A Igreja autóctone revisitada

Em memória de Dom Samuel Ruiz


“Em nosso continente jamais existiu o que o Concílio chama de `Igreja autóctone´, quer dizer, a encarnação do Evangelho na cultura de um povo a partir do reconhecimento daquilo que há de revelação de Deus nela” (cf. Revista Popoli, junho/julho 2000). Essa declaração do bispo de San Cristóbal de Las Casas, Chiapas, Dom Samuel Ruiz García, feita no fim de seu mandato ao jornalista Mauro Castagnaro, aponta para um dever não cumprido e um sonho não realizado pelos herdeiros do Vaticano II.


Samuel Ruiz morreu em 24 de janeiro aos 86 anos de idade. Muitos choram a ausência de quem lhes dava voz e vez e que, para escutá-los em sua própria língua, aprendeu quatro idiomas indígenas. Foi sepultado na catedral da diocese que administrava há quarenta anos (1960-2000). “Eu vim para evangelizar os índios, mas terminei evangelizado por eles”, disse certa vez. As comunidades maya de Chiapas sabiam que era seu bispo, o bispo dos pobres, dos marginalizados e dos povos indígenas. Ele viu com seus próprios olhos as costas dos homens indígenas marcadas pelos chicotes dos senhores de engenho. Ele conhecia mulheres indígenas submetidas à “lei da primeira noite”, em que os patrões tiravam a virgindade das jovens mulheres. Depois de passar pelo sangue do cordeiro e a Páscoa do Senhor, a sua estrela brilha no continente latino-americano e se juntou às cinco estrelas mais brilhantes do Cruzeiro do Sul, à de Helder Câmara, Leónidas Proaño, Oscar Romero e ... O leitor já sabe quem será a quinta estrela!

Depois do Vaticano II (1962-1965) e poucos meses antes da II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, que se realizou em Medellín (1968), Samuel Ruiz participou em Melgar, Colômbia, do primeiro encontro convocado pelo Celam sobre Missões Indígenas na América Latina. Nesse encontro, Dom Samuel ficou impactado pela palestra do antropólogo Gerardo Reichel-Dolmatoff, que mostrou como a evangelização promovida a partir dos parâmetros culturais ocidentais contribuiu para a destruição das culturas nativas. Nunca mais se esqueceu dessa lição.
Ao preparar-se para Medellín, Samuel Ruiz retomou as considerações feitas pelos bispos africanos no Vaticano II. Durante o Concílio, quando ainda ninguém falava de inculturação, os bispos que vieram da África já levantavam a bandeira de uma Igreja descolonizada e culturalmente mais próxima de seus povos.
Nas sete palestras preparatórias que fizeram parte do evento de Medellín, coube a D. Samuel falar sobre “A Evangelização na América Latina”. Introduziu, nessa palestra, uma parte sobre a “Especial situação dos indígenas”, em que afirma serem esses povos marginalizados não apenas pela sociedade, mas também pela Pastoral, que se concentrava até então nos núcleos da população formada por brancos e mestiços. Cuidadosamente afirmava: “Nem sempre se reconhece o direito que os indígenas têm de receber a mensagem em sua própria língua, e muito menos em sua própria mentalidade”. Apontou para a falta de planejamento nas dioceses e o desconhecimento das culturas indígenas. Lamentou a improvisação pastoral sem o objetivo indicado pelo Concílio: de forjar “Igrejas particulares autóctones, devidamente organizadas, enriquecidas também de forças próprias e de maturidade e dotadas de suficiente hierarquia própria unida ao povo fiel” (Ad Gentes, 6). Ruiz não nasceu profeta. Foi um longo processo de conversão. A releitura do Vaticano II, a realidade dos povos indígenas de Chiapas e a colegialidade de Medellín converteram D. Samuel lentamente em profeta de justiça e advogado dos índios.
Seguindo o espírito do Vaticano II e sua contextualização nas conferências de Medellín, Puebla e Santo Domingo, D. Samuel incentivou a tomada de consciência dos atores sociais e pastorais. No retrovisor dos seus 40 anos de presença pastoral em Chiapas, Ruiz explicava naquela entrevista que não houve nenhum diálogo com a cultura do outro na América Latina: 
“Neste momento, em que os indígenas emergem como sujeito de sua própria história, adquire grande importância o fato de que possam encontrar um cristianismo encarnado em suas culturas [...].Isso torna urgente o surgimento de Igrejas autóctones no continente. Esse é o caminho que tomou a nossa diocese. Agora temos 18 mil catequistas indígenas e 502 diáconos indígenas, todos eles casados, exceto dois deles. A Santa Sé está um pouco preocupada por causa desse número elevado, mas ele é fruto de 40 anos de trabalho, e, se em Chicago há 200 diáconos, em nossa diocese faltam ainda muito mais, porque ela é muito extensa” (ibidem).
Samuel Ruiz sofreu incompreensão por parte de setores poderosos do Estado e da Igreja de seu país. Basta mencionar apenas dois nomes com grande prestígio que obstruíram os canais de comunicação com Roma: o então núncio apostólico Girolamo Prigione (1978-1997) e sua atuação política e moral pouco evangélica (cf. National Catholic Reporter, junho 1994), e Marcial Maciel, o padre fundador da Congregação dos Legionários de Cristo (1920-2008), pedófilo, que abusou do seu próprio filho e de jovens legionários. Fatos esses conhecidos há muito tempo, mas só agora investigados.

A Cúria Romana não estava somente “um pouco preocupada” com a Igreja de Chiapas, que promoveu lideranças pastorais indígenas por meio do diaconato permanente. Roma qualificou esse projeto de “ideológico”, quer dizer, político, e o interrompeu. É óbvio que a Igreja autóctone vai reequilibrar as forças entre uma Igreja clerical e uma Igreja laical, entre a Igreja local e a universal, entre uma Igreja indígena e uma Igreja das elites brancas. Pode-se chamar a esse reequilíbrio de uma tarefa evangélica, pastoral, política ou cultural. Não importa o nome. No Vaticano II, a Lumen Gentium (n. 23) parecia ter conseguido o equilíbrio eclesiológico entre Igreja universal e Igreja local, afirmando a cooriginalidade de ambas. Nem a Igreja universal é a soma de todas as Igrejas locais, nem a Igreja local é um fragmento imperfeito da Igreja universal. Esse equilíbrio da “cooriginalidade” de origem e existência entre Igreja universal e Igreja local foi interrompido pela Carta da Congregação para a Doutrina da Fé “Sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão”, de 28 de maio de 1992. A Carta afirma que a Igreja universal “é uma realidade ontologicamente e temporalmente prévia a toda Igreja particular singular” (n. 9).

Em 1999, Walter Kasper, ainda bispo da diocese de Rottenburg, desde 2001 cardeal e prefeito do “Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos”, contestou algumas afirmações manifestadas na Carta da Congregação para a Doutrina da Fé, de 1992. A partir da origem da Igreja em Jerusalém, Kasper mostra que desde seu início a Igreja se constituiui “em e de Igrejas locais”. Considera problemática a identificação subjacente entre Igreja universal e Igreja ou Cúria romana. Também questiona expressões que qualificam a Igreja universal como mãe e as Igrejas locais como filiais, porque favorecem o centralismo romano. Finalmente, nega a precedência ontológica e temporal da Igreja universal à Igreja local. Pondera que “a relação entre Igreja local e Igreja universal está fora do eixo”. A controvérsia entre J. Ratzinger, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, e W. Kasper, ambos antigos colegas do magistério universitário, continuou com réplicas e tréplicas. O fato de Kasper ter sido nomeado em 2001 Cardeal e Presidente do “Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos” pode apontar para certo pluralismo na própria Cúria. Para o setor hegemônico dessa Cúria, Chiapas era o campo de aplicação. 
Em Carta de 20 de julho de 2000, a Congregação para o Culto Divino transmitiu ao sucessor de Samuel Ruiz, D. Felipe Arizmendi, o resultado de uma Reunião Interdicasterial, da qual participou também o então Cardeal Joseph Ratzinger. Dizia a Carta: “Não é possível construir um modelo de Igreja particular prevalentemente diaconal, que não esteja conforme a constituição hierárquica da Igreja”. Quanto às ordenações ainda celebradas por Samuel Ruiz e seu coadjutor Raúl Vera López, em 18 de janeiro de 2000, o então Prefeito da Congregação para o Culto Divino, Cardeal Medina Estévez, se baseou num vídeo e assinalou:
“a) que os bispos ordenantes não fizeram uso da casula, como prescrito pela liturgia;

b) que os candidatos foram apresentados por pessoas que não eram sacerdotes;

c) que no rito da ordenação de diáconos é o bispo celebrante principal, e somente ele, quem deve impor as mãos;

d) que a imposição das mãos sobre a cabeça das esposas dos diáconos foi um abuso, que criou confusão e ambiguidade, como se fossem também elas `ordenadas´;

e) no rito da ordenação diaconal, o bispo impõe ambas as mãos sobre a cabeça de cada ordenado, e não uma somente;

f) que à imposição das mãos, não se deve sobrepor nenhum outro rito nem um diálogo;

g) que convém analisar outros `sinais´ utilizados, no propósito de verificar se contêm ou não elementos sincretistas.”

Missa Tridentina

Em seguida, a missiva da Congregação fez a sugestão “de suspender tais ordenações por um período não breve” (SEDOC 34/290, 2002, p 426ss). O novo bispo local compreendeu a “sugestão” como sugestão, não como uma ordem.

O apelo da realidade pastoral indígena falou mais alto que as missivas curiais. Para garantir a presença pastoral entre os indígenas, e na ausência de padres suficientes, o diaconato permanente se ofereceu como a melhor solução. Felipe Arizmendi continuou a ordenar diáconos indígenas permanentes. Em seguida, Dom Felipe recebe não uma “sugestão”, mas uma advertência que lhe transmite o conteúdo de uma nova Reunião Interdicasterial do dia 1º de outubro de 2005. A carta-advertência com data de 26 de outubro e assinada pelo Cardeal Francis Arinze, então prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, analisa a situação pastoral da diocese: “Continua latente na diocese a ideologia que promove a implementação do projeto da Igreja autóctone” de Samuel Ruiz. A dita Reunião Interdicasterial “se pronunciou por uma suspensão de eventuais ordenações de diáconos permanentes até se resolver o problema ideológico de fundo”. 
D. Samuel Ruiz caminhando com o povo
A Igreja autóctone não pode ser um problema ideológico de fundo. Como San Cristóbal de Las Casas mostra, ela é um instrumento eficaz contra o neocolonialismo da sociedade de consumo e exploração e contra a invasão das seitas. Numa entrevista, Arizmendi explica que as características de uma Igreja indígena foram indicadas pelo Concílio Vaticano II: “que esteja encarnada na cultura do povo; que tenha suas raízes na Palavra de Deus, cujas sementes estão presentes em muitas culturas autóctones; que tenha suficientes servidores da própria etnia; que cresça e amadureça, para que também possa servir outras igrejas irmãs” (cf. blog carmadelio, Zenit). Para uns, a Igreja autóctone com suas três colunas: a teologia índia, o ministério indígena e a liturgia inculturada permanece um sonho, para outros, um pesadelo.

Hoje, em 2011, a diocese de San Cristóbal de las Casas tem cerca de 350 diáconos e 85 padres. Em sua missiva, Arinze pede que não se encaminhem mais pedidos de relaxamento dessas proibições, porque a sua negação “faria a Santa Sé parecer intolerante”. Dom Felipe, não sem ironia, agradeceu a “preocupação” da Santa Sé com a diocese de San Cristrobal, “mas temos a obrigação pastoral de fazer com que as inquietudes do nosso povo sejam ouvidas para dialogar e clarear o que corresponde ou não à realidade e de propor soluções às necessidades concretas de nossas igrejas locais”.
Nos últimos anos, Samuel Ruiz vivia em Querétaro, situada a 200 quilômetros ao norte da capital do país. Encontrei D. Samuel em várias ocasiões: numa visita a Chiapas, no aeroporto de Lima, em algumas reuniões de Pastoral Indígena, e, pela última vez, num encontro com ex-alunos no México. Sempre nos falava de sua conversão pelos índios. Seu lema episcopal foi: “Edificar e Plantar”. Aludindo a seu lema, assim terminou sua homilia um ano atrás, no dia 25 de janeiro de 2010, por ocasião de suas bodas de ouro episcopais, na praça da Catedral de Chiapas: “Damos infinitas graças ao Senhor, Trino e Uno, por nos ter feito seus filhos e por nos ter chamado como pastor de sua Igreja, para edificar e plantar seu Reino de justiça, de amor e de paz”. Fazemos nossas as vozes indígenas, no dia do seu enterro, entre lágrimas e esperança: “Samuel vive, la lucha sigue!”
Paulo Suess

Doroti Müller Schwade:

Zeladora do Reino - Missão cumprida

No último sábado, dia 12 de fevereiro, nossa família e amigos se reuniram para colocar a cruz no local onde foi sepultado o corpo de nossa querida mãe Doroti. Como lembrou nosso pai Egydio, Dorô sempre se preocupou em assumir sua cruz, nunca escolhendo os caminhos mais fáceis e sempre buscando ser coerente com sua fé. Foi um momento de oração e agradecimento a Deus pela sua vida, e por ter-nos deixado conviver com está pessoa tão amada e querida por todos nós.
 

A cruz foi construída pelos próprios filhos, entalhada em madeira e decorada com algumas das coisas que ela gostava ou que fizeram parte da sua vida. Assim, a cutia, uma das grandes plantadoras de castanha da floresta, as flores, a panela no fogo e o pé de cará estão lá representados. Também foi escrito, no verso da cruz, o trecho de uma música: “Põe a semente na terra, não será em vão! Não te preocupe a colheita, plantas para o irmão”, que retrata bem sua passagem pelos povos indígenas e Comunidades Eclesiais de Base e, também, sua vida de agricultora no Amazonas. Para lembrança da família que ela formou, foram entalhados o símbolo Inca do matrimônio, composto pelo sol e pela lua, e mais cinco estrelas, que representam seus filhos, mas também a sua orientação para nós filhos e a luz de Cristo, que ela sempre buscou refletir através de suas ações.

Mayá Müller Schwade
cf.
http://www.urubui.blogspot.com/

Curso Base I e II do Cimi


No retrovisor do chargista:
Missionários Fórmula 1
“A formação de missionários e missionárias parte da prática exercida com os povos indígenas. [...] O Cimi criou o Curso de Formação Básica, em que os missionários e as missionárias, que iniciam seus serviços aos povos indígenas, têm a oportunidade de partilhar as suas experiências a partir de diferentes perspectivas: da teologia, da antropologia, da história, do direito e da política indigenista do Estado brasileiro.”
(Plano Pastoral do Cimi, n. 124, 127)

Fim de janeiro de 2011. Terminaram os dois Cursos de Formação Básica do Cimi. Os participantes que vieram das áreas trouxeram diversas perguntas, vontade de acertar e muita alegria jovial.
A realidade da causa indígena está atravessada pelos desafios do capitalismo: acumulação, consumismo e aceleração, acumulação das terras e do capital, consumismo insustentável e aceleração da produção. A análise das práticas missionárias mostrou que nossas bases são afetadas, sobretudo, pela aceleração: pouco tempo para ficar nas áreas e escassas visitas por conta do número reduzido de pessoas nos Regionais do Cimi, além de pouco conhecimento das línguas indígenas. Cunhamos a sigla do “Missionário Fórmula 1” que faz apenas um pequeno pit-stop nas aldeias. O nosso chargista Frei Ulysses, da área dos Mundurucu, Pará, captou a ideia. Fala da própria experiência.

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Missionária relaxada 



Lembretes do Curso Base – 2011 

- A pastoral indígena se situa na contramão do sistema. Por isso, está sempre envolvida em conflitos com a ordem vigente.
- Nossa missão ganha sentido e se torna relevante a partir da capacidade de romper com o sistema que oprime e exclui.

- Nossa pastoral visa transformações estruturais e pessoais que podem acontecer a cada dia.

- O Evangelho é areia na máquina do sistema, não óleo.

- Missão é um processo de libertação e de contemplação.

- A missão é uma opção de vida, não um emprego.

- A utopia não está no fim da caminhada. A utopia se revela no caminho através de novas relações.

- Nossa luta é uma luta pela realização da utopia indígena configurada na utopia do Reino.
- A nossa fé nos faz livres e responsáveis.

- Quebrar tabus em benefícios dos mais fracos faz parte de um processo histórico.

- Não há convivência sem intervenção.

- Plantando dá, não plantando dão?

- As alianças estão prefiguradas na aliança de Deus com a humanidade. As parcerias visam lucro e vantagem. As alianças são com Deus, as parcerias com o diabo. Com aliados temos afinidades ideológicas, com parceiros temos apenas afinidades funcionais.

- Inculturação significa trabalhar com o culturalmente disponível.

- Estar presente na missão de forma inculturada significa deixar as sandálias do lado de fora.

- A maneira de viver a temporalidade é cultural. Convivemos com tempos diferentes. Precisamos descobrir e reconhecer o tempo do outro.

- Cada pessoa constrói sua cultura a partir de seu nascimento. Permanecemos a vida inteira seres em construção.

- Toda religião tem suas contradições.

- A vida é um eterno convite a viver contradições. As trevas podem se tornar uma porta para o conhecimento, a luz e o crescimento.

- Nossa ação missionária visa a gratuidade.

- Reafirmar nosso compromisso com os Povos Indígenas significa respeitar sua alteridade e autonomia.

- Nós somos assessores dos Povos Indígenas, não seus protagonistas.

- São os índios que nos resgatam e não somos nós que resgatamos os índios.
Paulo Suess - 30/01/11