XXII Assembleia Geral do Cimi - Documento Final




“Benditas as mãos que se abrem para acolher os pobres e socorrê-los: são mãos que levam esperança”.

Mensagem do Papa Francisco para o “Primeiro Dia Mundial dos Pobres”, 19 de novembro, de 2017.




         Realizou-se, de 24 a 27 de outubro de 2017, no Centro de Formação Vicente Cañas, a XXII Assembleia Geral do Cimi - Conselho Indigenista Missionário. O tema do evento foi: “O Cimi a serviço dos Povos Indígenas: teimosia e esperança na afirmação da vida”. Nesta perspectiva, as lideranças indígenas, os missionários e missionárias, bispos e representantes de entidades e instituições presentes à Assembleia afirmaram as razões de sua esperança num Brasil dividido entre ricos, corruptos e pobres cuja vida nos fala de razões de desespero. No último ano, registrou-se 106 suicídios de jovens indígenas. Os gritos de desespero são gritos que denunciam a injustiça e a mentira, que exigem que a terra seja desligada do seu valor de mercado e que sejam reconhecidos seu valor de uso e seu valor místico para os povos indígenas.
         Vivemos num contexto de exploração econômica em que o capital, para continuar o processo de colonização, alienação e aumento de sua margem de lucro, precisa impor, como regras, a desregulamentação de direitos fundamentais, a criminalização das lutas e dos lutadores, a invasão e ocupação das terras indígenas por empreendimentos econômicos devastadores da natureza, o rebaixamento dos salários, a precarização do trabalho, a terceirização dos empregos e a aceleração da produção, com a substituição dos operários pelas máquinas.
         Sabemos que, se em nossa sociedade não há esperança para os povos indígenas nem para as classes desfavorecidas, tampouco haverá esperança para as elites! O nosso lugar, neste contexto, é o de estar ao lado dos povos indígenas e no meio deles. Ao defender nossa opção preferencial pelos povos indígenas, defendemos igualmente o Bem Viver e a “sobriedade feliz” (LS 224) de todos. E numa sociedade cuja lógica é a sobriedade feliz não haverá lugar para privilégios nem privilegiados. Num momento em que a democracia em nosso país mostra toda a sua fragilidade por causa da corrupção e do clientelismo, nós somos decididos defensores de uma democracia purificada por uma ética de solidariedade. “Dado que o direito por vezes se mostra insuficiente devido à corrupção”, - nos diz o Papa Francisco – “requer-se uma decisão política sob pressão da população. [...] Se os cidadãos não controlam o poder político [...] também não é possível combater os danos ambientais” (LS 179).


         Para o Cimi, a reconstrução ética do nosso país exige a construção de alianças entre todos que se dispõem a dar voz ao sofrimento dos povos indígenas e dos pobres e a lutar pela afirmação da vida humana e da vida do planeta terra. A natureza é uma aliada fiel dos povos indígenas, pois eles se encontram “entre os pobres mais abandonados e maltratados” (LS 2). A Assembleia do Cimi recebeu com entusiasmo a proclamação do Sínodo Pan-Amazônico pelo Papa Francisco, porque sabe que esse Sínodo vai dar uma ressonância mundial à voz dos povos indígenas, suas condições de vida e suas propostas alternativas para salvar o planeta Terra.
         Entre os muitos desafios atuais, precisamos dar importância às diferentes formas de luta e resistência dos povos indígenas pela garantia de seus direitos e no enfrentamento das injustiças e violências. Eles nos ensinam que as lutas políticas, jurídicas e sociais não estão deslocadas de suas cosmovisões e de suas espiritualidades, mas se somam e fortalecem as relações místicas que norteiam a vida.
         A XXII Assembleia Geral do Cimi, no seu comprometimento com a causa indígena, definiu para o período de dois anos as seguintes prioridades: terra e território como fundamento da vida; povos em contexto urbano, destacando o processo formativo junto à juventude; espiritualidade indígena como pano de fundo de suas lutas e fortalecimento de outras dimensões; e economias indígenas e bem viver.
         A denúncia do sofrimento dos povos indígenas é anúncio da Boa-Nova do Evangelho. A vida e o futuro dos povos indígenas dependem da desconstrução do sistema que atenta contra a sua existência. A nossa esperança está na construção de uma nova sociedade na qual convivem culturalmente diferentes e socialmente iguais. A existência dos 45 anos do Cimi já representa uma antecipação dessa sociedade alternativa no sonho e na utopia. Não nos deixemos oprimir pela falácia do “fim da utopia”, o que significaria jogar os nossos mártires ao lixo de uma história sem memória.

         Seguiremos “a serviço dos Povos Indígenas: com teimosia e esperança”, na afirmação da vida, sempre. Aos povos indígenas, missionários e missionárias de nossos regionais e aos nossos aliados, digamos com o Papa Francisco: “não deixem que nos roubem a esperança” (EG 86).

Centro de Formação Vicente Cañas, Luziânia, GO,


27 de outubro de 2017. - XXII Assembleia Geral do Cimi

O batismo de Nossa Senhora da Imaculada Conceição no Rio Paraíba e como ela se tornou “nossa” em Aparecida


Paulo Suess
 Da Imaculada Conceição à Conceição Aparecida


Há 300 anos, três pescadores desceram o rio Paraíba do Sul à procura de peixes. Sem sucesso. Chegando ao Porto Itaguaçu, lançaram outra vez sua rede e, em vez de peixes, apanharam o corpo de uma imagem de barro cozido e, num segundo lance de sua rede, apareceu a cabeça dessa mesma imagem, logo reconhecida como uma imagem despedaçada de Nossa Senhora da Imaculada Conceição. A história conta que depois dessa pesca surpreendente, os pescadores apanharam peixes em abundância.
          A transfiguração de “Nossa Senhora da Imaculada Conceição” em “Nossa Senhora Aparecida”, ou abreviado, da “Imaculada” portuguesa em “Aparecida” brasileira, às vezes, amorosamente, invocada como “Cida” ou “Cidinha”, pode ser considerado o primeiro milagre de uma santa cuja ancestral branca acompanhou os conquistadores no porão de suas naus. No litoral paulista, Martim Afonso de Souza (1500-1571) dedicou a ela a primeira igrejinha no Brasil. Hoje, em todo o território nacional, são mais de 530 paróquias dedicadas a Imaculada Conceição e mais de 340 a Nossa Senhora Aparecida.

Após a permanência de alguns anos no leito do rio como numa pia batismal, emergiram na rede dos pescadores dois pedaços de barro de uma imagem despida, com seu orgulho de plenitude branca quebrado, sem indumentária, escurecida, realmente “nossa”, Senhora por respeito, não pelo sangue. Azul é apenas seu manto, posteriormente confeccionado para cobrir sua nudez e negritude. Depois do batismo no rio Paraíba e uma longa permanência na casa dos pobres, a imagem é enfeitada com adornos, cordões de ouro e homenagens que têm valor simbólico, não real. Não foram encomendados pela visitada, mas agradam os visitantes. E não é para menos. O povo sempre dá o melhor para seus hóspedes.
A passagem da Imaculada por esse rio indica sua missão como Aparecida. É uma missão que significa despojamento, presença, visitação silenciosa. Realmente, o primeiro milagre da Aparecida é o processo da inculturação pelo qual a Imaculada se tornou a Cidinha missionária, visitada e visitadora de muitos que estão atormentados pelos achaques da vida. Por quinze anos, a vizinhança se reuniu na casa de seus pescadores e num pequeno anexo, uma espécie de oratório, que foi logo construído, para receber cada vez mais devotos. Ao longo desses anos, Aparecida se inculturou na vida dessa gente. Nas rezas do terço, o povo pediu a proteção da Santa e agradeceu sua proteção.
No rio Paraíba não aconteceu propriamente uma aparição milagrosa de Nossa Senhora. A Aparecida é uma santa silenciosa. Apareceu no silêncio das águas e atuou no silêncio das casas, sem dizer uma só palavra, sem fazer promessas nem profecia, sem dar ordens ou indicar um lugar para construir um templo.
Em Lourdes, sim, aconteceram, segundo Bernadete Soubirous, dezoito aparições de uma “senhora branca”. E essa “senhora” falava, deu recados, pediu orações e se identificou na 16ª aparição, no dia 25 de março de 1858, festa da Anunciação do Senhor, com as palavras: “Eu sou a Imaculada Conceição”, eliminando as dúvidas que possam ainda ter pairado sobre a proclamação do dogma por Pio IX, quatro anos antes.
Apesar do silêncio e de milagres discretos, a devoção da Nossa Senhora Aparecida cresceu e se espalhou pela região. Para receber cada vez mais peregrinos, foi necessário construir espaços maiores, simbólicos e reais. Em 1904, a imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida foi solenemente coroada e, em 1929, foi proclamada padroeira oficial do Brasil. Já em 1980, a Basílica Nova foi consagrada pelo Papa João Paulo, e o evento do rio Paraíba tornou-se feriado nacional, litúrgica e politicamente reverenciado a cada dia 12 de outubro. Em 1984, a CNBB declarou a Basílica, oficialmente, Santuário Nacional e o dia 12 de outubro de 2016 marcou a abertura do Ano Jubilar em comemoração aos 300 anos da aparição de Aparecida.


A integração nacional e oficial de um evento milagroso, originalmente destinado aos pobres e apropriado pelos socialmente humilhados como elemento de resistência e luta pela sua dignidade, não é sem risco e aconteceu também em outros países. As manipulações das elites políticas e culturais passam sempre por aquilo que o povo considera sagrado. Há anos concelebrei com companheiros da Teologia Índia uma Missa na Basílica de N. Sra. de Guadalupe, santuário nacional do México, com não indígenas sentados nos bancos e com praticamente todos os índios presentes sentados no chão, no fundo da Igreja, ou encostados na parede. As elites, donas da palavra e do poder, procuram fazer os pobres reconhecerem, voluntariamente, “seu” lugar nas repartições públicas, na sociedade e na Igreja. Nas festas religiosas buscam proximidade com as “autoridades” religiosas populares que lhes dão legitimidade e sacralizam seu poder. Mas os milagres acontecem “no fundo da Igreja” e nas periferias, onde nasce a esperança.
Hoje, doentes abastados e pobres, com suas dores desiguais, procuram a Santa. Vêm para “pagar” promessas atendidas e para encomendar graças urgentes. Cidinha e Rainha, com humildade e majestade, Nossa Senhora Aparecida pode puxar a cada uma e a cada um para cima e para fora de sua miséria, pode garantir o essencial a cada dia e, na falta desse essencial e apesar dessa falta, transmitir o sentimento de não abandonar os devotos dos quais é mãe. Ela também experimentou a precariedade da vida. Na passagem pela água do rio e pela casa dos pobres, a Virgem Imaculada integrou no imaginário dos fiéis traços robustos da Mãe Terra, simbolizada não somente pela cor, mas também pelo adorno da Lua aos seus pés, que a faz “espelho de justiça”, porque reflete a luz de Cristo. “Maria ajuda a manter vivas as atitudes de atenção, de serviço, de entrega e de gratuidade”, indicando assim “qual é a pedagogia para que os pobres, em cada comunidade cristã, `sintam-se como em casa´” (DAp 272). Maria como “auxílio dos cristãos” e “continuadora da missão” não significa um intervencionismo na obra da evangelização, mas uma presença operante do imaginário mariano na memória e na história do cristianismo.

A Aparecida e outras Madonas Negras

Na liberdade e diversidade da assunção dos mistérios da fé, que se manifestam em torno das devoções marianas, nos confrontamos com um dado intrigante: Nossa Senhora Aparecida, cuja negritude foi interpretada como apoio à causa dos escravos e resgate de sua dignidade, é apenas uma entre muitas Madonas Negras ao redor do mundo, portanto, independentemente de contextos de escravidão, de geografia, história, cultura e situação social dos respectivos povos ou grupos humanos. Só para dar alguns exemplos, encontramos madonas negras ou morenas na Colômbia (“Virgem da Candelária”) e em Cuba (“Virgem da Caridade do Cobre”), na Espanha (“Virgem de Montserrat”) e em Portugal (“Nossa Senhora de Nazaré”), na Suíça (Maria Einsiedeln) e na França (Chartres), na Bolívia (“Virgem de Copacabana”) e no México (“Nossa Senhora de Guadalupe”). Até hoje não se conseguiu construir um denominador comum para explicar essa negritude. Também a identificação da Aparecida com a “mãe negra”, símbolo da ama de leite negra, cujo monumento se encontra no Largo do Paissandu, em São Paulo, não procede. Pela proximidade com a Virgem Imaculada, a iconografia mostra a Aparecida sempre sem criança, como de fato foi encontrada no rio Paraíba. Em alguns casos, arqueólogos e antropólogos afirmam com certa segurança que as Madonas Negras estão diretamente ligadas a antigas deusas pagãs: Ísis, Cibele, Ártemis, Perséfone, Débora, Diana e tantas outras.
A afirmação que as Madonas Negras serem representantes simbólicas de deusas lunares arquetípicas em lugares (fontes, covas, montanhas) que radiam forças curativas explica parcialmente a sua existência através de séculos e milênios. Em todo caso, a Aparecida, pela sua origem histórica e teológica, é, ao mesmo tempo, Nossa Senhora Imaculada, branca e celeste, e Nossa Senhora Aparecida, negra e terrestre. Ela é também, segundo a Ladainha Lauretana, “rainha elevada ao céu” e “consoladora dos aflitos” na terra. A Aparecida nos lembra do nosso “compromisso com a realidade” (DAp 491) e nos “ajuda a manter vivas as atitudes de atenção, de serviço, de entrega e de gratuidade”, indicando assim “qual é a pedagogia para que os pobres, em cada comunidade cristã, `sintam-se como em casa´” (DAp 272).
As perguntas abertas sobre a origem e o significado das Madonas Negras não anulam explicações com os quais até hoje somos familiarizados, mas procuram ampliar esses significados e apontar para suas raízes profundas e horizontes diferentes. Até agora, nem a hermenêutica afirmativa de movimentos negros nem a hermenêutica de suspeita da psicologia profunda alcançaram ou ultrapassaram a linha do realismo fantástico, como está presente nas narrativas em torno da Madona Negra de Loreto, Padroeira dos Aviadores.

Itinerário aberto

A devoção da Nossa Senhora da Conceição Aparecida nasceu da metamorfose da devoção primordial a Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Devotos de São Francisco trouxeram a imagem de uma virgem branca, considerada “cheia de graça” e “concebida sem pecado original”, em uma das naus de Pedro Álvares Cabral de Portugal ao Brasil. Mas ficou reservado a Martim Afonso de Souza, cuja esquadra partiu, em 1530, com cinco embarcações e 400 colonos e tripulantes para colonizar o Brasil, dedicar a primeira igrejinha, em Itanhaém, no litoral paulista, a Nossa Senhora da Conceição. A partir da segunda metade do século XVII, seu culto, festejado no dia 8 de dezembro, tinha-se tornado oficial em todo o território lusitano e suas colônias. 


Se no evento de Aparecida não ocorreu propriamente uma aparição de Nossa Senhora nem uma mensagem aos pescadores nem um milagre convencional - quais são o mistério e a mensagem de Aparecida que atraem multidões de peregrinos? O mistério da Aparecida está no encontro que permite assumir o sofrimento numa atitude histórica e sobrenatural. Nossa Senhora da Conceição Aparecida se deixou encontrar nas águas de um rio e, por conseguinte, poderia ser chamada de "Nossa Senhora do Encontro". No silêncio das águas do rio, ela ouve o clamor do povo, se faz cativa dos pobres e assume a cor da pele escura do povo. Ela é advogada nossa sem toga e ajusta as contas quando as instâncias humanas de justiça demoram e as da sorte falham. 
Pobres e ricos peregrinam anualmente em caravanas para Aparecida agradecendo graças recebidas que interromperam o sofrimento do desemprego e a monotonia de trabalhos pesados na lavoura ou na fábrica. A Aparecida é negra, pequena, silenciosa e, ao mesmo tempo, poderosa. Seu poder místico pode ser transformado em esperança histórica e ação política. Sua imagem é uma promessa e uma ordem: é possível esmagar a cabeça da serpente [veja o texto integral em: Convergência, out. 2017, p. 22-36].