Criamos um oitavo sacramento: a "alfândega pastoral"


 A Igreja não deve fechar as portas a ninguém, nem mesmo a uma mãe solteira que pede o batismo para o filho. O pontífice, na homilia em Santa Marta, lança um apelo à Igreja para que não se transforme em uma espécie de "alfândega pastoral", com controladores da fé em vez de pastores prontos para acolher aqueles que batem à porta.
 
 
 
 
 
A nota é de Giacomo Galeazzi, publicada no blog Oltretevere, 25-05-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto [Unisionos].

Bergoglio dá um exemplo concreto: "Pensem em uma mãe solteira que vai à igreja, à paróquia e ao secretário: 'Quero batizar meu filho'. E depois esse cristão, essa cristã lhe diz: 'Não, você não pode porque você não é casada!'. Mas, veja, essa jovem teve a coragem de levar adiante a sua gravidez e não devolver o seu filho ao remetente, e o que ela encontra? Uma porta fechada! Esse não é um bom zelo! Afasta do Senhor! Não abre as portas! E assim, quando nós estamos nesse caminho, nessa atitude, nós não fazemos bem às pessoas, ao povo, ao povo de Deus. Mas Jesus instituiu sete Sacramentos, e nós, com essa atitude, instituímos o oitavo: o sacramento da alfândega pastoral!". (Clique aqui para ver o video).

Sistema econômico

Novo posicionamento do Papa Francisco contra as distorções do sistema econômico mundial, na audiência à fundação Centesimus Annus Pro Pontifice. O "desemprego" se espalha "como mancha de óleo em amplas zonas do Ocidente" e estende "de modo preocupante os limites da pobreza". É a "pior forma de pobreza material", denuncia o papa. "Não diz respeito apenas ao Sul do mundo, mas a todo o planeta". É preciso dar novamente uma "cidadania social" à solidariedade, que "não é uma atitude a mais ou uma esmola social, é um valor social".

Se no recente discurso a um grupo de embaixadores o Papa Francisco tinha acentuado a crítica à absolutização das finanças, ele afirmou nesse sábado o primado do ser humano sobre a economia e o mercado. Na missa em Santa Marta, o pontífice olhou para os problemas da Igreja, que, segundo ele, "não é uma alfândega", deve ter "portas abertas", acolher os simples e aqueles que erram, e não ser representada por "controladores da fé".

A fundação Centesimus Annus está envolvida no congresso internacional "Repensando a solidariedade pelo emprego". Partindo desse tema e da doutrina social dos papas – particularmente de Bento XVI, com a sua defesa da superioridade da pessoa sobre o mercado –, Bergoglio denunciou que "não há pior pobreza material – gostaria de salientar – do que a que não permite que se ganhe o pão e que priva da dignidade do trabalho. Agora esse 'algo que não funciona' – acrescentou – não diz respeito mais apenas ao Sul do mundo, mas a todo o planeta. Eis, então, a exigência de 'repensar a solidariedade' não mais como simples assistência com relação aos mais pobres, mas como repensamento global de todo o sistema, como busca de caminhos para reformá-lo e corrigi-lo de modo coerente com os direitos fundamentais do ser humano, de todos os seres humanos".

O papa latino-americano explicou que a "essa palavra, 'solidariedade', não bem vista pelo mundo econômico, como se fosse um palavrão, é preciso dar-lhe novamente a sua merecida cidadania social. A solidariedade não é uma atitude a mais, não é uma esmola social, mas é um valor social".

O papa quis lembrar o ensinamento de Bento XVI sobre a "crise ética e antropológica" e as implicações desta sobre a economia. Ele citou o antecessor, tanto na encíclica Caritas in Veritate, quanto nos seus "discursos memoráveis". "Esquecemo-nos e ainda nos esquecemos – disse o papa latino-americano – que, acima dos negócios, da lógica e dos parâmetros de mercado, há o ser humano e há algo que é devido ao ser humano como ser humano, em virtude da sua profunda dignidade: oferecer-lhe a possibilidade de viver com dignidade e de participar ativamente no bem comum".

"Devemos voltar à centralidade do ser humano – concluiu Francisco depois de citar a Caritas in Veritate de Ratzinger – a uma visão mais ética das atividades e das relações humanas, sem o temor de perder alguma coisa".

 

Sonho e horizonte se revelaram palpáveis.







Terminou a 2ª Assembleia dos Povos indígenas de Goiás/Tocantins. Foi um evento marcante para todos os participantes: memória de muitas lutas, convocação para fortalecer a organização e renovação da nossa fé na capacidade dos povos indígenas. Sonho e horizonte se revelaram palpáveis.

A seguir o

Manifesto da II Assembleia dos Povos Indígenas de Goiás e Tocantins

Ouvimos a voz indignada de uma anciã que perdeu sua netinha, ainda na barriga da mãe, e o gemido de dor de nossas crianças adoecidas nas aldeias. Ouvimos os relatos de ameaças e violências contra nosso povo. Ouvimos os parentes detalhar sobre o avanço do agronegócio e das florestas de eucalipto nas terras indígenas. Ouvimos sobre a lentidão do governo federal em garantir os direitos assegurados pela Constituição Federal, como a terra, acesso à saúde, educação e consulta prévia. Ouvimos a verdade por trás das mentiras que os brancos tentam nos impor. Nessa verdade está nosso horizonte.

Há 513 anos apareceram, em nosso horizonte, as caravelas dos colonizadores. Nos impuseram seu mundo e nos chamaram de selvagens, mas eles é que mataram milhões de indígenas. Porém, percebemos que os brancos seguem tentando nos impor seu Estado, sua cultura e seus interesses econômicos sobre as terras tradicionais que nos restam e nosso modo de viver e olhar sobre o mundo. No parlamento, são cerca de 90 proposições, entre projetos de lei e propostas de emendas à constituição, que tratam diretamente dos povos indígenas. O interesse do branco é grande em destruir nossas terras e retirar nossos direitos.

Destacamos algumas dessas proposições. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215 visa transferir do Executivo para o Legislativo a demarcação e homologação de terras indígenas, quilombolas e áreas de proteção ambiental. Sabemos que os ruralistas possuem a maior bancada da Câmara Federal e se essa PEC 215 for aprovada, nunca mais teremos demarcações no país. Outro projeto que nos preocupa é o PL 1610, sobre mineração em terras indígenas. Enquanto o Estatuto do Índio se mantém parado, esse PL vai promover um verdadeiro leilão de nossas terras, demarcadas ou não, para as mineradoras. Já o PL 4740 pretende arrendar as terras indígenas para a criação de gado e monocultivo do agronegócio.
 

Mas não é apenas o parlamento que pretende praticar o esbulho de nossas terras. O Palácio do Planalto, aliado dos ruralistas, baixou a Portaria 303, que pretende estender condicionantes da Terra Indígena Raposa Serra do Sol para todas as terras tradicionais do país. As condicionantes nem foram votadas pelos ministros do STF e por isso a portaria foi suspensa, mas queremos a revogação dela. Durante este mês de maio, a ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffman, suspendeu todos os procedimentos de demarcações da Funai no Paraná depois que o Embrapa questionou um relatório que atestava a ocupação tradicional de uma comunidade Guarani. A ministra disse que a Funai não é imparcial para demarcar e que as demarcações nos estados de Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Mato Grosso e Rio Grande do Sul também passariam pelo crivo da Embrapa e ministérios. Nem nos piores momentos do neoliberalismo sofremos tamanho ataque, que vem de fazendeiros e seus pistoleiros, parlamentares ruralistas, governo federal, Judiciário. O mais triste é que acreditamos que Lula e Dilma poderiam melhorar nossas vidas, mas isso não está acontecendo.

Terras e grandes projetos

O agronegócio cerca, invade e envenena as terras indígenas. Querem nossas terras para produzir alimentos podres, à base de agrotóxicos e sementes transgênicas. Não bastasse isso, o governo federal impõe, sem consulta prévia como exige a Constituição Federal e a Convenção 169, usinas hidrelétricas, estradas, hidrovias e o bilionário financiamento estatal ao monocultivo de commodities e criação de gado. A tudo isso estão relacionadas as ações da bancada ruralista, que pretendem mudar as regras para facilitar a retirada de nossas terras com o objetivo de investir os milhões que ganham do governo para os monocultivos. Por outro lado, isso faz parte de um projeto de desenvolvimento nacional do governo federal, que não contempla nossas nações e por isso cremos ser um projeto de desenvolvimento de uma elite colonialista, branca.

Sobre nossas terras e nas áreas limítrofes delas, sobretudo no Tocantins, avançam as florestas de eucalipto, as carvoarias e canaviais, que quando queimam lançam sobre as aldeias fumaça e poluição, gerando doenças respiratórias. A Secretaria de Regularização Fundiária do estado foi entregue ao filho da líder do agronegócio no Brasil, Kátia Abreu. O secretário, Irajá Silvestre filho, firmou convênio com o Ministério de Desenvolvimento Agrário para regularizar as terras da União, ou seja, as terras indígenas, quilombolas, áreas de preservação ambiental do Tocantins. Isso mostra como o agronegócio avança em nossas terras, que não são demarcadas e protegidas, a não se por nós mesmos e já decidimos que vamos morrer defendendo-a. Mas não apenas retirando as nossas terras que tentam nos usurpar. A nossa saúde está completamente quebrada, levando sofrimento e morte para as aldeias.

Saúde e educação

A saúde indígena passa por problemas em sua administração, desde Brasília, na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, até às regiões, no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), onde os administradores regionais são incompetentes, descompromissados e mentirosos. Isso gerou uma descrença generalizada e ao mesmo tempo a inciativa em pedir a exoneração de Ivanezilda Ferreira Noleto, coordenadora do DSEI, depois que a expulsamos de nossa II Assembleia. Ela registrou ocorrência na Polícia Federal, alegando danos emocionais. Perguntamos: e nossos danos pelas crianças e parentes mortos pela incompetência desses gestores? E nossos danos por não termos saneamento básico e medicamentos, suspensos pela Portaria 3185 do Ministério da Saúde? Quando ficamos doentes, temos de torcer para que nossa doença esteja na lista do governo, pois do contrário morremos sem medicamentos. A saúde indígena está na UTI e assim matam lentamente nossos povos.

Mesmo não tendo os estudos do branco, sabemos como educar nossos filhos com uma educação diferenciada e exigimos que o governo respeite nossos currículos. Sendo assim, na educação, apesar de pequenos avanços, a situação não é muito melhor. O que vemos é que não existe vontade política para garantir uma escola diferenciada e de qualidade como diz a legislação. Não queremos ensinar nossas crianças a manusear a escrita para mentir e prejudicar o outro; queremos ensiná-las a pensar e refletir, olhando para a própria cultura e os direitos da Mãe Terra. Formamos guerreiros. Nossas escolas devem ter o nosso rosto e fincadas em nosso chão, como forma de garantir nosso envolvimento social e político; nossa relação com a Mãe Terra.

Esperança no horizonte

Apesar do clima de indignação, dos graves problemas e desafios enfrentados pelas comunidades, realizamos uma Assembleia de esperança, marcada pelas nossas celebrações e rituais, pela solidariedade e amizade. Saímos fortalecidos e unidos, entre nós e com todos os que lutam por um Brasil plural, mais justo e solidário.

Tivemos a presença de parentes de todo país, caso dos Pataxó Hã-hã-hãe, Bahia, Xavante, Mato Grosso, Xukuru-Kariri, Alagoas, além de aliados dos movimentos sociais, caso da Via Campesina, Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Nailton Pataxó Hã-hã-hãe nos trouxe a palavra de que sozinhos não conseguimos nada, portanto precisamos nos unir entre os povos e aliados. Acreditamos e confiamos que a luta é árdua e longa, mas não abandonaremos a batalha. Seguimos até o fim pelo Bem Viver, o Sumak kawsay ameríndio, em nossas terras indígenas.
Palmas, TO, 23 de maio de 2013
Povos indígenas Apinajé, Xerente, Krahô, Tapuia, Karajá-Xambioá, Krahô-Kanela, Avá-Canoero, Javaé, Kanela do Tocantins e Guarani.

II Assembleia dos Povos Indígenas dos Estados de Goiás e Tocantins



O tema desse evento, desenvolvido em paineis, marchas e debates:“Tecendo o bem viver denunciamos e resistimos ao modelo de desenvolvimento que destrói nossos direitos e nossa mãe terra" (20-23 de maio 2013).


Ivanezilia Ferreira afastada da chefia
do DSEI  - Foto: fr. Reinaldo Rodrigues

Sob a fala decidida de Jercilia Kraho, um grupo de mulheres tirou a funcionária chefe do Destrito Sanitário Especial Indígena/DSEI,  Ivanezilia Ferreira da mesa do painel, e a conduziram para fora do recinto, sob a decisão irrevogável de afastá-la do cargo. Eram momentos tensos de uma quente manhã em Palmas-TO. 
Foto: Laila e Egon Heck
Foi um gesto concreto, definitivo, em resposta à situação caótica da saúde indígena e a total ineficiência da coordenação naquele Distrito. “Acabou a nossa paciência.” Um gesto de consciência e forte simbolismo. “Basta. Não vamos maltratar ninguém. Mas tomamos decisão. Botamos  Ivanezilia pra fora. Agora nós vamos decidir quem queremos para trabalhar com nós”.

Na mesa estavam três procuradores do Ministério Publico Federal, aos quais foi solicitado um posição. Estavam também na mesa Cleiton Javaé, do CONDISI e Edmundo Xavante do Conselho Nacional de Saúde.
Egon Heck

5ª Semana Social Brasileira: Perguntando caminhamos


 
A Revolução não é uma resposta, mas uma pergunta. As teses de John Holloway podem servir como subsídio para a temática da 5ª Semana Social Brasileira e sua temática: “Um novo Estado. Caminho para uma nova sociedade do bem viver”.
 
 
 
 

John Holloway: Doze teses sobre o antipoder

 
 
 
I.
 

1. O ponto de partida é a negatividade

Começamos com o grito, não com o verbo. Diante da mutilação das vidas humanas pelo capitalismo, um grito de tristeza, um grito de horror, um grito de raiva, um grito de negação: NÃO!

O pensar, para dizer a verdade do grito, tem que ser negativo. Não queremos entender o mundo sem negá-lo. A meta da teoria é conceitualizar o mundo negativamente, não como algo separado da prática, mas como um momento da prática, como parte da luta para mudar o mundo, para fazer dele um lugar digno da humanidade.

Mas, depois de tudo o que passou, como podemos inclusive começar a pensar em mudar o mundo?

2. Não se pode criar um mundo digno por meio do Estado

Durante a maior parte do século passado, os esforços para criar um mundo digno da humanidade se enfocaram no Estado e na idéia de conquistar o poder estatal. As polêmicas principais (entre “reformistas” e “revolucionários”) eram acerca de como conquistar o poder estatal, seja pela via parlamentar ou pela via extra-parlamentar. A história do século XX sugere que a questão de como ganhar o poder não era tão importante. Em nenhum dos casos a conquista do poder estatal logrou realizar as mudanças que os militantes esperavam. Nem os governos reformistas nem os governos revolucionários lograram mudar o mundo de forma radical.

É fácil acusar todas as lideranças destes movimentos de trair os movimentos que encabeçavam. O fato de que tenha havido tantas traições sugere, entretanto, que o fracasso dos governos radicais, socialistas ou comunistas tem raízes muito mais profundas. A razão pela qual o Estado não pode ser usado para levar a cabo uma mudança radical na sociedade é que o próprio Estado é uma forma de relações sociais capitalistas. A existência mesma do Estado como uma instância separada da sociedade significa que, seja qual for o conteúdo de suas políticas, ele participa ativamente no processo de separar as pessoas do controle de sua própria vida. O capitalismo é simplesmente isso: a separação das pessoas de seu próprio fazer. Uma política que está orientada em direção ao Estado reproduz inevitavelmente dentro de si mesma o mesmo processo de separação, separando os dirigentes dos dirigidos, separando a atividade política séria da atividade pessoal frívola. Uma política orientada em direção ao Estado, longe de conseguir uma mudança radical da sociedade, conduz à subordinação progressiva da oposição à lógica do capitalismo.

Agora podemos ver que a idéia de que o mundo poderia ser mudado por meio do Estado era uma ilusão. Temos a boa sorte de estar vivendo o fim dessa ilusão.

3. A única forma de conceber uma mudança radical hoje não é como conquista do poder, mas como dissolução do poder

A revolução é mais urgente do que nunca. Os horrores que surgem da organização capitalista da sociedade se tornam cada vez mais intensos. Se a revolução através da conquista do poder estatal se revelou como ilusão, isso não quer dizer que devemos abandonar a idéia de revolução. Mas é necessário concebê-la em outros termos: não como a tomada do poder, mas como a dissolução do poder.

II.

4. A luta pela dissolução do poder é a luta pela emancipação do poder-fazer (potentia) do poder-sobre (potestas)

Para começar a pensar em mudar o mundo sem tomar o poder, deve-se fazer uma distinção entre o poder-fazer (potentia) e o poder-sobre (potestas).

Qualquer tentativa de mudar a sociedade envolve o fazer, a atividade. O fazer, por sua vez, envolve a capacidade de fazer, o poder-fazer. Muitas vezes usamos a palavra “poder” nesse sentido, como algo bom, como quando uma ação junto com outros (uma manifestação ou inclusive um bom seminário) nos dá uma sensação de poder. O poder neste sentido tem seu fundamento no fazer: é o poder-fazer.

O poder-fazer é sempre social, sempre parte do fluxo social do fazer. Nossa capacidade de fazer é produto do fazer de outros e cria as condições para o fazer futuro de outros. É impossível imaginar um fazer que não esteja integrado de uma forma ou outra ao fazer de outros, no passado, no presente ou no futuro.

5. O poder-fazer se transforma no poder-sobre quando se rompe o fazer

A transformação do poder-fazer em poder-sobre implica a ruptura do fluxo social do fazer. Os que exercem o poder-sobre separam o feito do fazer de outros e o declaram seu. A apropriação do feito é ao mesmo tempo a apropriação dos meios de fazer, e isso permite aos poderosos controlar o fazer dos fazedores. Os fazedores (os humanos, entendidos como ativos) estão separados assim de seu feito, dos meios de fazer e do próprio fazer.

Como fazedores, estão separados de si mesmos. Esta separação, que é a base de qualquer sociedade na qual alguns exercem poder sobre outros, chega ao seu ponto mais alto no capitalismo.

Rompe-se o fluxo social do fazer. O poder-fazer se transforma em poder-sobre. Os que controlam o fazer de outros aparecem agora como os Fazedores da sociedade, e aqueles cujo fazer está controlado por outros se tornam invisíveis, sem vez, sem rosto. O poder-fazer não aparece como parte de um fluxo social, mas existe na forma de um poder individual. Para a maioria das pessoas o poder-fazer está transformado em seu contrário, a impotência, ou poder de fazer o que está determinado por outros. Para os poderosos, o poder-fazer se transforma em poder-sobre, o poder de dizer ao outro o que eles têm que fazer, e, portanto, em uma dependência com respeito ao fazer de outros.

Na sociedade atual, o poder-fazer existe na forma de sua própria negação, como poder-sobre. O poder-fazer existe no modo de ser negado. Isto não quer dizer que deixe de existir. Existe, mas existe como negado, em uma tensão antagônica com sua própria forma de existência como poder-sobre.

6. A ruptura do fazer é a ruptura de cada aspecto da sociedade, cada aspecto de nós mesmos

A separação do feito e dos fazedores significa que as pessoas já não se relacionam entre si como fazedores, mas como proprietários (ou não proprietários) do feito (visto já como uma coisa divorciada do fazer). As relações entre as pessoas existem como relações entre coisas, e as pessoas existem não como fazedoras, mas como portadoras passivas das coisas.

Esta separação dos fazedores do fazer e, portanto, deles mesmos, está discutida na literatura em termos estreitamente relacionados entre si: alienação (o jovem Marx), fetichismo (o velho Marx), reificação (Lukács), disciplina (Foucault) ou identificação (Adorno). Todos esses termos estabelecem claramente que o poder-sobre não pode ser entendido como algo externo a nós mesmos, mas que ele permeia cada aspecto de nossa existência. Todos esses termos se referem a um enrijecimento da vida, uma contenção do fluxo social do fazer, um obscurecimento das possibilidades.

O fazer está convertido em ser: isto é o núcleo do poder-sobre. Enquanto o fazer significa que somos e não somos, a ruptura do fazer arranca o “e não somos”. O que nos resta é simplesmente “somos”: identificação. O “e não somos” é esquecido ou se trata como puro sonho. A possibilidade nos é arrancada. O tempo se homogeneíza. O futuro é agora a extensão do presente, o passado o antecedente do presente. Todo fazer, todo movimento, está contido dentro da extensão do que é. Pode ser lindo sonhar com um mundo digno da humanidade, mas isto é nada mais que um sonho. O regime do poder-sobre é o regime do “assim são as coisas”, o regime da identidade.

7. Participamos na ruptura de nosso próprio fazer, na construção de nossa própria subordinação

Como fazedores separados de nosso próprio fazer, recriamos nossa própria subordinação. Como trabalhadores, produzimos o capital que nos subordina. Como docentes universitários, jogamos um papel ativo na identificação da sociedade, na transformação do fazer em ser. Quando definimos, classificamos ou quantificamos, ou quando sustentamos que a meta da ciência social é entender a sociedade tal como ela é, ou quando pretendemos estudar a sociedade objetivamente, como se fosse um objeto separado de nós mesmos, participamos ativamente na negação do fazer, na separação de sujeito e objeto, no divórcio entre fazedor e feito.

8. Não há nenhuma simetria entre o poder-fazer e o poder-sobre

O poder-sobre é a ruptura e negação do fazer. É a negação ativa e repetida do fluxo social do fazer, do nós que nos constituímos através do fazer social. Pensar que a conquista do poder-sobre pode levar à emancipação do que nega é absurdo.

O poder-fazer é social. É a constituição do nós, a prática do reconhecimento mútuo da dignidade.

O movimento do poder-fazer contra o poder-sobre não deve ser concebido como “contra-poder” (termo que sugere uma simetria entre poder e contra-poder), mas como anti-poder (termo que, para mim, sugere uma assimetria total entre o poder e nossa luta).

III.

9. Parece que o poder-sobre nos penetra tão profundamente que a única solução possível é através da intervenção de uma força externa. Esta não é nenhuma solução

Não é difícil chegar a conclusões muito pessimistas sobre a sociedade atual. As injustiças e a violência e a exploração nos gritam, mas entretanto parece que não há saída possível. O poder-sobre parece penetrar tão fundo em cada aspecto de nossas vidas que é difícil imaginar a existência de “massas revolucionárias”. No passado, a penetração profunda da dominação capitalista levou muitos a ver a solução em termos de liderança de um partido de vanguarda, mas resultou que isto não foi nenhuma solução, já que simplesmente substituiu-se uma forma de poder-sobre por outra.

A resposta fácil é a desilusão pessimista. O grito inicial de raiva ante os horrores do capitalismo não está abandonado, mas aprendemos a viver com ele. Não nos tornamos aficionados pelo capitalismo, mas aceitamos que não há nada a fazer. A desilusão implica cair na identificação, aceitar que o que é, é. Implica participar, pois, na separação do fazer do feito.

10. A única forma de romper o círculo aparentemente fechado do poder é vendo que a transformação do poder-fazer em poder-sobre é um processo que implica necessariamente a existência de seu contrário: a fetichização implica a anti-fetichização

Na maioria das vezes, discute-se a alienação (fetichismo, reificação, disciplina, identificação, etc.) como se fosse um fato consumado. Fala-se das formas capitalistas de relações sociais como se tivessem sido estabelecidas na aurora do capitalismo para seguir existindo até que o capitalismo seja substituído por outro modo de produção. Em outras palavras, faz-se uma separação entre constituição e existência: localiza-se a constituição do capitalismo no passado histórico, e assume-se que a sua existência atual é estável. Este enfoque conduz necessariamente ao pessimismo.

Se, ao contrário, vemos a separação do fazer e do feito não como algo terminado, mas como um processo, o mundo começa a se abrir. O próprio fato de que falamos em alienação significa que a alienação não pode ser total. Se a separação, alienação (etc.) é entendida como processo, isto implica que o seu curso não está predeterminado, que a transformação do poder-fazer em poder-sobre sempre está aberta, sempre está em questão. Um processo implica um movimento de devir, implica que o que está em processo (a alienação) é e não é. A alienação, então, é um movimento contra sua própria negação, contra a anti-alienação. A existência da alienação implica a existência da anti-alienação. A existência do poder-sobre implica a existência do anti-poder-sobre, ou, em outras palavras, o movimento de emancipação do poder-fazer.

O que existe na forma de sua negação, o que existe no modo de ser negado, existe realmente, apesar de sua negação, como negação do processo de negação. O capitalismo está baseado na negação do poder-fazer da humanidade, da criatividade, da dignidade: mas isso não quer dizer que isto deixa de existir. Como mostraram os zapatistas, a dignidade existe apesar de sua negação. O poder-fazer existe também: não como ilha em um mar de poder-sobre, mas na única forma em que pode existir, como luta contra sua própria negação. A liberdade também existe, não como a apresentam os liberais, como algo independente dos antagonismos sociais, mas na única forma em que pode existir em uma sociedade caracterizada por relações de dominação, como luta contra essa dominação.

A existência real e material do que existe na forma de sua própria negação é a base da esperança.

11. A possibilidade de mudar a sociedade radicalmente depende da força material do que existe no modo de ser negado

A força material do negado pode ser vista de diferentes maneiras.

Em primeiro lugar, pode-se ver na infinidade de lutas que não têm como meta ganhar o poder sobre outros, mas simplesmente a afirmação de nosso poder-fazer, nossa resistência contra a dominação por outros. Estas lutas tomam muitas formas diferentes, desde a rebelião aberta até lutas para ganhar ou defender o controle sobre o processo de trabalho ou o acesso ou adequação a serviços de saúde, ou a afirmação de dignidade mais fragmentadas e muitas vezes silenciosas dentro do lar. A luta pela dignidade, pelo que está negado pela sociedade atual, pode ser vista também em muitas formas que não são abertamente políticas, na literatura, na música, nos contos de fadas. A luta contra a inumanidade é onipresente, já que é inerente a nossa existência como humanos.

Em segundo lugar, a força do negado pode ser vista na dependência do poder-sobre com respeito àquilo que nega. A existência de pessoas cujo poder-fazer existe como capacidade de dizer a outros o que estes têm que fazer sempre depende do fazer de outros. Toda a história da dominação pode ser vista como a luta por parte dos poderosos para libertar-se de sua dependência dos impotentes. A transição do feudalismo ao capitalismo pode ser vista desta maneira, não apenas como a luta dos servos para libertar-se dos senhores, mas como a luta dos senhores para libertar-se dos servos, através da conversão de seu poder em dinheiro e assim em capital. A mesma busca de liberdade com respeito aos trabalhadores pode ser vista na introdução da maquinaria, ou na conversão massiva de capital produtivo em capital dinheiro, que joga um papel tão importante no capitalismo contemporâneo. Em cada caso, a fuga dos poderosos com respeito aos fazedores é em vão. Não há forma como o poder-sobre possa ser outra coisa senão a metamorfose do poder-fazer. Não há como os poderosos escaparem de sua dependência em relação aos impotentes.

Esta dependência se manifesta, em terceiro lugar, na instabilidade dos poderosos, na tendência do capital à crise. A fuga do capital com relação ao trabalho, através da substituição de trabalhadores por máquinas ou por sua conversão em capital dinheiro, defronta o capital, com sua dependência final em relação ao trabalho (isto é, sua capacidade de converter o fazer humano em trabalho abstrato produtor de valor), na forma de queda das taxas de lucro. O que se manifesta na crise é a força do que o capital nega, quer dizer, o poder-fazer não subordinado.

12. A revolução é urgente, mas incerta, uma pergunta e não uma resposta

As teorias marxistas ortodoxas buscaram capturar a certeza para o lado da revolução, com o argumento de que o desenvolvimento histórico conduziria inevitavelmente à criação de uma sociedade comunista. Esta tentativa é fundamentalmente errônea, já que não pode haver nenhuma certeza na criação de uma sociedade auto-determinante. A certeza só pode estar do lado da dominação. A certeza pode ser encontrada na homogeneização do tempo, no congelamento do fazer em ser. A auto-determinação é inerentemente incerta. A morte das velhas certezas é uma libertação.

Pelas mesmas razões, a revolução não pode ser entendida como uma resposta, mas como uma pergunta, como uma exploração da realização da dignidade. Perguntando caminhamos.

NOTA DO GRUPO FIM DA LINHA: Este texto pode ser considerado uma versão resumida do livro Mudar o mundo sem tomar o poder. Para maior desenvolvimento dos argumentos, ver o livro citado (ed. Boitempo).
 
 

Bolívia. Greve da COB completa doze dias


Hoje (17.5.2013), completam-se doze dias da greve geral iniciada pela Central Operária Boliviana (COB) em prol de uma lei de pensões que permita que recebam uma aposentadoria equivalente a 70% do salário recebido nos últimos meses trabalhados.

A reportagem é de Sebastián Ochoa, publicada
no jornal Página/12, 17-05-2013. Tradução: Cepat.
 

 
 
Professores, mineiros, usineiros, trabalhadores da saúde, entre outros grupos, mantêm 35 bloqueios de estradas e pontos de interrupção em toda a Bolívia, segundo o que informou o governo nacional. Grevistas e funcionários dos ministérios do Trabalho e Economia mantêm reuniões cotidianas, que terminam sem a possibilidade de haver algum acordo. Para maior inquietação do presidente Evo Morales, a polícia boliviana ameaça se rebelar em reivindicação pelo cumprimento de uma série de acordos que beneficiarão os uniformizados.

Ontem, o presidente Morales repetiu que por trás do extenso protesto da COB se escondem interesses golpistas. E convocou suas bases camponesas para defenderem seu mandato. Horas depois, membros do Ayllu Chullpa, em Potosí, utilizaram pedras e paus para desbloquear uma estrada onde professores rurais estavam em greve. O enfrentamento resultou em sete feridos. “Alguns dirigentes da COB, antes – e agora continuam –, estavam golpeando (as portas) do Estado Maior para o golpe de Estado. Agora, aos gritos, estão pedindo a rebelião da polícia para que haja um golpe de Estado. Já não é uma reivindicação, mas uma ação política. Por isso, convoco as companheiras e companheiros para, primeiro, defender a democracia. E se somos deste processo, defender este processo de mudança para todos os bolivianos e bolivianas, organizar-nos e mobilizar-nos”, disse o presidente, no Palácio Quemado. Poucas quadras dali, os mineiros explodiam metades de dinamites, enquanto os policiais cumpriam com sua tarefa de atirar gases nos grevistas, assim como nos últimos doze dias.

Inicialmente, a COB exigia uma aposentadoria de 8.000 bolivianos para mineiros e de 5.000 para o restante dos assalariados (neste país, um dólar equivale a 6,90 bolivianos). Para o governo, a proposta não é sustentável. Após vários dias e noites de negociação com a COB, os técnicos do Palácio Quemado sugeriram que a aposentadoria para os mineiros fosse de 4.000 bolivianos e de 3.200 bolivianos para os demais trabalhadores. Consideravam que era o máximo que podia ser oferecido, sem colocar em risco a estrutura econômica do Estado Plurinacional.

Ontem, da Federação Sindical de Trabalhadores Mineiros da Bolívia (Fstmb), indicaram que aceitariam se aposentar com 4.900 bolivianos. Até o período da noite, não houve uma nova reunião, entre os grevistas e o governo, para saber se era viável a quantia requerida pelos mineiros.

Enquanto isso, todas as capitais departamentais e dezenas de estradas que passam por áreas rurais continuam bloqueadas. A cidade de La Paz é o local onde mais se sente e se vê a greve geral. Embora os transportes públicos e os comércios continuem funcionando, as múltiplas interrupções de ruas e avenidas tornam o centro da cidade um pouco mais insuportável. Diante das explosões de dinamites, os policiais continuam utilizando gases, protegendo o acesso à Praça Murillo, em torno da qual estão as sedes dos órgãos Executivo e Legislativo. Ali também fica o carro Netuno, que ocasionalmente molha e congela os manifestantes.

Nesta cidade, entre os grevistas há cinco mil trabalhadores de Huanuni, uma das maiores minas do país, localizada no departamento de Oruro. Ontem, decidiram permanecer aqui até que se solucione o conflito, ou piore. Pela manhã, caminharam junto com professores e usineiros, para acabar num choque com a polícia perto da Praça Murillo.

“Chega de ser passivos. Chega de ver a festa do balcão, nós vamos entrar e dançar a partir do dia de amanhã. Este governo irá começar a sentir as mobilizações, aqui, na cidade de La Paz”, disse Víctor Escobar, secretário de Relações do sindicato de Huanuni.

Ontem, um grupo de esposas de policiais iniciou uma greve de fome para exigir que seus maridos se aposentem com 100% do salário mensal, além da anulação da Lei 101, de Regime Disciplinar da Polícia Boliviana. Antes que o conflito com este setor crescesse, o governo nacional iniciou mesas de trabalho com representantes dos uniformizados. Estão atendendo as demandas das mulheres dos uniformizados e também concordam com o texto da Lei Orgânica da Polícia, que inclui a criação da Defensoria da Polícia.
 

Poder e cifrões nas hidrelétricas


Lúcio Flávio Pinto
Adita

A obra da linha de transmissão de energia da hidrelétrica de Tucuruí para Macapá e Manaus, com 1,8 mil quilômetros de extensão, foi licitada em 2008. Devia custar 1,8 bilhão de reais. Calcula-se que sairá por R$ 3 bilhões – ou mais. A elevação seria em função da imponderabilidade do "fator amazônico” e do atraso na liberação das licenças ambientais por parte do governo federal, que é o dono da concessão do serviço.
O "reequilíbrio econômico de contrato” foi solicitado pela Isolux Corsán, que venceu dois dos três lotes do mais recente "linhão” de Tucuruí. O escritório de consultoria da ex-ministra da Casa Civil de Lula, Erenice Guerra, foi contratado para ajudar a resolver o impasse junto à Aneel, que controla esse contrato.
O jornal O Globo sugeriu que foi mais do que competência profissional que propiciou ao escritório marcar audiência, em janeiro, do então presidente mundial do grupo Isolux Corsán, Antonio Portela Alvarez, com o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, e com a presidente Dilma Rousseff, no Palácio do Planalto. Erenice subiu ao governo do PT com Dilma, quando ela ocupou o mesmo ministério, e a acompanhou à Casa Civil, substituindo-a quando a chefe se tornou candidata à sucessão de Lula. Caiu em meio a um escândalo sobre tráfico de influência.
Caiu na administração pública, mas se recuperou na privada. Obteve mais uma representação de muito peso para o seu movimentado escritório, também sobre uma obra amazônica. Defende os interesses da multinacional francesa GDF Suez, que possui 60% das ações da Energia Sustentável do Brasil. A ESBR constrói a hidrelétrica de Jirau, no rio Madeira, em Rondônia, litiga com a Santo Antônio Energia, responsável por outra usina do mesmo porte rio abaixo. Estão em disputa a definição sobre a operação do Madeira e compensação de R$ 2 bilhões.
A Santo Antônio elevou o nível do seu reservatório, Jura que essa providência beneficia as duas empresas, com ganhos de geração de energia para ambas. A Jirau discorda e diz que vai perder. O impacto seria do valor que cobra. Mas ela preferiria impedir que o reservatório ficasse mais alto. A elevação precisaria ser feita até o início do segundo semestre para ser viável. Sem decisão, o nível do reservatório não mudaria, o que seria o desejo da multinacional francesa.
A Amazônia, como se vê, está no centro de mais essa disputa por poder e cifrões.


A Boa Nova para os ruralistas: Dilma e Gleisi desmontam a Funai e suspendem demarcações





 A corrente campanha de desmonte da Fundação Nacional do Índio (Funai), realizada pelo próprio governo federal, teve seu ápice na última quarta-feira, 08, com a participação da ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, na audiência pública realizada pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, na Câmara dos Deputados. A participação da ministra-nessa audiência, o conteúdo de sua fala, prometendo um novo marco regulatório para a demarcação das terras indígenas, assim como a decisão de suspender as demarcações indígenas no Paraná são medidas consideradas pelo movimento indígena como um ato político único, importante para agradar os ruralistas já que ela é a provável candidata do PT ao governo paranaense. Segundo matéria da Folha de S. Paulo, edição de 10 de maio, assinada pelo repórter Aguirre Talento, “quando se candidatou ao Senado, em 2010, Gleisi recebeu R$ 390 mil de empresas ligadas ao agronegócio”. Pelo andar dos tratores, o apoio poderá ser bem maior no ano que vem.
 

A reportagem é de Patrícia Bonilha, e está na íntegra no portal do Cimi, 11-05-2013.


O ar não era bom nessa audiência

Porém, antes que o marco seja oficializado, o Palácio do Planalto já suspendeu as demarcações de terras indígenas no estado do Paraná, com base em análises da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) sobre estudos da Funai. A intenção vai além: relatórios do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e do Ministério das Cidades também serão levados em consideração. Em outras ocasiões, o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo indicou que tais mudanças ocorreriam.

Logo em sua fala de abertura, Gleisi afirmou que "a Funai é um órgão envolvido com os interesses indígenas", e que, portanto, ela não é imparcial, colocando sob suspeição a competência da instituição para desenvolver as atribuições que estão sob a sua responsabilidade. A deixa da ministra para os ruralistas foi dada de forma bastante clara, e não podia ser mais perfeita. Mas ainda havia mais por vir.
 
 

 
Após inúmeras falas nervosas e contundentes em que a Funai, este órgão público do governo federal - é bom lembrar - foi chamada pelos deputados ruralistas de criminosa, vigarista, fraudulenta, incompetente, desonesta, dentre outros adjetivos, a ministra-chefe da Casa Civil afirmou que "a Funai não está preparada e não tem critérios claros para fazer a gestão de conflitos. Ela não tem a capacidade para fazer a mediação [entre índios e agricultores] pelo envolvimento que tem com os índios". Era tudo o que os ruralistas queriam ouvir: falava contra a Funai a voz delegada pela Presidência da República.

Raposa no galinheiro

Neste sentido, além dos critérios antropológicos, o governo também quer ter acesso a dados “qualificados” sociais e econômicos das áreas em processos de demarcação. “Queremos um mapa cartográfico sobre a ocupação do território. Queremos saber qual a produtividade na área, por quanto tempo os produtores tomaram crédito do governo, há quanto tempo há presença indígena porque os processos estão mais tensos agora sobre áreas antropizadas”, declarou Gleisi, candidata virtual ao governo do Paraná nas eleições de 2014, primeiro estado a ter as demarcações suspensas. [...]

Tudo muito bem articulado

O espetáculo protagonizado pela ministra da Casa Civil e pelos ruralistas já vinha sendo armado há bastante tempo. Há meses, o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo faz declarações à imprensa indicando que para a atual gestão a Funai não deve ser o órgão com preponderância para definir a demarcação das terras indígenas, tal como determina a Constituição Federal. Mais recentemente, no dia 29 de abril, em Campo Grande (MS), a presidenta Dilma foi vaiada por ruralistas que protestavam contra a demarcação de terras indígenas. A partir daí uma avalanche de boatos têm sido diariamente estampados nas páginas dos jornais sobre a possível demissão da presidenta da Funai, Marta Maria do Amaral Azevedo.

Na última terça-feira, 7, com base em análise da Embrapa, a ministra Gleisi pediu ao Ministério da Justiça a suspensão de estudos da Funai para a demarcação de terras indígenas no Paraná. Este ato foi divulgado pela mídia como “uma intervenção de Dilma na Funai” e agradou bastante a ala ruralista um dia antes da ministra Gleisi ir “se explicar” no parlamento sobre a demarcação de terras indígenas neste governo, atendendo a convocação da bancada ruralista.[...]

Coincidência ou não, a ministra Gleisi, um dia após pedir a suspensão das demarcações no Paraná, compareceu à audiência pública dos ruralistas, com as “boas” notícias sobre a efetivação de um novo marco regulatório para as demarcações de terras indígenas até o mês de junho. Na prática significa, em um primeiro momento, o esvaziamento e desmonte completo da Funai.

A tragédia vai além

[...] “Esta audiência pública é um divisor de águas e tem como objetivo a suspensão de todas as demarcações. Não há alternativa”, afirmou de modo bastante nervoso o deputado Vilson Covatti (PP/SC), conhecido detrator dos povos indígenas e de seus aliados, imputando falsas acusações e respondendo a processos por tais atitudes em seu estado de origem. 

A instalação da Comissão Especial sobre a PEC 215, que passa para o Legislativo a prerrogativa de definir as demarcações de terras indígenas, e a vigência da Portaria 303, que estende as condicionantes da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol para todas as terras indígenas do Brasil, também foram temas recorrentes e exigências apresentadas pelos ruralistas. Em relação a esta Portaria, o Advogado Geral da União (AGU), ministro Luís Inácio Adams, também assumindo claramente de que lado está, afirmou que “quanto mais rápido for o julgamento dela, maior clareza e certeza teremos em relação às condicionantes, que estão absolutas corretas em seu mérito[...]”. 

Não satisfeitos com a série de ataques orquestrados contra os povos indígenas, os parlamentares ruralistas ainda demandaram a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Funai, proposta recebida com aplausos pela claque formada pelos latifundiários vindos do Paraná, Bahia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. No total, segundo os próprios deputados, cerca de 1.100 representantes dos fazendeiros foram trazidos destes estados para pressionar o governo federal.

Por outro lado, 50 indígenas estiveram na audiência. Com o plenário tomado pelos ruralistas, que ultrapassavam em muito o número de 50 representantes acordado com a presidência da Câmara, os indígenas demonstraram força e coragem. De forma altiva, deixaram seu recado – apesar da censura imposta pelos ruralistas. Após cerca de duas horas, com gritos de “aqui é casa de ruralista e não de índio”, contra as manifestações preconceituosas dos deputados e da claque ruralista.

Os pequenos usados pelos grandes

O deputado Dionilso Marcon (PT-RS) alertou para a necessidade de explicitar o jogo armado pela bancada ruralista que, segundo ele, nunca se manifesta em nenhuma ação concreta para ajudar os índios que estão em situação de miséria. “O que me entristece é ver os pequenos agricultores e os quilombolas sendo colocados contra os índios. Os coronéis se escondem e estão usando os pequenos para atingir os seus objetivos”, afirmou. [...]

Já o deputado Ivan Valente (PSOL-SP) afirmou que para discutir questões indígenas importantes, como a PEC 215, era “fundamental que caciques indígenas estivessem na mesa, já que os caciques do agronegócio, como a senadora Kátia Abreu (PSD/TO) e o deputado Homero Pereira (PSD/MT), compuseram a mesa da audiência”. [...] “A Funai virou a Geni. Os índios não são responsáveis pelos problemas que estão ocorrendo. Eles são vítimas. Há 100 milhões de hectares na mão de proprietários particulares, e mesmo assim, não se discute a reforma agrária e o sistema fundiário. As soluções são complexas e não podem ser encaminhadas somente para beneficiar o agronegócio, sojeiros e madeireiros ”, afirmou Valente. Em relação à CPI da Funai, ele afirmou que até a assinaria desde que ela analisasse as atrocidades e violências cometidas contra os povos indígenas relatadas pelo recém descoberto Relatório Figueiredo, realizado pela ditadura militar em 1967. “Dois mil indígenas Waimiri-Atroari desapareceram na Amazônia”, exemplificou.[...]

No lugar errado, na hora errada? Ou muito pelo contrário...

O deputado Sarney Filho (PV/MA) fez a última fala da audiência e afirmou que quem deveria estar naquela sessão respondendo às questões relativas à Funai era o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, já que esta instituição indigenista é vinculada ao seu ministério. “Com todo respeito, ministra, a Casa Civil não tem nenhuma atribuição constitucional para discutir as questões indígenas”, declarou ele, que defendeu o quadro qualificado da Funai e a sua atuação. “O Congresso quer promover um retrocesso na legislação. Trata-se de uma manobra para não se criar mais nenhuma terra indígena”, concluiu ele.