgado pelo STF. No Mato Grosso do Sul existem casos que estão há mais de 30 anos em processos judiciais.

Há uma tendência crescente e preocupante do Judiciário de paralisar processos de demarcação administrativa logo em seu início, com base na simples apresentação de títulos de propriedade dos fazendeiros. Teses que há alguns anos atrás não vingavam, por não serem condizentes com a Constituição, começam a ganhar espaço no Judiciário.
Isso tem atrasado muitos processos demarcatórios, em todas as regiões do país, e contribuído para aumentar o grau de conflito em muitos casos. É o que vem ocorrendo no Mato Grosso do Sul.
Justiça que tarda não é justiça. No caso dos guaranis e caiovás do Mato Grosso do Sul, há gerações inteiras que nunca puderam viver sua cultura. A organização social tradicional não tinha como ser mantida, costumes e rituais ligados à cultura do milho não puderam ser realizados. Isso não seria etnocídio?
Há relação entre a morte de um terena no Mato Grosso do Sul por forças policiais numa reintegração de posse de uma área já declarada indígena e os protestos de mundurucus em Belo Monte, no Pará?
 Nos dois casos, a Polícia Federal atuou contra os índios, e isso é inédito. Mas a relação é mais profunda.
No Mato Grosso do Sul consumou-se um esbulho de terras que vitimou em particular os terenas e os caiovás. Estes, aliás, em situação muito pior do que a dos terenas. Esse mesmo processo, que já estava em vigor no chamado arco do desmatamento, no norte de Mato Grosso e sudeste do Pará, está agora atingindo o sudoeste do Pará e do Amazonas, ou seja, o Tapajós, onde vivem os mundurucus.
Em suma: os mundurucus podem bem ser os caiovás e terenas de amanhã. E os caiovás têm uma média de 0,5 hectare por família (índice considerado abaixo do mínimo necessário para a própria subsistência).
O governo anunciou que vai indenizar fazendeiros em Sidrolândia (MS) que estão em área já declarada de terenas. Antes, as autoridades diziam que não havia respaldo legal para esse tipo de solução. O que mudou?
 Não se trata de comprar terras, mas de indenizar os detentores de títulos de propriedade que, décadas atrás, foram irregularmente emitidos pela União.
Os títulos eram irregulares na medida em que incidiam sobre terras indígenas. Portanto, não se aplica a todas as áreas onde exista conflito com particulares, mas só naquelas onde a União está na origem do conflito, repassando terras indígenas a terceiros.




Para isso não é necessário mudar uma vírgula da legislação vigente. Depende apenas da consolidação de um entendimento jurídico pela AGU e de vontade política de desembolsar os recursos.
O que o ministro Gilberto Carvalho (Secretaria Geral) anunciou é a possibilidade de usar recursos do Tesouro para compensar por títulos de boa fé que alguns fazendeiros possuem em terras que estão judicializadas no Mato Grosso do Sul.

Os Estados também emitiram títulos sobre terras indígenas, e muito. No Mato Grosso do Sul, a Assembleia Legislativa aprovou por unanimidade a criação de um fundo para compensar em dinheiro títulos de boa fé em terras indígenas. É uma solução semelhante à que o governo federal está propondo. Mas o fundo do Mato Grosso do Sul não tem um tostão. No caso da União, já há uma emenda parlamentar aprovada que destina R$ 50 milhões para acordos.

O importante agora é priorizar os casos mais dramáticos que envolvem os caiovás. E impedir o favorecimento de grandes fazendeiros e a abertura de uma nova indústria de indenizações, que já sangrou o Tesouro na década de 80.


Gilberto Carvalho também disse que o Brasil está prestes a deixar a lista dos países acusados de desrespeitar a Convenção 169 da OIT, documento que prevê consulta prévia aos indígenas antes de decisões que possam afetar seus direitos, como a construção de hidrelétricas. Há motivo para comemorar?
A Secretaria Geral da Presidência vem fazendo um trabalho admirável dentro do governo, tentando promover a regulamentação da consulta prévia aos povos indígenas, como determina a Convenção 169. Mas falta combinar com o restante do governo, que age em sentido contrário.
Veja o caso da implantação de hidrelétricas goela abaixo dos povos indígenas no Tapajós: o governo diz que quer consultá-los sobre o complexo de hidrelétricas, mas ao mesmo tempo já marca data para o leilão e inclusive para a emissão da licença ambiental das que ele considera principais. Que consulta é essa?
Uma verdadeira consulta se dá nas comunidades -e não só com as lideranças ou organizações indígenas-, no tempo delas e em língua que elas entendam e possam se expressar. E não pode ser uma atividade pontual, e sim um processo que acompanhe todas as fases do projeto.
Se está tudo decidido de antemão, vai-se consultar os índios sobre o que? Se querem bolsa-pescado ou tanques de piscicultura depois que os peixes do rio sumirem? A cor da parede da barragem?
 Houve um aumento significativo da população indígena entre 1991 e 2000, conforme os Censos desses anos. Mas de 2000 a 2010, o crescimento foi proporcionalmente menor do que na população em geral. Alguma hipótese para essa "volatilidade demográfica"?
 Os demógrafos explicam esse fenômeno. A categoria "indígena" surgiu no Censo de 1991. Até então a maioria dos índios se declaravam pardos, e muitas vezes também negros ou brancos. Em 1991 e em 2000, houve uma grande migração: muitos que se declaravam anteriormente pardos passaram a se declarar indígenas.
Isso provavelmente incluía o que (o antropólogo) Darcy Ribeiro chamou de "índios genéricos", aqueles que, sendo descendentes de índios, não viviam em aldeias nem conheciam os povos a que pertenciam seus pais ou avós. É o que explicaria 60 mil pessoas que se declararam indígenas em São Paulo no Censo de 2000.
Já no Censo de 2010, é possível que o fato de se perguntar também a etnia e a língua indígena que se falava tenha inibido a auto-declaração desses descendentes de índios. Uma parte da variação resultou, portanto, do próprio Censo.
Mas, desde 1991, observa-se um crescimento demográfico maior da população indígena do que aquele da população não indígena.
O crescimento entre 1991 e 2000 foi da ordem de 3,5% ao ano em média, e o ocorrido entre 2000 e 2010 foi também dessa mesma ordem. Mas mantem-se um diferencial na mortalidade infantil: os indígenas ainda possuem uma taxa de mortalidade infantil muito maior do que aquela verificada entre os negros e brancos e amarelos.
 A ideia, como princípio, de que o índio tem direito à terra nunca foi muito questionada no Brasil, conforme a senhora mesmo já disse. A Constituição não só consolidou esse entendimento como estabeleceu prazo de cinco anos para todas as demarcações. Por que isso não foi resolvido até hoje?
 A legislação colonial e todas as constituições do Brasil sempre reconheceram os direitos dos índios a suas terras. Mas uma coisa é o princípio, outra sua aplicação. Na fábula clássica, o lobo encontra justificações sucessivas para devorar o carneiro. É que, como diz La Fontaine (escritor francês do século 17), "a razão do mais forte é sempre a melhor".
Estamos assistindo a um remake do Brasil passado, como se o século 20 nunca houvesse existido. Voltamos a ser exportadores de commodities, voltamos a explorar riquezas sem consideração pelos custos humanos e ambientais. E voltamos também ao expediente dos séculos 16 e 17: afirma-se o princípio, mas abrem-se exceções que o tornam inócuo.
É o que tenta fazer o Projeto de Lei 227/2012: define o relevante interesse da União com tal latitude que as garantias constitucionais dos índios se tornam letra morta.
 

Malala do Paquistão na ONU: “Nossos livros e canetas são nossas armas”.

 

Aos 13 anos, Malala Yousafzai alcançou notoriedade ao escrever um blog para a BBC sob o nome de Gul Makai, explicando sua vida sob o regime do Tehrik-i-Taliban Pakistan (TTP). O TTP, formado em 2007, é um grupo que reúne várias facções militantes operando nas regiões tribais do noroeste do Paquistão, perto da fronteira com o Afeganistão. Na área de sua influência, o Taliban forçou o fechamento de escolas particulares e proibiu a educação de meninas entre 2003 e 2009.
Em 9 de outubro de 2012, Malala foi atacada por um miliciano do TTP em Mingora e levou um tiro na cabeça à queima-roupa, quando saía da escola em Swat Valley, no Paquistão, a noroeste da capital Islamabad, depois de fazer campanha contra os esforços do islamista Taliban de negar educação às mulheres. O porta-voz do TTP, Ehsanullah Ehsan disse que tentariam um novo ataque.
Duas estudantes ficaram feridas juntamente com Malala enquanto se dirigiam para casa em um ônibus escolar. Ela foi levada de helicóptero para um hospital militar. Ao redor da escola onde as meninas agredidas estudam, centenas de pessoas foram às ruas para protestar contra o fato. A mídia paquistanesa deu ampla cobertura.
O ataque foi condenado pela comunidade internacional. Em 15 de outubro 2012 Malala foi transferida para o hospital Queen Elizabeth, em Birmingham, Reino Unido para continuar a recuperação. Após quase três meses de internação, Malala deixou o hospital em 4 de janeiro de 2013.
Hoje, 12 de Julho de 2013, Malala comemorou seu aniversário de 16 anos discursando na Organização das Nações Unidas, pedindo educação obrigatória gratuita para todas as crianças. Usando um lenço rosa, Malala disse ao secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, e a quase 1.000 estudantes do mundo todo que compareceram à Assembleia da Juventude na sede da ONU em Nova York, que a educação era a única maneira de melhorar vidas.
"Vamos pegar nossos livros e canetas. Eles são nossas armas mais poderosas. Uma criança, um professor, uma caneta e um livro podem mudar o mundo. A educação é a única solução", disse. Ela deu a Ban uma petição assinada por quase 4 milhões de pessoas em apoio a 57 milhões de crianças que não são capazes de ir para a escola, e exigindo que os líderes mundiais encontrem novos professores, escolas e livros e ponham fim ao trabalho, casamento e tráfico infantil.
O enviado especial da ONU para a educação global, o ex-primeiro-ministro britânico Gordon Brown, disse que o evento de sexta-feira não era apenas a celebração do aniversário de Malala e de sua recuperação, mas de sua visão. "O sonho dela de que nada, nem a indiferença política, nem a falta de ação do governo, nem a intimidação, nem ameaças, nem balas de assassinos deveriam negar o direito de toda criança de poder ir para a escola", disse Brown.
O Paquistão tem 5 milhões de crianças fora da escola, um número só inferior à Nigéria, que tem mais de 10 milhões de crianças fora da escola, segundo a Unesco. A maioria dessas crianças é de meninas.
 


 
 

Mudanças estruturais em pauta na mobilização de 11 de julho


 
 

João Pedro Stedile
 
Desde a campanha das "Diretas Já”, na década de 1980, não tínhamos mobilizações de rua tão vigorosas. Os protestos que eclodiram com a indignação da juventude foram apenas a ponte de um iceberg dos graves problemas sociais e econômicos que persistem na nossa sociedade. [...]
Diante dos protestos, o governo Dilma teve que sair de seu pedestal para dialogar com as ruas, propondo uma reforma política, uma Assembleia Constituinte e um plebiscito popular. E, finalmente, a presidenta passou a se reunir com os setores organizados, o que não fez ao longo de dois anos e meio de mandato. [...]
Movimento popular nas ruas
Chegou a vez do povo organizado nos movimentos sociais, no movimento sindical e nas pastorais fazerem mobilizações. Pela primeira vez, depois da derrota nas eleições de 1989, não se via uma unidade popular tão ampla. [...]
Um dos pontos dessa plataforma comum é a reforma política. É preciso passar a limpo as regras da política brasileira para democratizar e criar mecanismos de efetiva participação popular. [...]
Além da reforma política, há um conjunto de demandas históricas dos movimentos sindical e popular que estão entaladas na garganta do povo e nas gavetas dos palácios. Abaixo, conheça seis pontos da plataforma das organizações da classe trabalhadora:
1- Aprovação do projeto de redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais sem redução de salário. Na Europa, o capitalismo em crise já pratica 36 horas.
2. Arquivamento da PEC que implementa a terceirização das relações de trabalho, enterrando a CLT, que é a garantia dos direitos dos trabalhadores.
3- Uma reforma tributária progressiva, para que os impostos pesem mais sobre os ricos, com taxação das fortunas, e diminuam sobre os trabalhadores pobres.
4- Prioridade da aplicação dos recursos públicos em saúde, educação e transporte público de qualidade, em vez do pagamento da dívida pública e superávit primário.
5- Suspensão dos leilões do petróleo e das outorgas de exploração de minérios que só beneficiam as empresas transnacionais.
6- Implementar a Tarifa Zero nos transportes públicos para toda população. Essa proposta é viável tecnicamente, por meio do investimento de recursos públicos existentes, sem necessidade de aumentar impostos. [...]
Mobilização crescente
Em várias cidades do Brasil, categorias de trabalhadores e setores sociais continuam fazendo mobilizações massivas. Petroleiros, bancários, metalúrgicos e professores intensificam a mobilização.[...]
Os trabalhadores rurais de todo o país, que se organizam em dezenas de movimentos sociais, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), movimentos de pescadores, quilombolas, povos indígenas, mulheres camponesas, as pastorais rurais, além do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), se somarão às mobilizações.
Os movimentos do campo preparam uma plataforma comum, que entregaram para a presidenta Dilma em audiência, pautando os seguintes pontos:
1. Recuperar a soberania nacional sobre as terras brasileiras. Propomos que o governo anule as áreas já compradas e desaproprie todas as terras controladas por empresas estrangeiras.
2. Acelerar a Reforma Agrária e que sejam assentadas imediatamente as milhares de famílias acampadas à beira das estradas.
3. Políticas públicas de apoio, incentivo e crédito para produção de alimentos baratos, saudáveis, sem venenos com o fortalecimento do campesinato. E adoção de programas estruturais para a juventude e para as mulheres do campo.
4. Garantir os direitos dos povos do campo, com o reconhecimento e demarcação imediata das terras indígenas, quilombolas e dos direitos dos atingidos por barragens, territórios pesqueiros e outros.
5. Banir imediatamente os agrotóxicos já proibidos em outros países do mundo, a proibição das pulverizações aéreas e políticas de redução do uso de agrotóxicos no campo. E profunda revisão na política de liberação dos transgênicos e controle social.
6. Implementação pelo governo de uma política de controle do desmatamento das florestas em todo país e apoio à recuperação de áreas degradadas e de reflorestamento pela agricultura familiar e camponesa.
7. Cancelamento da privatização dos recursos naturais como água, energia, minérios, florestas, rios e mares. Propomos a retirada do regime de urgência no congresso nacional do projeto de Código de Mineração, e que o governo/congresso faça um amplo debate nacional com os trabalhadores brasileiros, para produzir um novo código de acordo com os interesses do povo brasileiro.
8. Implementação imediata de programas para erradicar o analfabetismo e garantir escolas em todas as comunidades rurais.
9. Suspensão de todos os leilões de privatização de áreas de perímetros irrigados no nordeste e destinação imediata para o INCRA realizar assentamentos para agricultura familiar e camponesa e adoção de políticas estruturais para democratização da água e para ajudar as famílias a enfrentar as secas.
10. Fim da lei Kandir, que isenta de impostos as grandes empresas exportadoras de matérias primas agrícolas, energéticas e minerais.
 

Papa Francisco em Lampedusa: "A globalização da indiferença nos tirou a capacidade de chorar".


 

Chegada do papa Francisco em Lampedusa
 
 

Com a escolha da ilha italiana, porta de entrada de refugiados, Francisco usa sua primeira viagem oficial para chamar a atenção à política migratória europeia. Francisco chegou a Lampedusa pela manhã e, depois de rezar por alguns minutos, lançou ao mar uma coroa com flores brancas e amarelas – uma homenagem aos migrantes que morreram na travessia do Mediterrâneo. Em suas primeiras declarações, criticou a "globalização da indiferença”.
"Quem é o responsável pelo sangue destes irmãos e irmãs? Ninguém! Todos nós respondemos assim: não sou eu, não tenho nada a ver com isso; serão outros, eu não certamente. Mas Deus pergunta a cada um de nós: «Onde está o sangue do teu irmão que clama até Mim?» Hoje ninguém no mundo se sente responsável por isso; perdemos o sentido da responsabilidade fraterna; caímos na atitude hipócrita do sacerdote e do levita de que falava Jesus na parábola do Bom Samaritano", afirma Papa Francisco, na homilia proferida ontem (8 de julho), em Lampedusa, na Itália.

 

A missa, presidida pelo papa, foi celebrada depois de Francisco, acompanhado por barcos de pescadores de Lampedusa, ter jogado no mar uma coroa de crisântemos seguido de uma profunda e emociante oração silenciosa, em memória dos emigrantes que morreram no Mediterrâneo, na entrada da Europa.


Na missa, o altar, o cálice e o báculo do Papa foram feitos com restos de madeira que sobraram dos barcos naufragados. Sim, o Papa, no meio dos emigrantes, usou um báculo de madeira. Algo raro na história.
Segundo Francisco, "a cultura do bem-estar, que nos leva a pensar em nós mesmos, torna-nos insensíveis aos gritos dos outros, faz-nos viver como se fôssemos bolas de sabão: estas são bonitas mas não são nada, são pura ilusão do fútil, do provisório. Esta cultura do bem-estar leva à indiferença a respeito dos outros; antes, leva à globalização da indiferença. Neste mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença. Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa!"
 
Eis a homilia.
 
Emigrantes mortos no mar; barcos que em vez de ser uma rota de esperança, foram uma rota de morte. Assim recitava o título dos jornais. Desde há algumas semanas, quando tive conhecimento desta notícia (que infelizmente se vai repetindo tantas vezes), o caso volta-me continuamente ao pensamento como um espinho no coração que faz doer. E então senti o dever de vir aqui hoje para rezar, para cumprir um gesto de solidariedade, mas também para despertar as nossas consciências a fim de que não se repita o que aconteceu. Que não se repita, por favor.
Antes, porém, quero dizer uma palavra de sincera gratidão e encorajamento a vós, habitantes de Lampedusa e Linosa, às associações, aos voluntários e às forças de segurança, que tendes demonstrado – e continuais a demonstrar – atenção por pessoas em viagem rumo a qualquer coisa de melhor. Sois uma realidade pequena, mas ofereceis um exemplo de solidariedade! Obrigado! Obrigado também ao Arcebispo Dom Francesco Montenegro pela sua ajuda, o seu trabalho e a sua solidariedade pastoral. Saúdo cordialmente a Presidente da Câmara Senhora Giusi Nicolini, muito obrigado por aquilo que fez e faz. Desejo saudar os queridos emigrantes muçulmanos que hoje, à noite, começam o jejum do Ramadã, desejando-lhes abundantes frutos espirituais. A Igreja está ao vosso lado na busca de uma vida mais digna para vós e vossas famílias. A vós digo: oshià!
Nesta manhã quero, à luz da Palavra de Deus que escutamos, propor algumas palavras que sejam sobretudo uma provocação à consciência de todos, que a todos incitem a reflectir e mudar concretamente certas atitudes.
 
"Adão, onde estás?": é a primeira pergunta que Deus faz ao homem depois do pecado. "Onde estás, Adão?". E Adão é um homem desorientado, que perdeu o seu lugar na criação, porque presume que vai tornar-se poderoso, poder dominar tudo, ser Deus. E quebra-se a harmonia, o homem erra; e o mesmo se passa na relação com o outro, que já não é o irmão a amar, mas simplesmente o outro que perturba a minha vida, o meu bem-estar. E Deus coloca a segunda pergunta: "Caim, onde está o teu irmão?" O sonho de ser poderoso, ser grande como Deus ou, melhor, ser Deus, leva a uma cadeia de erros que é cadeia de morte: leva a derramar o sangue do irmão!
Estas duas perguntas de Deus ressoam, também hoje, com toda a sua força! Muitos de nós – e neste número me incluo também eu – estamos desorientados, já não estamos atentos ao mundo em que vivemos, não cuidamos nem guardamos aquilo que Deus criou para todos, e já não somos capazes sequer de nos guardar uns com os outros. E, quando esta desorientação atinge as dimensões do mundo, chega-se a tragédias como aquela a que assistimos.
 


"Onde está o teu irmão? A voz do seu sangue clama até Mim", diz o Senhor Deus. Esta não é uma pergunta posta a outrem; é uma pergunta posta a mim, a ti, a cada um de nós. Estes nossos irmãos e irmãs procuravam sair de situações difíceis, para encontrarem um pouco de serenidade e de paz; procuravam um lugar melhor para si e suas famílias, mas encontraram a morte. Quantas vezes outros que procuram o mesmo não encontram compreensão, não encontram acolhimento, não encontram solidariedade! E as suas vozes sobem até Deus! Uma vez mais vos agradeço, habitantes de Lampedusa, pela solidariedade. Recentemente falei com um destes irmãos. Antes de chegar aqui, passaram pelas mãos dos traficantes, daqueles que exploram a pobreza dos outros, daquelas pessoas para quem a pobreza dos outros é uma fonte de lucro. Quanto sofreram! E alguns não conseguiram chegar.
"Onde está o teu irmão?" Quem é o responsável por este sangue? Na literatura espanhola, há uma comédia de Félix Lope de Vega, que conta como os habitantes da cidade de Fuente Ovejuna matam o Governador, porque é um tirano, mas fazem-no de modo que não se saiba quem realizou a execução. E, quando o juiz do rei pergunta "quem matou o Governador", todos respondem: "Fuente Ovejuna, senhor". Todos e ninguém! Também hoje assoma intensamente esta pergunta: Quem é o responsável pelo sangue destes irmãos e irmãs? Ninguém! Todos nós respondemos assim: não sou eu, não tenho nada a ver com isso; serão outros, eu não certamente. Mas Deus pergunta a cada um de nós: "Onde está o sangue do teu irmão que clama até Mim?"
Hoje ninguém no mundo se sente responsável por isso; perdemos o sentido da responsabilidade fraterna; caímos na atitude hipócrita do sacerdote e do levita de que falava Jesus na parábola do Bom Samaritano: ao vermos o irmão quase morto na beira da estrada, talvez pensemos "coitado" e prosseguimos o nosso caminho, não é dever nosso; e isto basta para nos tranquilizarmos, para sentirmos a consciência em ordem.
A cultura do bem-estar, que nos leva a pensar em nós mesmos, torna-nos insensíveis aos gritos dos outros, faz-nos viver como se fôssemos bolas de sabão: estas são bonitas mas não são nada, são pura ilusão do fútil, do provisório. Esta cultura do bem-estar leva à indiferença a respeito dos outros; antes, leva à globalização da indiferença. Neste mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença. Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa!
Reaparece a figura do "Inominado" de Alexandre Manzoni. A globalização da indiferença torna-nos a todos "inominados", responsáveis sem nome nem rosto.
"Adão, onde estás?" e "onde está o teu irmão?" são as duas perguntas que Deus coloca no início da história da humanidade e dirige também a todos os homens do nosso tempo, incluindo nós próprios. Mas eu queria que nos puséssemos uma terceira pergunta: "Quem de nós chorou por este facto e por factos como este?"
Quem chorou pela morte destes irmãos e irmãs? Quem chorou por estas pessoas que vinham no barco? Pelas mães jovens que traziam os seus filhos? Por estes homens cujo desejo era conseguir qualquer coisa para sustentar as próprias famílias? Somos uma sociedade que esqueceu a experiência de chorar, de "padecer com": a globalização da indiferença tirou-nos a capacidade de chorar!
No Evangelho, ouvimos o brado, o choro, o grande lamento: "Raquel chora os seus filhos (...), porque já não existem". Herodes semeou morte para defender o seu bem-estar, a sua própria bola de sabão. E isto continua a repetir-se... Peçamos ao Senhor que apague também o que resta de Herodes no nosso coração; peçamos ao Senhor a graça de chorar pela nossa indiferença, de chorar pela crueldade que há no mundo, em nós, incluindo aqueles que, no anonimato, tomam decisões socioeconómicas que abrem a estrada aos dramas como este. "Quem chorou?" Quem chorou hoje no mundo?
Senhor, nesta Liturgia, que é uma liturgia de penitência, pedimos perdão pela indiferença por tantos irmãos e irmãs; pedimo-Vos perdão, Pai, por quem se acomodou e se fechou no seu próprio bem-estar que leva à anestesia do coração; pedimo-Vos perdão por aqueles que, com as suas decisões a nível mundial, criaram situações que conduzem a estes dramas. Perdão, Senhor!
Senhor, fazei que hoje ouçamos também as tuas perguntas: "Adão, onde estás? Onde está o sangue do teu irmão?"