Pastoral
de eventos ou pastoral evangelizadora?
“Enquanto
cada vez mais a sociedade trabalha para encontrar formas mais participativas,
inclusive propondo o debate por um Estado mais democrático, a Igreja deu
pouquíssimos passos na direção de uma verdadeira sinodalidade”, constata o
historiador Sérgio Coutinho em entrevista a IHU On-Line: (http://www.ihu.unisinos.br ). Coutinho
é presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina
(CEHILA-Brasil) e assessor nacional da Comissão Episcopal para o Laicato -
CEBs.
Confira trechos
da entrevista.
IHU - O ano de 2012 começou com uma novidade
para a Igreja do Brasil: a indicação de Dom João Braz de Aviz ao cardinalato. O
que essa nomeação indica em termos de conjuntura eclesial, tanto no Brasil como
na Cúria?
Sérgio
Coutinho - Este último Consistório revelou bem que a Cúria em nada é
“católica”, ou seja, “universal”. O que assistimos foi uma chuva de nomeações
de novos cardeais europeus e, principalmente, italianos, sendo que muitos deles
são ainda membros da própria Cúria Romana. No momento em que é noticiado, pela
imprensa, o cotidiano das intrigas curiais (conhecido por
"Vatileaks"), o Papa Bento XVI não teve a força política necessária
para “esvaziar” o poder dos chefes dos diversos dicastérios e que, em certo
sentido, são eles mesmos os que tramam em segredo (agora não mais, depois do
vazamento dos documentos) por sua saída e, até mesmo, por sua morte (!). [...]
Além
disso, a nomeação de D. João Braz Avis também revela uma tendência eclesial, já
sentida desde o pontificado de João Paulo II: a força dos movimentos e das
novas comunidades. Dom João nada entende de “Vida Religiosa consagrada”
(dicastério do qual é reponsável), mas é membro do Focolares. Isso nos indica
que o Vaticano deseja mesmo é valorizar as “novas formas” de vida religiosa
consagrada e, nesse sentido, um membro desses movimentos dentro da cúria
romana, e ainda mais como cardeal, terá um peso inegável no próximo conclave.
[...]
IHU - Outra novidade recente é que D. Lorenzo
Baldisseri, núncio apostólico no Brasil, foi recentemente nomeado novo
secretário da Congregação para os Bispos. Seu substituto já foi anunciado. Qual
a importância desse cargo na atual conjuntura da Igreja brasileira?
S.C. - Para o caso da Igreja brasileira,
não podemos nos esquecer do trabalho importante de D. Armando Lombardi na
colaboração e indicação do episcopado brasileiro no período imediatamente
anterior e posterior ao Concílio Ecumênico Vaticano II. O resultado foi uma
geração de bispos excepcional e que levará muitos anos para se repetir algo
semelhante. Um quadro episcopal que levou a cabo as intuições e determinações
desse Concílio, fazendo da Igreja do Brasil uma das que mais criativamente
trabalhou na sua recepção, sendo inclusive vista por Roma como uma Igreja
“rebelde” em muitas vezes.
Dom
Baldisseri, seguindo seus sucessores e a política eclesial de “concentração
católica” (Danielle Hervieu-Leger) iniciada pelo Papa João Paulo II, e
aprofundada por Bento XVI, procurou escolher candidatos não tanto por sua
formação teológica, mas por sua fidelidade ao projeto de fortalecer a
“identidade católica” diante de uma sociedade cada vez mais secularizada e
relativizada. [...]
IHU - 2012 também será o grande ano de
preparação para a Jornada Mundial da Juventude - JMJ, no Rio de Janeiro, com a
presença do papa, em julho de 2013. O que espera desse encontro? Por outro
lado, como analisa os primeiros passos da organização?
S.C. - Do ponto de vista da organização,
parece que as coisas vão indo dentro do cronograma estipulado. Como também
vemos uma boa participação da juventude católica na recepção da Cruz e do
Ícone. No entanto, ainda não conseguimos visualizar os resultados propriamente
pastorais ou de evangelização de todo esse processo. Não se vê (ou se viu) nada
que enfrentasse de forma aberta e corajosa os grandes desafios da juventude
atualmente: desemprego, violência, exploração... nada se fala sobre a falta de
políticas públicas voltadas para a juventude. Alguns dizem que a Campanha da
Fraternidade de 2013 provocará essas questões. Espero que sim.
Mas o que
podemos concluir já de imediato com a preparação desse evento é aquela mesma
impressão que tenho da escolha de D. João Aviz: a presença majoritária, e até
dominante, nos encaminhamentos da JMJ dos movimentos e novas comunidades, em
detrimento dos grupos das Pastorais da Juventude (Pastoral da Juventude,
Pastoral da Juventude Rural, Pastoral da Juventude Estudantil e Pastoral da Juventude
do Meio Popular). A questão é se queremos uma pastoral de massa, de eventos, ou
uma pastoral verdadeiramente evangelizadora. Vamos acompanhar melhor os
próximos passos.
IHU - Além disso, 2012 será um ano de duas
grandes celebrações: os 50 anos da inauguração do Concílio Vaticano II e os 40
anos da publicação do livro Teologia da Libertação. Perspectivas, de Gustavo
Gutiérrez. Começando pelo Concílio, no contexto brasileiro, o que é necessário
retomar com mais força depois desses 50 anos dos debates conciliares e o que
ficou “esquecido”? Por outro lado, onde é preciso “reatualizar” o Concílio para
o momento atual da Igreja no Brasil?
S.C. - Parece-me que uma temática
conciliar que necessitaria aprofundar é o da “horizontalidade” na Igreja. [...].
“Comunhão e participação” foi a compreensão dos bispos nas conferências de
Medellín e Puebla da eclesiologia conciliar de “povo de Deus”. Foi também a
compreensão dos bispos da CNBB no momento de recepção do Concílio. Foi por isso
mesmo que, aqui, desenvolvemos e aprofundamos uma série de instâncias
participativas, mesmo em contextos políticos de pouquíssima ou nenhuma
participação democrática. Assembleias gerais do episcopado, assembleias
diocesanas, paroquiais, comunitárias, assembleias dos organismos, conselhos
pastorais diversos, equipes de liturgia, ministérios laicais. Enfim, uma série
de práticas que favoreciam a participação e a “opinião pública” dentro da
Igreja.
O que
assistimos nos últimos 25 anos foi um processo cada vez mais exacerbado de
“clericalização”, ou de “verticalização” na Igreja. O estudo de Direito
Canônico passou a ser o carro chefe da formação dos futuros presbitérios, mesmo
os de Institutos Religiosos. Isso significa que se vêm enfatizando muito mais a
obediência às rubricas e normas eclesiásticas do que propriamente na construção
de caminhos de evangelização. Conselhos paroquiais cada vez mais centralizados
e cumprindo papel meramente figurativo, marcadamente consultivo. Quando for
deliberativo, cumpre a função dos membros apenas apertar a tecla de “confirmar”
o que pensa o padre.
Desse
modo, os institutos de formação presbiteral insistem numa formação para o
exercício do culto e para o exercício do poder
administrativo-burocrático-canônico, em detrimento do evangelizador-pastoral. [...]
O que temos são jovens presbíteros com forte formação estético-disciplinar e
pouco ético-pastoral. E é justamente neste nó que passam os conflitos com o
laicato, cada vez mais desejoso de participar da vida eclesial, e das muitas propostas
pastorais diocesanas, e até das iniciativas da CNBB, que ficam emperradas por
“pequenos príncipes” mais parecidos com o de Nicolau Maquiavel do que de
Saint-Exupéry. [...]
IHU - Com relação à Teologia da Libertação -
TdL, o Brasil desponta como um dos seus principais “polos produtores” de
reflexão e publicações, com grandes teólogos relevantes nesse debate. Como o
senhor vê o papel da TdL no contexto eclesial brasileiro contemporâneo? O
discurso está defasado, ainda pensando com categorias sociopolíticas do
contexto das ditaduras? Ou há novas perspectivas sendo desbravadas?
S.C. - Independentemente do contexto
histórico latino-americano geral e brasileiro, em particular, a TdL centra toda
a sua energia reflexiva e, principalmente, prática em dois polos: os pobres e o Reinado de Deus.
Os pobres
são o “lugar teológico”. Onde houver pobres, onde houver seres humanos que não
tenham “vida e vida em abundância”, Deus estará se revelando, colocando-se ao
lado deles por meio de homens e mulheres que denunciarão o “pecado social” que
ainda teima em ceifar a vida de muitos dos “pequeninos”. Nesse sentido, a TdL
ainda tem muito a contribuir não só num “discurso sobre Deus”, mas
principalmente sensibilizando os cristãos para dar testemunho daquilo pelo qual
Jesus deu sua vida: o Reinado de Deus.
Há uma
relação direta entre o Reino e os pobres, pois é deles que pertence “o governo
soberano de Deus”. O Reinado de Deus é um reinado de justiça, misericórdia, paz
e de vida plena. Este foi o sonho de Jesus e deve ser o sonho de todos e todas
que se dizem seus discípulos (as): lutar para a construção de uma sociedade
justa e fraterna, no campo e na cidade, e, de modo especial, para os pobres.
IHU - Tendo em vista o panorama político,
econômico e social que desponta para o Brasil em 2012, quais serão, em sua
opinião, as grandes questões que a Igreja deveria abordar neste próximo ano?
S.C.- Sem dúvida nenhuma, a grande questão
em que a Igreja poderá contribuir muito está expressa na temática da 5ª Semana
Social Brasileira: “Um novo Estado, caminho para uma nova sociedade do bem
viver”.
A Igreja
quer dar sua contribuição neste ano eleitoral para discutir “Estado para que e
para quem?”. O que temos é um Estado a serviço do capitalismo e dos grupos de
pressão vinculados às grandes organizações monopolistas. Nesse sentido, a
Igreja pretende estimular os movimentos sociais a continuarem nas lutas
reivindicativas por políticas públicas que possam atender verdadeiramente aos
interesses da sociedade como um todo: educação e saúde de qualidade,
valorização do pequeno agricultor, por uma reforma agrária e por uma
distribuição de renda mais justa entre outras mais.
IHU - Em diversos âmbitos, veem-se obstáculos
para uma interlocução fecunda da Igreja com a cultura e a sociedade brasileiras
contemporâneas. O que se vê são embates ou censuras. Como fomentar um diálogo
inter-religioso e intercultural mais maduro no Brasil?
S.C. - De fato, é contraditória a posição
da Igreja em muitos momentos. Como disse acima, ela quer contribuir para um
debate mais profundo sobre o papel do Estado democrático, mas internamente
nunca se viu tanto “verticalismo” e controle da “opinião pública” na Igreja, de
modo especial do laicato mais crítico. Todos os anos ela coloca na “pauta do
dia” temas de relevância nacional por meio das Campanhas da Fraternidade, mas
luta para manter seus privilégios seculares por meio do Acordo Brasil-Santa Sé.
[...]
Para
fomentar um diálogo mais maduro, como você pergunta, é fundamental a Igreja
reconhecer que ela não possui mais “poderio territorial” (e isso já faz tempo
desde as campanhas de Garibaldi e do Tratado de Latrão em 1929) e “poderio
espiritual” da época da Cristandade. É como aquela metáfora: “Durante pelo
menos 10 séculos a Igreja foi a regente de uma grande orquestra. Agora ela é
chamada a ser o ‘terceiro violino’ dessa mesma orquestra”. Para alguns dentro
da Igreja isso é um absurdo e ela precisa lutar por sua “verdadeira”
identidade. Para outros, essa é a grande oportunidade da Igreja viver mais
próximo do seu mestre e ser fiel ao seu projeto.
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