Supremo Tribunal Federal declara nulidade de títulos de propriedade de não índios na terra dos Pataxó da Bahia


Tardou, mas não falhou



 Diante do agravamento no conflito entre índios e fazendeiros no sul da Bahia, o STF (Supremo Tribunal Federal) retomou o julgamento de uma ação que envolve a área em disputa e reconheceu, por 7 votos a 1, que o local é uma área indígena, determinando a anulação dos títulos de terras existentes no local.
Os fazendeiros terão de deixar o local, mas a forma como será a retirada ficará a cargo da União, que definirá, inclusive, se eles poderão receber indenizações por perderem o registro de suas propriedades.
A ação julgada nesta quarta-feira (2) foi proposta pela Funai (Fundação Nacional do Índio) em 1982, pedindo a declaração de nulidade de todas as propriedades de não índios que estivessem dentro da chamada Reserva Indígena Caramuru/Catarina/Paraguaçu.

Os fatos

A área, localizada no Sul da Bahia, tem 54 mil hectares e abriga os índios pataxós hã hã hãe. Na época em que entrou com a ação, há 30 anos, a Funai pediu a anulação que 396 propriedades. [...]
O caso começou a ser julgado em 2008, quando o relator do caso, o hoje aposentado Eros Grau, votou pela nulidade dos títulos de terra. O caso foi retomado com o voto da ministra Cármen Lúcia.

Além de Eros e Cármen, votaram pela anulação dos títulos concedidos dentro da reserva indígena os ministros Joaquim Barbosa, Rosa Weber, Cezar Peluso, Celso de Mello e Carlos Ayres Britto.
Apenas Marco Aurélio Mello votou contra o pedido da Funai, por entender que os atos de concessão das terras foram feitos em "boa fé". Ele também argumentou que boa parte dos índios que vivia lá deixou, com o passar do tempo, a região.
Luiz Fux, por ter substituído Eros Grau, não pode votar, enquanto Gilmar Mendes e José Antonio Dias Toffoli estavam impedidos por terem atuado na causa quando ocuparam o cargo de advogado-geral da União. Já o ministro Ricardo Lewandowski não participou do julgamento por estar na Suíça, representando o tribunal.

Galdino lembrado pela ministra Cármen Lúcia

O voto vencedor foi liderado pela ministra Cármen Lúcia. Ela afirmou que o processo era composto de 25 volumes repletos de "sofrimento, lágrimas, sangue e morte".
A ministra lembrou que foi exatamente a disputa sobre essa área que trouxe o índio Galdino a Brasília, em 1997. Naquele ano, ele foi queimado vivo por adolescentes de classe média, quando dormia em uma parada de ônibus e acabou morrendo.

De acordo com Cármen Lúcia, os índios pataxó hã hã hãe já ocupam cerca de 42 mil hectares do total e que a área da disputa se restringe aos 12 mil hectares restantes. Nos últimos anos, alguns fazendeiros já deixaram o local, após o recebimento de indenizações.
Em seu voto, ela ainda observou que das 396 propriedades inicialmente questionadas pela Funai, apenas 186 estariam dentro da reserva indígena e somente essas foram anuladas.
Segundo a ministra, a própria Funai e a AGU (Advocacia-Geral da União) chegaram a reconhecer que não havia a certeza absoluta sobre todas as propriedades que estariam dentro da área questionada.
A área em questão foi demarcada em 1938, mas nunca chegou a ser homologada pelo Governo Federal. Para os ministros, no entanto, o fato não impede que o território seja considerado indígena.

Conflito

No último fim de semana, o conflito deixou um morto e um ferido a bala e fez com que a Polícia Federal enviasse para a região o COT (Comando de Operações Táticas), uma "tropa de elite" que atua na contenção de distúrbios.
Exatamente por isso, o STF decidiu julgar o caso, que não estava na pauta. No início da sessão desta quarta-feira, que deveria analisar uma ação contra o Prouni, Cármen Lúcia pediu a palavra e argumentou que, apesar de não estar agendado, o caso deveria ser julgado com urgência pela situação de "extremo conflito".
FELIPE SELIGMAN (UOL-Online, 2.5.2012)


Na votação, o perfil dos ministros

A votação seguiu o voto proferido pelo relator do caso, ministro Eros Grau (aposentado), no início do julgamento, em 2008. Na sessão de hoje (2.5.2012), em que foi retomado o julgamento, acompanharam o entendimento do relator as ministras Cármen Lúcia Antunes Rocha e Rosa Weber, e os ministros Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Celso de Mello e Ayres Britto. O ministro Março Aurélio divergiu e votou pela improcedência da ação.

Ao pontuar seu voto com o do ministro Eros Grau, primeiro a se posicionar sobre o assunto, a ministra Cármen Lúcia informou que ele julgou a ação da Funai totalmente procedente, mas, na prática, também se limitou a anular os títulos de propriedade com glebas localizadas dentro da área da reserva indígena. No final, vamos chegar à mesma conclusão, disse, ao explicar que o pedido da Funai incluía propriedades localizadas fora da terra indígena.

A ministra Rosa Weber acompanhou, na essência, o voto do relator. Ela, entretanto, votou pela improcedência da ação em relação aos títulos que fazem parte da área não integrante da terra indígena. Tais propriedades foram excluídas por antropólogo designado pelo ministro Nelson Jobim (aposentado), quando relator da ACO, para efetuar um levantamento sobre a real extensão da área indígena. Isso porque suas propriedades ficaram fora da área a ser reintegrada para ocupação pelos índios. No mesmo sentido se pronunciou o ministro Joaquim Barbosa.

Na sequência, o ministro Cezar Peluso votou pela procedência parcial da ação para declarar nulos todos os títulos de propriedades cujas glebas se situem dentro da área indígena Caramuru-Catarina Paraguassu. Ele esclareceu que a procedência parcial deve-se ao fato de julgar improcedente a ação em relação aos réus cujos títulos têm por objeto glebas situadas fora da reserva indígena.

Em consequência, julgo carecedores das reconvenções os réus cujos títulos têm glebas situadas fora da área da reserva indígena, porque, para afirmação da validez de seu título perante a causa petendi (causa de pedir), basta a improcedência da demanda, porque se declara que a Funai não tem direito de anular o seu título, disse o ministro.

Em seu voto, o decano do STF, ministro Celso de Mello, afirmou que as perícias antropológica, agronômica e topográfica revelam que a área efetivamente disputada tem sido habitada pela etnia pataxó, que mantém uma relação especial com as terras da Reserva Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu. O ministro considerou que a diáspora (dispersão) ocorrida tempos atrás na região não comprometeu a identidade indígena, tendo em vista que os pataxós se mantiveram na região, conscientes da vinculação histórica com o seu próprio território.

O ministro Celso de Mello salientou que ninguém pode se tornar dono de terras ocupadas por índios, que pertencem à União e, como tais, não podem ser negociadas. Ele lembrou que a Constituição Federal não prevê pagamento de indenizações aos eventuais ocupantes dessas áreas, apenas o ressarcimento pelas benfeitorias feitas de boa-fé. O decano também se referiu ainda à necessidade de observância do disposto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), documento internacional mais recente sobre o tema, da qual o Brasil é signatário, que preserva os direitos de grupos tribais e os protege contra remoções involuntárias.

Ao acompanhar o voto do relator, o presidente do STF, ministro Ayres Britto, ressaltou que, para o índio, a terra não é um bem mercantil, passível de transação. Para os índios, a terra é um totem horizontal, é um espírito protetor, é um ente com o qual ele mantém uma relação umbilical. O ministro-presidente lembrou que, não por outro motivo, a Constituição Federal proíbe a remoção de índios, permitindo-a excepcionalmente mediante autorização do Congresso Nacional e em caráter temporário.

[cf. nossa postagem do 21.4.2012]


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