Esquecer, lembrar, sonhar

Passagem do ano

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade,
Memorial Copacabana, Rio de Janeiro


O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres
te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papeis,
farás viagens e tantas celebrações de aniversário,
formatura, promoção, glória,
doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos do lobo, na solidão.


Irreparáveis uivos do lobo, na favela do Moinho/SP


O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Cadeirantes na corrida de S. Silvestre, São Paulo, 31.12.2011

Merecestes viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também. 
Em ti mesmo muita coisa já expirou,
outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de corpo na mão esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar,
o recurso da dança e do grito, 
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.
[In: A rosa do povo (1945)]

Feliz Ano Novo - Paz e Bem
 

"Para sonhar um ano novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre." (Carlos Drummond de Andrade)




Encarnação profética na Pastoral da Igreja




XIII Capítulo Provincial da Congregação das Irmãs Catequistas Franciscanas, Curitiba/PR, 27 a 31 de dezembro de 2011.


Com espírito natalino, a Assembleia Capitular da Província São Francisco de Assis, da Congregação das Irmãs Catequistas Franciscanas, Curitiba/PR, avaliou sua encarnação profética na Pastoral da Igreja. No centro do Capítulo estiveram “Análise da Realidade”, avaliação do quadriênio passado, reflexão teológica sobre a dimensão trinitária do tema “Consagração, discipulado, missionariedade”, eleições do novo Conselho e novas prioridades.

A ministra provincial que partiu, Ir. Celestina Peron, recebeu flores e aplausos pela gestão passada e entregou as chaves da responsabilidade para a nova ministra, Ir. Ana Fusinato. O lema do Capítulo, “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2,5), permaneceu como imperativo: “Para o tempo que resta” (Pe. Paulo Suess, assessor) precisamos ter um olhar “para aquilo que falta” (Ir. Tereza Valler, ministra geral).

NATAL 2011: O DESAFIO DO NASCER E DO VIVER.

Nascer na rua, no Amparo ou na Favela -
para viver onde?


1. O Amparo Maternal de São Paulo

O Amparo Maternal é uma Instituição filantrópica com 70 anos de história em assistência a gestante de todo País pelo Sistema Único de Saúde - SUS. Nasceu da concepção de que nenhuma parturiente na cidade de São Paulo deveria ficar sem um local adequado para dar à luz.
Fundado em 1939 por um grupo de pessoas lideradas pela franciscana Madre Marie Domineuc, pelo médico e professor Dr. Álvaro Guimarães Filho e pelo Arcebispo de São Paulo Dom José Gaspar de Alfonseca e Silva, o Amparo Maternal nasceu com a ideologia de albergar gestantes que não tinham um local digno para dar à luz, muitas delas vivendo nas ruas da cidade de São Paulo.

Voluntárias no Amparo
Com o apoio da Associação Congregação de Santa Catarina desde o ano de 2008 em sua gestão, o Amparo Maternal vem desenvolvendo novos projetos sociais e de formação profissional, para cada vez mais contribuir com sua missão de valorização da vida. A valorização do ser humano e do momento do nascimento está presente em todas as ações dos profissionais e voluntários que aqui trabalham. Opção pelos pobres significa: os pobres em primeiro lugar e para os pobres o melhor!


2. Viver na favela: 11 milhões de brasileiros

Um dia após de o IBGE ter publicado a notícia que 11,4 milhões de brasileiros vivem em favelas (“ocupações irregulares”), São Paulo testemunhou a quase total destruição da Favela do Moinho, no Centro da cidade. De acordo com o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, uma moradora da favela teria dado início ao incêndio na favela. Ela pôs fogo em seu barraco durante briga com o marido. As causas do acidente ainda serão investigadas em inquérito. Segundo os dados do Censo do ano passado, a Favela do Moinho conta com 1.656 habitantes em 530 casas. A Defesa Civil, por sua vez, aponta que a população da comunidade é de 2,5 mil pessoas em 600 imóveis. Até agora, duas pessoas morreram. Onze moradores foram retiradas da laje do prédio abandonado, onde funcionava o Moinho Matarazzo, e levados para a quadra de uma escola da região, pelo helicóptero Águia, que usou uma cesta de salvamento para a retirada das vítimas.


3. Para onde vais? „Ficar em albergue é como ficar na rua. A gente precisa é de uma moradia“.

Sob sol intenso, os moradores que ficaram desabrigados após o incêndio da Favela do Moinho, na região de Campos Elíseos, no Centro de São Paulo, se reuniam em frente a uma creche para pegar água e alimentos na manhã desta sexta-feira (23). Entre eles, os relatos de quem perdeu tudo em meio às chamas.
A auxiliar de serviços gerais Eliene Maria de Jesus, de 38 anos, morava com cinco filhos e um neto em um barraco que ficou completamente destruído. “O meu foi um dos primeiros a ser queimados. A roupinha nova que meus filhos iam usar no fim de ano vão fazer falta, mas eu sinto muito pelas vidas que se perderam”, disse enquanto esperava para pegar um copo d´água. Eliene não quer ir para albergue. “Ficar em albergue é como ficar na rua. Morar em situação ruim a gente já morava. A gente precisa é de uma moradia.”
“Eu estou um pouquinho triste. Queimou a minha roupa, minha bicicletinha, os copos, os pratos”, contou Amanda Teixeira da Silva, de 6 anos. A mãe dela, Maria Teixeira dos Santos, de 44 anos, pediu abrigo a uma amiga. “Esse Natal vai ser triste”, disse.



Feliz Natal


UM NATAL DE CALAMIDADE HABITACIONAL - NASCER NA FAVELA, "NOITE FELIZ"

O censo do IBGE de 2010 mostra
que o número de pessoas vivendo em favela
quase dobrou em uma década: pulou
de 6 para 11 milhões de pessoas -
6% da população do país

Paraisópolis -
um bairro da cidade de São Paulo

Donizeti Costa

SÃO PAULO. O aumento do número de pessoas vivendo em favelas no país na última década chama a atenção, sobretudo, por abranger os oito anos do governo Lula - época de economia em crescimento e de maior distribuição da renda, mas que não impediu esse viés negativo do ponto de vista habitacional. Para a arquiteta Ermínia Maricato - que foi secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano da prefeitura de São Paulo de 1989 a 1992, na gestão Luiza Erundina -, esse desencontro de índices é fácil de explicar:
- Mesmo entrando dinheiro para as camadas menos favorecidas, sem uma regulação dos preços da terra e dos imóveis urbanos, elas continuarão sem ter acesso à casa própria. E, como consequência, morando em imóveis irregulares, de elevado risco e na periferia.
Segundo Ermínia, a aplicação do Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, ajudaria a corrigir essa distorção. Ela lembra que, quando o município, usando dinheiro público, leva benfeitorias como asfalto, água, esgoto e eletricidade a regiões sem infraestrutura, a valorização do bem vai para o bolso do dono do imóvel. As Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), previstas no Estatuto, corrigiriam isso:
- O terreno só poderia ser usado para a construção de determinado imóvel, que seria vendido por um preço determinado para moradores de determinada faixa de renda.
Raquel Rolnik, outra referência em arquitetura e urbanismo no país, diz que é preciso certo cuidado na análise do levantamento de moradias irregulares. Para ela, além da mudança de metodologia, reconhecida pelo instituto, é preciso que se levem em conta outros fatores:
- Na pesquisa não se levam em conta, por exemplo, loteamentos clandestinos. Nem grupamentos subnormais em número inferior a 51 moradias - diz a especialista, lembrando ainda que um estudo feito por ela em 2000 indicava que apenas 30% dos domicílios do Brasil tinham condições urbanas adequadas. E cita, como exemplo, bairros inteiros do Litoral Norte de São Paulo que não eram servidos por rede de esgoto.
- O levantamento do IBGE é um retrato parcial da realidade, mostra apenas uma parte da precariedade urbanística do Brasil.
A arquiteta e urbanista constata ainda que, além de não implementarem a total aplicação do Estatuto da Cidade, os governos vêm ajudando a aumentar a massa de excluídos habitacionais com projetos como os da Copa 2014, das Olimpíadas de 2016 e, no caso específico de São Paulo, do Rodoanel e da recuperação da várzea do Rio Tietê.
- Para recuperar o rio, querem que os moradores do Jardim Pantanal, na região de São Miguel, troquem área que tem metrô, escolas e postos de saúde por Itaquá, a 40 quilômetros dali, num lugar que não tem nada disso - exemplifica ela. - Isso é produção em massa de favelas, o mesmo que enxugar gelo.
Roberto Romano, professor titular de Ética e Filosofia Política da Unicamp, afirma que o conflito entre a atual pujança econômica e o declínio habitacional do país apontado pelo estudo do IBGE remete aos tempos da ditadura militar:
- Na época do governo do general Médici havia até uma frase para definir isso: "O país vai bem, mas o povo vai mal".
Ele até reconhece que nos últimos anos houve uma evolução nos ganhos da população de baixa renda, mas não o bastante para tirá-la da quase clandestinidade habitacional.
O secretário da Habitação de São Paulo, Ricardo Pereira Leite, faz questão de frisar que os 41% de aumento das moradias irregulares no estado de São Paulo se devem a mudanças no critério de pesquisa. Como exemplo, cita que habitações que antes não eram consideradas subnormais agora aparecem assim enquadradas:
- Nós (a Prefeitura e o instituto) trabalhamos com um número bem próximo de pessoas morando em favelas, de cerca de 1,3 milhão. Mas, nestes dez anos, o crescimento no números de habitantes desse tipo de moradia foi semelhante ao aumento populacional na cidade, da ordem de 3%.
Paraisópolis - Favela de S. Paulo
- O processo de urbanização dos grandes centros metropolitanos não foi acompanhado por políticas públicas habitacionais - diz o professor e doutor do Núcleo de Estudos de População da Unicamp Roberto Luiz do Carmo, ao comentar os índices divulgados ontem pelo IBGE sobre o processo de "favelização" das regiões metropolitanas [a matéria se encontra na íntegra em: O Globo, 22/12/2011, p. 9, colaborou: Mauricio Simionato].

A renda do brasileiro

por Silvio Caccia Bava, 
Le Monde Diplomatique Brasil, Dezembro

Muitos pobres, poucos ricos
O IBGE acaba de divulgar os primeiros resultados do Censo 2010. E os dados sobre a renda dos brasileiros contrastam com a imagem, difundida com sucesso, de que o Brasil está se tornando um país desenvolvido, que está erradicando a pobreza.
Ainda que nos últimos anos tenha havido uma melhora em quase todos os indicadores sociais, a questão é o piso de onde partimos e as políticas públicas praticadas. Um piso muito baixo, fruto de um arrocho de muito anos, e políticas públicas que não enfrentam com o devido rigor o núcleo gerador da pobreza: a produção da desigualdade.
Os dados do Censo que identificam o rendimento domiciliar per capita, divulgados no mês de novembro, mostram um cenário de pobreza que não está sendo debatido no espaço público: 25% da população têm uma renda mensal de até R$ 188. Cinquenta por cento da população têm uma renda mensal que não ultrapassa R$ 375. Traduzindo numa renda diária, os primeiros têm R$ 6,27, e os segundos, R$ 12,50. E estamos falando de metade da população brasileira.
Essas informações nos levam a perguntar acerca do impacto efetivo das políticas de combate à pobreza. E nos obrigam a estender nosso olhar para buscar séries históricas, em que possamos comparar as condições do passado com as atuais.
Um dos elementos importantes é o piso estabelecido pelo salário mínimo. Ainda que de 2002 a 2010 o salário mínimo tenha crescido, em termos reais, 54,25%, o atual salário mínimo de R$ 545 ainda é menor que o de 1985, que a preços de hoje corresponderia a R$ 567,35, de acordo com o Dieese. Essa entidade identifica ainda que, para atender aos requisitos da lei do salário mínimo, este deveria estar em R$ 2.194,76 em janeiro deste ano. Na Argentina, o salário mínimo hoje é de R$ 765,81.
Também cresce a participação da renda dos salários no total da renda nacional. Mas se em 2010 ela foi de 43,6% e melhorou em relação a 2005, quando era de 40,1%, não podemos esquecer que em 1980 ela era de 50% e, em 1959, de 55,5%.
Mas se o Brasil hoje é a sétima economia do mundo, caminhando para ocupar posições ainda melhores no futuro próximo, a pobreza de grande parte de sua população só se explica pela desigualdade na apropriação da riqueza e da renda, por políticas públicas de concentração da renda e da riqueza. Os 10% mais ricos detêm 75% da renda e da riqueza nacionais. E dentro desse segmento estão 5 mil famílias extensas que possuem 45% da renda e da riqueza nacionais. A desigualdade também se reduz, lentamente, como o coeficiente de Gini nos mostra, mas não altera a posição do Brasil como um campeão da desigualdade. Em 2002, ele era de 0,587; em 2010, é de 0,526, ocupando a 84ª posição em um conjunto de 187 países.
Talvez a política pública mais importante para a produção da desigualdade seja a definida pelo Comitê de Política Monetária, o Copom. É ele que define a taxa de juros a ser paga para remunerar os tomadores da dívida pública. Entre os principais tomadores estão os bancos privados e os fundos de pensão.
Desde o final da década de 1990 o Brasil vem transferindo anualmente de 5% a 8% do PIB para os ricos, por meio principalmente dos juros, amortizações e refinanciamentos da dívida pública interna. Quem compra títulos do governo brasileiro tem o maior rendimento do mundo! Quarenta e cinco por cento do orçamento geral da União, algo como R$ 635 bilhões em 2010, remuneram esse investimento. Isso sem falar nos R$ 116,1 bilhões de isenções tributárias/redução de impostos para os ricos e suas empresas. Para ter uma comparação, R$ 7,5 bilhões foram destinados em 2011 para o saneamento básico, num país onde 45% dos municípios não coletam esgoto.
 

Há 500 anos - o protesto do dominicano Antônio Montesino

Profecia ontem e hoje:
na luz e na sombra de Montesino



          Há três maneiras de contar a história: a do marinheiro, do camponês e do pescador. O marinheiro conta viagens que ele realmente fez e as mistura com outras que ele queria ter feito. O marinheiro é o macro-historiador. O pescador transforma a piranha, que ele pescou, em peixe boi que lhe foi roubado por uma onça no caminho para casa. O pescador inventa a história. O camponês conta pequenas histórias da vida cotidiana de casa e trabalho. O camponês é o historiador da micro-história. Na história da América Latina, quando alguém fala da presença profética da Igreja durante a época colonial, geralmente, se trata da história de pescador.
         
              Cenário 1- 1511
          Neste quarto Domingo de Advento comemoramos 500 anos da denúncia profética de Antonio Montesinos. Havia, portanto, na conquista espiritual das Américas também vozes proféticas, como a de Bartolomé de Las Casas, bispo de Chiapas (México) e de Diego de Medellín, terceiro bispo de Santiago de Chile. Vozes proféticas, porém, não devem ser confundidas com uma Igreja profética (cf, Documento de Santo Domingo, n. 4 e 20).
          Montesinos fazia parte da comunidade dominicana de Santo Domingo. Sua voz e a de sua comunidade foram logo condenadas pelo poder político e religioso a um “silêncio obsequioso”. Para essa comunidade, a prática missionária de um só ano foi suficiente para perceber que o maior obstáculo para conversão e catequese dos índios não era sua idolatria, mas a injustiça praticada contra eles.
          Naquele memorável quarto Domingo de Advento, de 1511, os dominicanos convidaram o governador Diego Colombo, os oficiais do Rei e os juristas letrados para a sua Igrejinha de palha. Frei Antônio Montesinos era seu porta-voz, quando bradava: “Todos estais em pecado mortal e nele viveis e morreis por causa da crueldade e tirania que usais com estas gentes inocentes. Dizei, com que direito e com que justiça tendes em tão cruel e horrível servidão estes índios?” (cf. http://www.missiologia.org.br)

          Cenário 2 - 1992
          No dia 16.03.1512, o dominicano Montesino foi castigado com um silencia obsequioso, da parte de seu provincial de Madrid, do qual nunca mais se recuperou. Ele e sua comunidade foram definitivamente proibidos de se pronunciar sobre a “horrível servidão dos índios”. E quando se tratou de celebrar uma missa penitencial no Monumento de Antonio Montesino, durante a Conferência de Santo Domingo (1992), a coordenação do evento declarou tal proposta como manobra da esquerda. Os únicos que tiveram a coragem de participar dessa missa penitencial aos pés do monumento de Montesinos foram os bispos Dom Erwin Kräutler e José Maria Pires (parabéns, D. José, pelos seus 70 anos de sacerdócio, no dia 20.12.!) Em condições conspirativas romperam o bloqueio oficial da Conferência de Santo Domingo.

          Cenário 3 - 2011
          Sinais e ações proféticos marcam resistências contra o sofrimento. Na revolta da “Primavera Árabe”, no “Movimento dos Indignados”, da Espanha, no levante estudantil, do Chile, nos protestos “Ocupe Wall Street”, nos Estados Unidos, na resistência indígena na Bolívia e no Brasil e na indignação militante contra Belo Monte e a transposição do Rio S. Francisco, o cálice do sofrimento transborda. Ramificações desses movimentos de protesto apontam no mundo inteiro para a construção de “outra sociedade”. Cada gesto simbólico ou real de gratuidade profética rompe com a normalidade do sistema. Cada transformação de relações de competição em relações de reciprocidade e solidariedade pode estar na raiz de uma nova sociedade.

COP-17: um compromisso político. Entrevista com Maureen Santos

O compromisso político firmado entre os países que participaram da 17ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (ou COP-17), em Durban, demonstra que “ainda existe uma esperança em relação a esse espaço multilateral de discussão”, avalia Maureen Santos.



A assessora do Núcleo Justiça Ambiental e Direitos da Fundação de Atendimento Sócio-Educativo – FASE participou da COP-17 e retornou ao Brasil no início da semana, quando concedeu a entrevista a seguir à IHU On-Line por telefone. Em sua avaliação, “do ponto de vista concreto em relação ao problema das mudanças climáticas, os compromissos assumidos ficaram muito aquém das reais necessidades”.

Entre as novidades, Maureen destaca a postura da presidente da COP-17, Maite Nkoana-Mashabane, que incluiu nos relatórios as demandas dos países pobres e mais impactados pelas mudanças climáticas. “Do ponto de vista da organização africana, a conferência foi muito positiva e bastante diferente do que estávamos acostumados a ver nos demais encontros. (...) A presidente da COP-17 escreveu um texto paralelo, incluindo essas propostas para que elas sejam discutidas no ano que vem, ou para que, de alguma forma, os países se envolvam com essas temáticas”, relata.
A próxima conferência do clima acontecerá no próximo ano, em Catar, mas, na avaliação de Maureen, a escolha pelo país árabe é preocupante, “não só pela questão do petróleo que existe no país, que vai contra toda essa questão climática, mas porque lá há sérios problemas em relação à democracia, à organização social, sindicatos. Isso demonstra uma dificuldade de transparência nas negociações”, conclui.
Maureen Santos é formada em Relações Internacionais, pela Faculdade Estácio de Sá, e mestre em Ciência Política, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

Confira a entrevista com pequenos cortes.

IHU On-Line – Quais são as principais decisões e resultados da COP-17?
Maureen Santos – Os países conseguiram elaborar um documento, uma plataforma de compromisso político denominada Plataforma de Durban, mas isso não quer dizer que tomaram medidas vinculantes ou legais. De todo modo, o compromisso político demonstra, de alguma forma, que os países têm interesse em continuar neste espaço multilateral de negociação e isso fortalece a conferência. Se eles não tivessem elaborado nenhum documento final, demonstrariam claramente que não veem a conferência do clima como útil para a governança internacional das mudanças climáticas.
Se podemos dizer que há algum aspecto positivo resultante da COP-17, diria que é essa demonstração de que ainda existe uma esperança em relação a esse espaço multilateral de discussão. No entanto, do ponto de vista concreto em relação ao problema das mudanças climáticas, os compromissos assumidos ficaram muito aquém das reais necessidades. Por um lado, saiu um adendo para poder continuar o segundo período de compromissos do Protocolo de Kyoto, mas esse adendo não é assinado por todos os países do Anexo 1. O objetivo deste compromisso foi poder segurar o Protocolo de Kyoto, ou seja, manter um instrumento vinculante por mais tempo, enquanto os países não conseguem estabelecer outro acordo.
Os países também discutiram a implementação do Fundo Verde, mas ainda não decidiram como será feita a gestão desse fundo e, portanto, não chegaram a um acordo sobre este tema, apesar de haver um compromisso político de implementação desse fundo.
Também saiu a abertura da discussão sobre o novo regime global de clima, que seria um novo acordo ou um novo protocolo, com negociações para começar no próximo ano, 2012, e terminar em 2015, para que esse novo regime possa começar a ser estabelecido a partir de 2020. Isso em termos de eficácia para a questão do clima é muito complicado. Se formos pegar os dados do Intergovernamental Panel on Climate Change – IPCC, por exemplo, 2020 é um prazo muito extremo para se tomar qualquer medida concreta de enfrentamento à crise climática. Isso demonstra que os países não estão tão preocupados, ou estão mais preocupados com as questões domésticas do que propriamente em pensar num mecanismo multilateral de enfretamento do problema climático. O que vimos na conferência é que os países mais pobres, mais impactados, são os que realmente estão preocupados com as causas das mudanças climáticas e defendiam a implantação de um compromisso coletivo.
Dentro dessa plataforma de Durban saiu também um documento sobre o Long-term Cooperation Agreement – LCA, que é o acordo de cooperação de longo prazo, que terminava inicialmente este ano e foi estendida até a COP-18 no ano que vem. As negociações até agora eram feitas em dois trilhos: o Protocolo de Kyoto, no intuito de renovar o segundo período, e o outro sobre o LCA, que é, como dito, o acordo cooperação de longo prazo, e a implementação da convenção como um todo. Esse LCA continua funcionando no próximo ano e acaba no final do ano que vem.
Um aspecto positivo foi o fato de não ter saído nenhum mecanismo de financiamento ligado ao mercado ou mercado de carbono para REDD+, nem ter saído um programa de trabalho para agricultura, que esteve presente nas negociações, porém não sendo aprovada sua proposta.
Ficou decido que a próxima COP será realizada em Catar, de 26 de novembro a 8 de dezembro de 2012. Vimos essa decisão com muita preocupação, não só pela questão dos combustíveis fósseis e que vai contra toda essa questão climática, mas porque lá há sérios problemas em relação à democracia que cria sérios problemas para a organização social, para sindicatos. Isso pode significar problemas na participação e transparência nas negociações.
IHU On-Line – Como os africanos se posicionaram durante a conferência, considerando que a África é um dos continentes mais atingidos pelas mudanças climáticas? E como você avalia a postura da presidente da COP-17, Maite Nkoana-Mashabane, durante o encontro?
Maureen Santos – Várias organizações africanas participaram do processo da conferência. Entre a primeira e a segunda semana de negociação, aconteceu um fórum chamado Espaço dos Povos C-17. Foi também organizado o Toxic Tour pelos movimentos de justiça ambiental local para que nós visitássemos regiões que estão sendo impactadas pelas refinarias de petróleo e de metais pesados. Nós visitamos estas regiões e uma escola, conversamos com professores, ficamos sabendo dos impacto e percebemos a diferença da qualidade do ar de uma região para a outra.
Aconteceram também algumas manifestações na conferência e outras manifestações do lado de fora, como a marcha do dia 3, que reuniu 10 mil pessoas. Na sexta-feira passada, ocorreu uma manifestação impactante do lado de dentro na hora em que os ministros estavam negociando o acordo. O clima estava tenso e esta manifestação deu apoio para que os países em desenvolvimento não aceitassem as pressões dos países desenvolvidos, que não queriam aceitar nenhuma negociação.
Organização africana
Do ponto de vista da organização africana, a conferência foi muito positiva e bastante diferente do que estávamos acostumados a ver nos demais encontros. A presidente da COP-17 teve uma atitude muito mais transparente, envolvendo e escutando os países africanos e incluindo a demanda deles e dos países pobres nos relatórios. Inclusive, no sábado pela manhã, quando foram apresentados os dois novos documentos, um deles, que dizia respeito a acordos futuros, incluiu diversas demandas, como a questão de propriedade intelectual que a Índia trouxe para o debate, os direitos da mãe-terra, que a Bolívia apresentou, a questão dos refugiados, e uma série de questões que já vinham sendo discutidas por alguns países, mas que não eram incluídas nos textos da conferência. A presidente da COP-17 escreveu um texto paralelo, incluindo essas propostas para que elas sejam discutidas no ano que vem, ou para que, de alguma forma, os países se envolvam com essas temáticas.
Alguns países da União Europeia, como a França, tentaram criticar o evento e disseram que a metodologia utilizada pela presidente da COP-17 era muito ruim e que isso estava impedindo os países de chegarem a um acordo. Eles estavam querendo encontrar uma desculpa para mostrar que o fato de não se chegar a um acordo era culpa da presidente da COP-17.
IHU On-Line – Como você avalia a prorrogação do Protocolo de Kyoto e a expectativa de os países assumirem metas apenas em 2020? Os países não levaram em conta os últimos relatórios do IPCC?
Maureen Santos – De fato, os países não levaram em conta o relatório. Mas a justificativa é de que um acordo para 2015 é mais interessante porque os países terão mais tempo de analisar o novo relatório do IPCC sobre eventos extremos. Mas, na verdade, isso parece muito mais uma desculpa para adiar um acordo, porque eles não levaram em consideração o relatório de 2007.
Por outro lado, um acordo para todas as partes com metas vinculantes e sem diferenciação neste momento seria injusto porque os países historicamente emissores de gases ainda não cumpriram sua parte. Pensar em um acordo vinculante para a China, Brasil e demais países em desenvolvimento em 2020 é importante. Mas, neste momento, era necessário que os países do Anexo 1 assumissem suas dívidas históricas.
As conferências têm mostrado que, ao longo dos 20 anos, os países estão protelando acordos efetivos, então, não há como saber se em 2020 será assinado, de fato, algum acordo. O Brasil está disposto a assinar esse acordo, até porque o país está em uma situação confortável porque já aprovou metas voluntárias em lei e, provavelmente, aprovará outras metas em uma negociação formal.
IHU On-Line – Como a política ambiental brasileira repercutiu em Durban? A aprovação do novo texto do Código Florestal teve repercussão?
Maureen Santos – O Itamaraty sempre tem um papel importante nesses encontros e foi visível o apoio que eles deram para a presidente africana da COP-17. A aprovação do novo texto do Código Florestal foi uma vergonha e, no dia anterior à aprovação do novo texto, o Brasil havia apresentado um relatório na COP-17, mostrando que o desmatamento havia sido reduzido em 11%. No dia seguinte, a aprovação do texto caiu como uma “bomba” na conferência e o país foi muito cobrado. Os demais países quiseram saber como o Brasil iria cumprir as metas, e se o novo Código irá favorecer o desmatamento e anistia de desmatadores.

IHU On-Line – Qual a mensagem política e ambiental da COP-17?

Maureen Santos – A conferência mostrou que estamos diante de uma cilada: são vinte anos de negociações e esse é um período longo para os países não fazerem praticamente nada. A conferência demonstra a dificuldade que os países têm de transcenderem seus interesses nacionais e pensar de que forma eles podem enfrentar o problema das mudanças climáticas, o qual envolve todas as nações. Ao mesmo tempo, o encontro demonstra que, ainda é possível, através da diplomacia não jogar todas as negociações no lixo. A cúpula teria sido ainda pior se os países não tivessem conseguido elaborar um texto comum. A conferência mostra que ainda há chances de dar continuidade às negociações de espaços multilaterais, mas ao mesmo tempo demonstra que essa não é a saída, porque os países não conseguiram criar nenhum mecanismo que possa enfrentar concretamente o problema das mudanças climáticas.

Durban/África do Sul: Terminou a 17ª Conferência das Nações Unidas sobre as mudanças climáticas


"Foi um momento histórico", celebravam os diplomatas à saída do centro de conferências de Durban, na África do Sul, na manhã de domingo. O pacote de decisões aprovado deu fôlego ao sistema multilateral e é um sinal positivo para equacionar o problema, mas está longe de salvar o clima. Os resultados da 17ª COP das Nações Unidas levam o mundo a um aumento da temperatura entre 3 ºC e 4 ºC, um horizonte de intensos desastres naturais.
 

Os principais pontos da Conferência do Clima de Durban

 194 países se reuniram na 17 rodada de negociações da Convenção do Clima da ONU, cuja meta é deter o aquecimento global ao limitar as emissões de gases do efeito estufa. A conferência durou dois dias além do previsto, na mais longa conferência ambiental realizada. O que foi obtido? Após duríssimas negociações, se chegou a "Plataforma de Durban". No documento de duas páginas, pela primeira vez, todos os países prometem cortar emissões. Um plano guiará os países em negociações até 2015 para que cheguem a um acordo legal de cortes. Porém, ele só começará a vigorar em 2020.

Foi um avanço ou um retrocesso?

Depende do ângulo que se olhe. Um sucesso em termos de manter as negociações vivas, salvando o processo da ONU, após este quase ter colapsado em Copenhague e Cancún. A União Europeia chama seu plano de ação (a Plataforma de Durban) de “avanço histórico”. Para a UE, essa é a primeira vez que EUA, China e Índia se comprometem a assinar um tratado de legal para cortar emissões. Porém, é um atraso do ponto de vista de muitos países em desenvolvimento, de grupos ambientalistas e de cientistas. Eles argumentam que a linguagem usada precisa ser mais forte para forçar os países a agir e que deveria haver datas concretas de cortes.

E o Protocolo de Kioto?

Ele será estendido até 2017, com metas de redução para a UE e poucos outros países desenvolvidos. Japão e Rússia já tinham anunciado que deixariam Kioto. Um novo acordo deve ser negociado para cobrir o período até 2020. Porém, Índia, China e EUA continuam de fora. Os dois primeiros porque não têm obrigação legal e os EUA por não serem signatários. Nesse período de intervalo países como o Brasil, que têm metas voluntárias, continuarão a fazer cortes de emissões.

E o dinheiro prometido em 2010 para ajudar os países pobres?

O Fundo Verde criado em Cancún deverá dispender US$ 60 bilhões por ano a partir de 2020. Porém, os detalhes de como isso será feito são muito vagos. Não está definido de onde virá o dinheiro. Uma das possibilidades são taxas sobre a aviação.

E os planos contra o desmatamento?

O REDD, o plano para pagar países pobres a não cortar suas árvores, avançou pouco. Mais uma vez, não ficou definido de onde virá o dinheiro. Há temor de que os recursos sejam desviados em corrupção. O REDD deverá continuar na mesa de negociação.

O que o acontecerá agora?

Rodadas sobre clima estão previstas para março, em Londres, em Bonn (Alemanha), e finalmente no Quatar, na COP-18, em dezembro de 2012. Embora a Rio+20 não tenha foco no clima, especialistas acreditam que ela será fundamental nesse sentido. Em 2012 começam as negociações para se chegar a um acordo em 2015. Isso incluirá as metas por países, que deverão ser diferenciadas. Se espera que países sejam pressionados pela sociedade a assumir metas mais ousadas.

[Fonte: O Globo. Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/ciencia/os-principais-pontos-da-conferencia-do-clima-de-durban-3428845#ixzz1gMzFJU1c]

“Voz que grita no deserto”: Júlio Lancellotti, vigário episcopal do povo de rua

Moradores de rua: ''É preciso ter coragem para amá-los''. Entrevista com Júlio Lancellotti concedida por telefone à IHU On-Line (2.12.2011)


O Pe. Júlio Lancellotti destaca que as políticas públicas elaboradas para transformar a condição de vida dos moradores de rua precisam fazer parte de um processo socioeducativo, pois “não existe solução imediata" como internação compulsória, ações higenistas de limpeza da cidade” para resolver a questão. Apenas na cidade de São Paulo, informa, existem aproximadamente “13 mil pessoas [que] vivem em situação de rua”. E reitera: “Quem está na rua teve um caminho para chegar lá e agora precisa de um caminho para sair de lá com suas próprias pernas”.
 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que leva as pessoas a se tornarem moradoras de rua?

 Júlio Lancellotti – As causas não são fáceis de serem conhecidas e não há uma única causa. Cada pessoa é um mistério que precisamos conhecer. Só vamos conhecer uma pessoa quando convivermos com ela. Se as pessoas não convivem com o morador de rua, não é possível saber a causa que o levou a morar na rua. De todo modo, não é a causa sabida que imediatamente muda a situação. Ao conhecer as pessoas, percebemos que elas passaram a morar na rua porque tiveram perdas sucessivas, frustrações, desilusões muito fortes, situações econômicas difíceis, e até problemas de saúde mental, ou seja, uma série de situações que desumaniza a vida. E a vida fica tão desumanizada que as pessoas acabam abandonadas. Para os moradores de rua, o fato de estar na rua significa que ninguém quis conviver com eles, ninguém soube socorrê-los e, portanto, estão expostos para que todos os vejam.

IHU On-Line – Por que muitas vezes os moradores de rua são agredidos e como eles reagem? Quais são as razões dessa violência e por que esses casos são abordados de maneira sutil pela mídia brasileira?

 Júlio Lancellotti – A população de rua vive num anonimato: muitas vezes as pessoas veem o morador de rua, mas se quer sabem o seu nome. Ninguém se aproxima dele para saber qual é sua situação. É preciso saber quem são essas pessoas, por que elas vivem uma situação de exposição absoluta.

Pela fragilidade, ou às vezes pela agressividade, são agredidas até de maneira letal. Hoje vivemos no Brasil uma epidemia de violência contra a população de rua. Parece que eles viraram o bode expiatório ou que, ao atingi-los, as pessoas estão fazendo um bem, tirando dos nossos olhos aquilo que nos incomoda. Atingir os moradores de rua é um ato que está se tornando comum, mas que demonstra a incompetência da sociedade, do Estado e das comunidades de acolher e dar um encaminhamento a essas pessoas. Há um higienismo embutido em nós, porque não queremos ver aqueles que nos questionam e demonstram o quanto somos frágeis.

IHU On-Line – É possível estimar quantas pessoas vivem nas ruas atualmente? É possível traçar um perfil dos moradores de rua do Brasil? O uso de drogas favorece a vida nas ruas?

Júlio Lancellotti – A questão das drogas é um dilema: a pessoa usa drogas porque está na rua ou está na rua porque usa drogas? Essa é uma equação que ainda não podemos afirmar com clareza: as duas respostas são possíveis. Muitas vezes não há como sobreviver na rua sem ser envolvido pela questão das drogas.
Em São Paulo, atualmente mais de 13 mil pessoas vivem em situação de rua, número que é mais elevado do que a população de muitos municípios brasileiros. Um levantamento recente fez uma contagem do número de moradores de rua nas cidades com mais de 300 mil habitantes; viu-se que se pode elevar esse número para mais de 30 mil somente nas cidades que têm esse número populacional, sem considerar São Paulo e cidades maiores, que têm um censo próprio.
A articulação entre o movimento nacional da população em situação de rua, do trabalho da pastoral de rua nacional e outros grupos, conseguiu que, no próximo censo, o IBGE faça também um censo da população de rua porque, até então, isso não era feito. Já estão sendo feitas pesquisas e levantamentos para isso, porque não basta somente contar o número de pessoas que vivem nas ruas, mas é preciso fazer pesquisas para averiguar questões qualitativas.

IHU On-Line – Quais são hoje as políticas públicas destinadas aos moradores de rua? Como o senhor avalia as políticas públicas para moradores de rua?

 Júlio Lancellotti – Hoje, existe uma política pública nacional para a população em situação de rua. Essa política pública instituída pela presidência da República tem que ser seguida. O morador de rua é o elo mais frágil e mostra como nós ainda não somos capazes de chegar a todas as pessoas e o quanto nós ainda temos que aprender com eles para construir conjuntamente as respostas que dignifiquem a vida.
A política pública prevê o trabalho intersetorial, ligando a questão da saúde, do trabalho, moradia, educação, do acolhimento destas pessoas. Hoje existe oCentro de Atenção Especial de Assistência Social – CREAS, que atende pessoas em situação de rua. As cidades de menor porte têm mais possibilidades de atender a essas pessoas, devido às políticas de assistência social, moradia, aluguel social, repúblicas terapêuticas, trabalhos ligados à saúde mental. Também há possibilidade mais fácil em acolher essas pessoas em pequenos grupos, de ter atividades produtivas, frentes de trabalho, cotas de trabalho para que elas sejam empregadas, etc.. Esse é um trabalho que já está com suas diretrizes estabelecidas nesta política nacional da população de rua e precisa ser assumida pelos estados e municípios.

 IHU On-Line – Quais são as maiores dificuldades enfrentadas pelos moradores de rua?

 Júlio Lancellotti – O desprezo, a invisibilidade, o não levar em conta a indiferença, a ausência de políticas públicas que não o tenham como clientes, mas como uma pessoa sujeita de direitos que deve ser respeitado. Falta um trabalho para lidar com essa questão como um processo socioeducativo. Não existe solução imediata como internação compulsória, ações higenistas de limpeza da cidade. É preciso trabalhar com eles, formar comunidades. O que existe é uma vontade muito rápida de resolver o problema, não levando em conta que quem está na rua teve um caminho para chegar lá e agora precisa de um caminho para sair de lá com suas próprias pernas.

 IHU On-Line – Como o senhor vê o contraste existente entre vários prédios públicos e privados abandonados e o alto índice de moradores de rua? O que dificulta a habitação desses locais?

Júlio Lancellotti – Poderia haver locação social e a inclusão da população de rua em programas habitacionais. É um escândalo ter prédios públicos e privados abandonados. Isso atenta aos direitos fundamentais da pessoa humana: toda a pessoa precisa ter um local para viver, um local para descansar, para fazer sua alimentação, para viver a sua vida. Ter prédios vazios só serve para especulação imobiliária.

IHU On-Line – Qual é o conceito de dignidade que os moradores de rua têm?


 Júlio Lancellotti – Eles não querem ser humilhados; querem ser tratados com dignidade. Precisam de alguém que seja capaz de dar a mão e olhar nos olhos, saber o seu nome, conversar com eles sem asco, estar ao seu lado. Precisam ter um lugar digno para deitar e descansar o corpo, ter uma assistência que cuide de suas feridas e dos sofrimentos, que saiba que eles também têm sonhos e pesadelos, que eles também dançam e festejam, buscam companhia, que eles querem ter alguém que converse com eles sem ter pressa, sem estar preenchendo apenas uma ficha. De alguém que olhe para eles e os vejam como seres humanos e não uma coisa, um objeto ou um número.

IHU On-Line – O que os moradores de rua lhe ensinaram nesse tempo de caminhada? Na sua experiência de vida, o que mais aprendeu com eles?

Júlio Lancellotti – Muitas coisas, entre elas, que ninguém está livre de viver esta situação. Há pessoas das mais diferentes classes sociais que estão pelas ruas das cidades do Brasil. Eles nos ensinam a ser mais humildes, a viver do essencial, a não buscar o supérfluo e nem a acumulação. Eles ensinam que o pão dividido tem gosto de amor. O morador de rua não pode ser tratado como lixo. Deve ser tratado como pessoa, ter a sua dignidade respeitada. É preciso ter coragem para amá-los.
 
[Júlio Renato Lancellotti é formado em Pedagogia e Teologia, foi professor primário, professor universitário, membro da Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo e há mais de dez anos é o vigário episcopal do povo de rua. É pároco da Igreja São Miguel Arcanjo, na Mooca, zona leste de São Paulo.]