No
dia 26 de junho de 2012, o Tribunal Regional de Colônia (Alemanha) publicou uma
sentença que declara a circuncisão de menores, crime de lesão corporal. Quais
os fatos que precederam a esse veredito, que causou alvoroço pró e contra no
mundo inteiro? Quais as suas implicações?
No dia
4 de novembro de 2010, um garoto de quatro anos de idade, de religião
muçulmana, foi num consultório médico, a pedido dos pais, submetido à
intervenção cirúrgico-ritual da circuncisão. Por causa de um sangramento posterior
na ferida da cirurgia, os pais procuraram um pronto socorro e o Ministério
Público foi informado. Em setembro de 2011, um Tribunal de Comarca de Colônia constatou
que não teve erro médico e que a solicitação dos pais para realizar uma
“intervenção ritual tradicional” era suficiente para absolver o médico de
qualquer ato criminoso de lesão corporal.
Através
de um novo recurso do Ministério Público, o caso chegou à instância jurídica
superior, o Tribunal Regional de Colônia. O médico, novamente, foi inocentado,
mas desta vez não por não ter cometido um erro médico ou ter praticado um ato
legal, mas por “erro inevitável”, que em linguagem jurídica diz, por ter
cometido um ato ilegal que juridicamente ainda não tinha sido constatado como
tal. Em seguida, o Tribunal Regional de Colônia questionou a
constitucionalidade do ato de circuncisão em si.
Na
apreciação da matéria da circuncisão, o Tribunal foi categórico: a circuncisão
de menores, mesmo se for feita a pedido dos pais, é crime de lesão corporal. Os
direitos de educação e escolha religiosa, assegurados pela Constituição aos
pais, não prevalecem sobre o direito da criança à integridade física, supostamente
violada pela circuncisão. O Tribunal justificou sua decisão: "O corpo do
menino é modificado permanentemente e de maneira irreparável por causa da
circuncisão. (...) O direito de um menino à sua integridade física está acima
do direito dos pais". A decisão definitiva sobre a legalidade da
circuncisão infantil, na Alemanha, será definida por uma nova lei, que já está
sendo articulada por comissões interpartidárias que contam com uma maioria
folgada. A Organização Mundial de Saúde (WHO) estima que hoje, mundialmente,
30% dos homens são circuncidados.
Por
motivos da inoportunidade, o veredito suscitou protestos de todos os partidos
políticos. Também as comunidades muçulmanas, judaicas e a grande maioria das
Igrejas cristãs se mostraram contrários à decisão judicial de Colônia. Debates
semelhantes já tinham acontecidos nas questões do véu das muçulmanas, do
crucifixo em repartições públicas, de aulas de religião em escolas do Estado e do
plebiscito popular contra a construção de minaretes, na Suíça. No Brasil, o
ministro Antonio Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, defendeu a presença
do crucifixo no espaço público porque, para ele, esse símbolo é uma expressão
da formação da cultura brasileira, e não de uma religião. Essa opinião não impede
que outros juristas decidam contra a existência de crucifixos em espaços
públicos. Também as discussões sobre a Mutilação Genital Feminina (“amputação
do clitóris”) e diversas expressões da Sharia muçulmana, em alguns países
africanos e asiáticos, visaram a distinguir melhor entre identidade religiosa, ritos
de ordem cultural e prerrogativas do estado laical.
O significado da circuncisão judaica
A
circuncisão de jovens por motivos religiosos, que os juízes declararam uma
mutilação irreversível e ilegal, sobretudo para os judeus é uma questão de
identidade religiosa e de pertença ao povo de Deus.
No
livro do Gênesis se encontra a fundamentação bíblica dessa tradição, descrita
como um sinal de aliança entre Deus e Abraão, representante do povo de Deus:
Esta é a minha
aliança que devereis observar [...]: todo varão entre vós deverá ser
circuncidado. Circuncidareis a carne do prepúcio: esse será o sinal da aliança
entre mim e vós. No oitavo dia do nascimento serão circuncidados todos os
meninos de cada geração, mesmo os filhos dos escravos [...]. O incircunciso,
porém, aquele que não circuncidar a carne de seu prepúcio, seja eliminado do
povo, porque violou minha aliança (Gn 17,10-14).
Discernimentos
O
que está em questão não é a liberdade de religião, hoje garantida em todos os
regimes democráticos, como direito fundamental do cidadão, mas a sua
contextualização cultural. Princípios jurídicos, como a liberdade religiosa e a
integridade física do indivíduo, necessitam, em sua aplicação, sensibilidade
contextual face aos diferentes valores subculturais vividos numa sociedade
pluricultural. A rigor, ao postergar a circuncisão à escolha livre na vida
adulta, não haveria prejuízo físico. O mesmo argumento valeria para o batismo
das crianças e uma série de medidas educativas dos pais que podem ser
consideradas, não fisicamente mas, psicologicamente, irreversíveis. Entretanto,
como a criança não batizada, no interior do Brasil, por muitos ainda não é
considerada “gente” ou, em todo caso, não é cristão, assim também o judeu não
circuncidado ainda não é judeu, o que põe, segundo as suas próprias crenças, a
trajetória salvífica de ambos, cristão e judeu, em questão.
Culturas
têm diferentes escalas para ordenar valores como liberdade e igualdade, paz e
religião, legalidade e costume, participação democrática e direitos humanos.
Princípios constitucionais valem para todos, necessitam, porém, uma aplicação
contextual sensível. Também o que hoje consideramos “direito” percorreu uma
longa evolução histórica. A Ordem justa, na sociedade secular, não se orienta
numa forma exemplar de vida vinculada a uma história de salvação ou ordem
cosmológica divina, mas num consenso construído por todos. A justiça secular do
Estado moderno como construção de todos se emancipou do “sumo bem” de uma
cosmovisão religiosa universal e preestabelecida. A rigor, é este
desmembramento da justiça secular, construída por cidadãos, do sumo bem,
preestabelecido nas religiões por Deus, que possibilita a paz mundial. A história
humana mostrou que a construção dessa paz não pode ser entregue a nenhuma
religião mundial. Essas, por uma lógica interna e suas perspectivas
salvacionistas e exclusivistas, procuram impor sua proposta salvífica às outras
denominações religiosas. A transferência da “natureza” e “história” da teologia
para as ciências empíricas inaugurou o pensamento pós-metafísico. O mundo
moderno trata a ruptura entre saber secular e saber revelado definitiva. A
síntese entre religião e razão (ciência) construída por Agostinho e Tomás de
Aquino não existe mais.
Mas
a secularização do poder do Estado não significa uma secularização dos
cidadãos. O cidadão religioso ou crente faz parte de um processo democrático
que, legitimamente, se fecha contra a influência de uma ou outra religião. Isso
não significa, segundo Habermas, que as comunidades religiosas precisem exilar-se
numa esfera privada. O Estado depende da racionalidade de todos os seus
cidadãos e deve levar em conta as opiniões construtivas de todos, por exemplo,
para questões complexas como aborto, intervenção genética, identidade sexual, uso
de drogas, etc. Os argumentos racionais dos crentes, na base de suas crenças,
precisam se despojar da especificidade de sua crença e ser traduzidos em
linguagens seculares e universais para se tornarem aceitáveis para os demais
cidadãos. Decisões do Estado secular têm que ser formuladas em linguagens
acessíveis e justificáveis para todos os cidadãos. Convicções na base da fé não
devem estar em contradição com princípios constitucionais.
De volta à circuncisão
A relação
entre Estado democrático, sociedade civil e culturas autônomas é o fundamento
da convivência moderna. A visão pessoal de cada um sobre os artigos de sua fé e
a veracidade de sua crença não representam, geralmente, valores universais. Também
as religiões são históricas. Nem tudo que prescrevem é revelado por Deus. A
circuncisão do clitóris das moças é uma mutilação brutal. Sua justificação
religiosa é ideológica. O que ofende a dignidade humana tem de ser proibido. O
que é dignidade humana?
Ao
lado da dignidade humana defendida por constituições há também a dignidade
humana dos pais muçulmanos que, no pantanal de uma sociedade secular, encontram
em seus ritos tradicionais um chão firme e, através destes, elementos de
continuidade histórica. Existe uma indecifrável dialética entre a auto
compreensão esclarecida da modernidade e a auto compreensão das grandes
religiões mundiais que, como aguilhão do passado, se fazem presentes nesse
mundo moderno, secular e pós-secular ao mesmo tempo.
O
mundo esclarecido, com seus princípios supostamente universais, não só deve
falar sobre o mundo religioso, mas com os sujeitos desse mundo crente. Por sua
vez, também os seguidores de religiões devem reconhecer a autoridade da razão
natural, com princípios universais e resultados falíveis das ciências; devem
reconhecer os princípios de um igualitarismo em direito e moral.
Por
outro lado, também a razão secular não se deve impor como juíza de verdades da
fé, desde as verdades das diferentes crenças não são eliminatórias entre si nem
autodestrutivas ou violadoras de direitos individuais. Onde se situa a
circuncisão entre o direito à integridade física da criança e o dever dos pais
de introduzi-la na cultura religiosa que lhe confere identidade, pertença, passado
e futuro? Se consentirmos com a criminalização da circuncisão, logo haveremos
de consentir com a proibição de muitos ritos de iniciação dos povos indígenas
que incluem, às vezes, duras e sangrentas provas de coragem. Tais proibições
não contribuiriam para salvar direitos individuais de crianças ou adolescentes,
mas seriam o início do fim da identidade do respectivo povo. Ritos iniciais, que
asseguram a coesão social, devem ser julgados não por princípios universais,
culturalmente assépticos, mas numa relação de custo-benefício cultural e
contextual.
A garantia
da autonomia cultural no Estado pluricultural é uma conquista da modernidade. O
Estado secular não só tolera as diferentes culturas e religiões. Ele as
reconhece como sujeitos coletivos de direitos humanos. Ele as necessita porque
o mundo religioso mantém viva a consciência daquilo, que ao Estado secular falta:
esperança além de um futuro calculável. As religiões renovam, em seus ritos, a
coesão social e a solidariedade com aquele que grita para o céu por justiça e
reconhecimento. As religiões inovam, a partir do imaginário de suas origens, a
esperança do bem viver possível para todos.
Paulo Suess
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