16 de agosto 2012
Prospectivas e
tarefas teológicas
Um olhar crítico
sobre os desafios da realidade
em vista do “buen
vivir” (sumak kawsay) de todos
Paulo Suess
O enfoque dos desafios estruturais e
conjunturais da realidade nos permite fazer primeiros discernimentos (I).
1. Desafios da realidade e
discernimentos
Como ser
responsável e feliz num mundo marcado pela pobreza, pela exclusão, pela
violência e pela alienação? Como fazer nossas “as alegrias e as esperanças, as
tristezas e as angústias da humanidade de hoje, sobretudo dos pobres e de todos
os que sofrem” (GS 1)? Acreditamos que o “buen vivir” como novo paradigma
planetário é possível para todos.
O nosso otimismo teológico está entrelaçado com o realismo do sofrimento dos pobres e das vítimas das grandes crises transversais do nosso planeta terra que são a crise do modelo econômico, a crise social, a crise da negação do espaço vivencial (migração), a crise ecológica, a crise cultural, crise da democracia liberal e da justiça formal. Os desafios centrais da humanidade que emergem dessas crises múltiplas, conectadas e causadoras de violência, neste início do século 21, são também desafios para a práxis missionária.
1.1. Polarização econômica
A polarização econômica da sociedade
mundial é caracterizada por uma concorrência feroz. Crescimento, expansão e
aceleração se tornaram palavras mágicas, apoiadas por tecnologias cada vez mais
sofisticadas a serviço da substituição de trabalhadores. O sistema capitalista
é incapaz de produzir o bem-estar econômico de todos os cidadãos. Consumismo e
fome são expressão desse desequilíbrio na distribuição dos bens da terra.
1.2. Trabalho penoso
O que produz mais barato é aquele que
se submete a condições de um trabalho penoso, que a máquina e os computadores
ainda não conseguem resolver. Esse trabalho penoso, em geral de curta duração,
é acompanhado de um salário indigno, sem garantia de direitos sociais, de
educação dos filhos ou aposentadoria. Consequência desta nova configuração do
trabalho são os mal empregados, os desempregados, os migrantes em busca de
melhores condições de sobrevivência (saúde, educação, dignidade no trabalho).
O que está em questão é coesão e
solidariedade social interna das sociedades. Essa solidariedade é atropelada
pela concorrência do mercado globalizado que vive da exclusão e não da
integração dos cidadãos. Redistribuição, integração social pelo trabalho e
participação do lucro se tornaram direitos humanos. O poder judiciário está
despreparado para garantir esses direitos.
1.3. Migração
O que está em questão é a construção
de um país para todos, a identidade dos cidadãos e a solidariedade profética
dos que afirmam que a Igreja é a casa dos pobres (cf. DAp 8).
1.4. Ecologia
A exploração irracional atinge não só
operários, indígenas ou migrantes, mas também a nossa irmã natureza. A
devastação de florestas e da biodiversidade, “coloca em perigo a vida de
milhões de pessoas”, em especial a vida dos “camponeses e indígenas, que são
expulsos para as terras improdutivas e para as grandes cidades para viverem
amontoados nos cinturões de miséria” (DAp 473).
O que está em questão é o “atual
modelo econômico, que privilegia o desmedido afã pela riqueza, acima da vida
das pessoas e dos povos” (DAp 473); o que está em questão é a vida das gerações
futuras e do Universo (cf. DAp 125).
1.5. Crise cultural
A crise cultural se manifesta, por um
lado, como crise de sentido e, por outro lado, como fundamentalismo com suas
ramificações nas grandes religiões e nas ideologias filosóficas e políticas. A
dissolução do sentido da história humana numa mera história natural e a
afirmação da verdade única como negação do reconhecimento do outro e do
pensamento diferente representam um potencial permanente de guerra e violência,
inclusive no interior das religiões. A Declaração Dominus Iesus, da Igreja
Católica, que distingue entre fé teologal e crença própria das outras religiões
(distinctio inter fidem teologalem et credulitatem, DI 7c) e que nega ao
pluralismo religioso o estatuto de jure (DI 4a), carrega em si a semente de
futuras guerras religiosas.
O que está em questão é o
reconhecimento cultural do outro num pacto, que tem a sua base não só nos
fatos, mas nos direitos (direitos humanos, dignidade humana). O reconhecimento
vai além da mera tolerância e aponta para a unidade do gênero humano na
diversidade do Espírito, das línguas e manifestações religiosas.
1.6. Democracia liberal
Depois de guerras para a implantação
da democracia, hoje essa democracia liberal está numa profunda crise estrutural
pela confusão dos poderes (executivo, legislativo e judiciário) e pela ética. A
democracia liberal não permite a participação satisfatória do povo, sobretudo
dos pobres, dos excluídos e dos povos indígenas, especialmente quando são
minoria. Os que têm o poder econômico conseguiram reduzir o Estado a um Estado
mínimo que não interfere nos seus interesses. Este Estado mínimo favorece as
elites, mas não consegue viabilizar o acesso de toda a população aos bens
necessários a uma vida digna.
A democracia é uma aspiração de todos.
O que está em questão é a articulação entre liberdade, igualdade e participação
política de todos num sistema democrático cujo funcionamento não depende do
tráfico de influência do capital.
1.7. Justiça formal
A justiça em nossos países tornou-se
uma justiça formal, morosa e caríssima, que atua, muitas vezes, longe dos
lugares onde acontecem as injustiças, e não serve aos pobres, que desconhecem
os trâmites legais e não conseguem pagar advogados competentes para garantir
seus direitos básicos. O aparato policial não traz segurança à população e as
condições inumanas das nossas cadeias fazem delas verdadeiras escolas do crime.
O que está em questão é a construção
de um sistema jurídico que garanta a aplicação da lei para todos e iniba
corrupção e clientelismo em todas as instâncias, inclusive no próprio aparelho
da justiça.
1.8. Primeiros discernimentos
Admitimos com realismo que o
cumprimento dessas tarefas é difícil. Como articular bem-estar econômico,
solidariedade social com um sistema verdadeiramente democrático em que haja
liberdade, igualdade e justiça? Por um momento, no início da segunda metade do
século passado, parecia ser possível domar o capitalismo no interior de um
sistema democrático e social nos países centrais. Mas este equilíbrio era pago
pelo preço da terceirização da miséria desses países à periferia do mundo
industrializado. Surgiu um muro entre Primeiro e Terceiro Mundo. Constatado o
fracasso desse equilíbrio e descoberta essa artimanha de os países centrais
viverem à custa dos países periféricos, instalaram-se movimentos, sobretudo no
então chamado Terceiro Mundo, que procuravam equilibrar os três pólos, dando
mais ênfase à solidariedade social em detrimento da liberdade política. Em seu
conjunto não convenceram. Nos discursos políticos hoje, poucos governantes têm
a audácia de prometer a integridade de estruturas sociais e as promessas da
democracia moderna contra a mercantilização da sociedade mundial. Essa
sociedade-mercadoria devora os recursos naturais para produzir sempre novos
produtos desnecessários, e devora pela concorrência estrutural os recursos
morais da democracia que se deveria alimentar da solidariedade coletiva.
Hoje, o
sistema vencedor, sem fronteiras geográficas e políticas, não tem mais aonde
exportar a miséria. Os países reproduzem o Primeiro e o Terceiro Mundo no
interior das suas próprias fronteiras. Os problemas levantados não são
naturais. Foram criados pela própria humanidade, o que nos dá a esperança de
que a própria humanidade pode conseguir a sua solução. Acreditamos que um outro
mundo é possível, porque o tripé crescimento econômico, segurança social e
democracia política não funciona, nem oferece uma perspectiva universal. Não
entramos no jogo de alternativas perversas: democracia com fome e miséria, ou
bem-estar material sem participação, sem liberdade política e sem horizonte de
sentido, ou prosperidade econômica do país com ditadura e fome.
A visão de uma sociedade transnacional
de cidadãos que não se subjuga aos imperativos do mercado das sempre novas
mercadorias e da concorrência eliminatória, mas que forja uma democrática
participativa para regenerar a solidariedade em escala mundial representa o
desafio da época. A única arma de curar as feridas da modernidade é a própria
modernidade. Precisamos do veneno para fabricar a vacina contra o veneno. Contra
as falhas graves das nossas democracias, do sistema jurídico, da economia
desregulada, do não-reconhecimento do outro não existem receitas mágicas. Não
podem ser corrigidas pela pré nem pela pós-modernidade.
Entre os modelos políticos
(anglo-saxônico, socialista, asiático) emerge, recentemente, impulsionado pelos
governos da Bolívia e do Equador, o modelo do “buen vivir”, de inspiração
indígena e campesina. Historicamente, o modelo indígena e campesino talvez seja
aquele que melhor conseguiu equilibrar a questão do território (coletivo e
familiar), que é terra para viver e não para tirar grandes lucros, e do poder
político como serviço à comunidade, sem os formalismos da democracia liberal.
Certamente pode-se aprender muito das sociedades indígenas, porém não se pode
copiá-las.
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