Dalmo Dallari
Uma
portaria publicada recentemente, com a assinatura do advogado-geral da União,
contém evidentes inconstitucionalidades e ilegalidades, pretendendo revogar
dispositivos constitucionais relativos aos direitos dos índios, além de
afrontar disposições legais. Trata-se da Portaria nº 303, de 16 de julho de
2012, que em sua ementa diz que “dispõe sobre as salvaguardas institucionais às
terras indígenas”.
Antes
de tudo, para que fique bem evidente a impropriedade da portaria aqui
examinada, é oportuno lembrar o que é uma portaria, na conceituação jurídica.
Em linguagem simples e objetiva Hely Lopes Meirelles, uma das mais notáveis
figuras do direito brasileiro, dá a conceituação: “Portarias são atos
administrativos internos, pelos quais o chefe do Executivo (ou do Legislativo e
do Judiciário, em funções administrativas), ou os chefes de órgãos, repartições
ou serviços, expedem determinações gerais ou especiais a seus subordinados, ou
nomeiam servidores para funções e cargos secundários” (Direito administrativo brasileiro,
São Paulo, Ed. Rev.Trib., 1966, pág. 192).
Como
fica evidente, a portaria não tem a força da lei nem da jurisprudência, não
obrigando os que não forem subordinados da autoridade que faz sua edição. No
entanto, a Portaria nº 303, de 16 de julho de 2012, do advogado-geral da União,
diz que o advogado-geral da União, no uso de suas atribuições, resolve: “artigo
1º. Fixar a interpretação das salvaguardas das terras indígenas, a ser
uniformemente seguida pelos órgãos jurídicos da Administração Pública Federal
direta e indireta...”.
É
evidente a exorbitância, pois o advogado-geral da União não tem competência
para impor sua interpretação a quem não é seu subordinado. Essa é uma das
impropriedades jurídicas da referida portaria.
Para
dar uma aparência de suporte jurídico aos dispositivos da portaria, nela foram
inseridas, literalmente, restrições aos direitos constitucionais dos índios
constantes de argumentação expendida pelo ministro Menezes Direito no
julgamento recente do caso reserva Raposa Serra do Sol, dos índios ianomâmi. A
questão jurídica pendente do julgamento do Supremo Tribunal Federal naquele
caso era o sentido da disposição constante do artigo 231 da Constituição,
segundo o qual “são reconhecidos aos índios os direitos originários sobre as
terras que tradicionalmente ocupam”.
Esclarecendo
o alcance dessa disposição, diz o parágrafo 1º do mesmo artigo: “São terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as
necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições”.
Apesar
da clareza desse dispositivo, ricos invasores de terras indígenas pretendiam
que só fosse assegurado aos índios o direito sobre os locais de residência, as
malocas, propondo que a demarcação da área ianomâmi só se limitasse a esses
espaços, formando uma espécie de ilhas ianomâmi. O esclarecimento desse ponto
era o objeto da ação, e o Supremo Tribunal Federal deu ganho de causa aos
índios, considerando legalmente válida a demarcação de toda a área
tradicionalmente ocupada pela comunidade.
Numa
tentativa de reduzir o alcance da ocupação, o ministro Menezes Direito declarou
que reconhecia o direito dos índios, mas que eles deveriam ser interpretados
com restrições, externando tais limitações em dezenove itens, que denominou
condicionantes. Estas não integraram a decisão, que foi exclusivamente sobre o
ponto questionado, a demarcação integral ou em ilhas. E agora a portaria
assinada pelo advogado-geral da União tenta ressuscitar as condicionantes, além
de acrescentar outras pretensas restrições aos direitos indígenas. Assim, por
exemplo, a portaria diz que “é vedada a ampliação da terra indígena já
demarcada”.
Ora,
bem recentemente o Supremo Tribunal, julgando o questionamento da doação de
terras dos índios pataxós a particulares, feita pelo governo do estado da
Bahia, concluiu pela nulidade de tais doações, o que terá como consequência a
ampliação da área até agora demarcada como sendo o limite do território pataxó.
E nenhuma portaria pode proibir isso.
Outro
absurdo da portaria aqui questionada é a atribuição de competência ao Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, autarquia vinculada ao
Ministério do Meio Ambiente, para regular o usufruto dos índios dentro de suas
terras, direito expressamente assegurado pela Constituição e que não pode ser
regulado por uma portaria do advogado-geral da União.
Pelo
que já foi exposto, é evidente absurdo pretender atribuir novas competências a
uma autarquia federal por meio de uma portaria da Advocacia Geral da União.
Coroando as impropriedades jurídicas, a portaria em questão diz que é
assegurada a participação dos entes federados no procedimento administrativo de
demarcação das áreas indígenas, afrontando a disposição expressa e clara do
artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, segundo o qual
“A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a
partir da promulgação da Constituição”. Como é bem evidente, a competência para
a demarcação é da União, somente dela, sendo inconstitucional a atribuição de
competência aos estados federados como pretendeu a portaria. Por tudo o que foi
aqui exposto, a Portaria nº 303/2012 da Advocacia Geral da União não tem
validade jurídica, e qualquer tentativa de lhe dar aplicação poderá e deverá
ser bloqueada por via da ação judicial própria, a fim de que prevaleça a
supremacia jurídica da Constituição, respeitados os direitos que ela assegurou
aos índios brasileiros.
[Dalmo de Abreu Dallari, jurista, no Jornal do
Brasil (27/07/2012)]
Quem
é Luís Inácio Lucena Adams
O
ministro Adams, a exemplo de seu antecessor, José Antônio Toffoli, faz juras de
fidelidade ao governo Lula. Em entrevista à ISTOÉ, Adams falou sem rodeios: “A
AGU tem um cliente e esse cliente é o governo”, afirmou o ministro, primeiro
titular da AGU egresso dos quadros do próprio órgão.
[fonte Istoé n. 2087]
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