Os movimentos
sociais “estão abandonando o discurso religioso, utópico, marxista-cristão e
assumiram o discurso pragmático-capitalista neoliberal”, assinala o psicólogo e
pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do
Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, Nadir Lara Junior. Segundo ele, três fatores
explicam a mudança na atuação dos movimentos sociais: a eleição do presidente
Lula à presidência da República; as ações políticas administrativas do Papa
João Paulo II; e a ascensão dos evangélicos no cenário religioso.
Na
entrevista a seguir, concedida pessoalmente à IHU On-Line, o pesquisador também
comenta a ascensão da bancada evangélica no Congresso e a influência da
religião nas eleições municipais deste ano.
Confira a
entrevista.
IHU On-Line –
Historicamente, como as religiões e a religiosidade influenciaram a formação
política e constituíram o núcleo ideológico dos brasileiros?
Nadir Lara Junior – Várias pesquisas demonstram como
a questão da religiosidade marcou a formação do povo brasileiro. A professora
Maria Isaura Pereira de Queiroz apontou as experiências messiânicas existentes
no Brasil desde os indígenas e como eles traziam esses elementos religiosos, os
quais serviram de referência para criar um sentimento de revolta e indignação
contra a opressão portuguesa.
Depois de 1950,
quando o cristianismo já tinha se alastrado e criado um tipo de religiosidade
mais sincrética, misturando elementos das religiões afro e indígenas, que
denominamos de religiosidade popular, que constitui o universo simbólico do
povo brasileiro. Posteriormente, a partir de 1960, a Igreja Católica introduz a
Teologia da Libertação, quando passa a observar a experiência das comunidades
mais pobres do Brasil e a fundamentar isso teoricamente, numa experiência
cristã mais aprofundada. A Igreja assume essa realidade não como um elemento
negativo, pejorativo da cultura, mas como um elemento religioso e político,
porque a Teologia da Libertação sofre uma influência do cristianismo e do
marxismo. Então, aqueles aspectos que já faziam parte da cultura brasileira são
sistematizados pela Teologia da Libertação, que começa a organizar o povo a
partir desta experiência de religiosidade popular, que já estava presente na
cultura. Tanto que os métodos usados por essa teologia são ler a Bíblia a
partir da realidade, ensinar as pessoas a ler e escrever, alfabegtizar,
capacitá-las a compreender seus direitos a partir da experiência de Jesus
Cristo, que é visto como o libertador da opressão que está instalada
historicamente.
Movimentos sociais e a Teologia da
Libertação
A partir da
sistematização da Teologia da Libertação e das leituras que os teólogos fizeram
a partir dela, nasceram muitos movimentos sociais e atores políticos: o
Movimento dos Sem Terra, Movimento dos Sem Teto, o Partido dos Trabalhadores, a
Central Única dos Trabalhadores. São todas organizações políticas que nascem
nessa efervescência de algo que já estava presente na cultura brasileira e que
também foi impulsionada pelos teólogos e teólogas da libertação.
Particularmente
falando, eu estudo política, não religião. Porém, para falar de política no
Brasil, não posso ignorar a influência religiosa que sempre esteve presente. De
acordo com o último censo, 92% das pessoas se declaram religiosas no país. E o
próprio conceito de não declarar-se religioso no sentido de não estar vinculado
a uma religião não significa que a pessoa não seja religiosa. Estamos em um
país que é religioso; então, como falar de política cerceando a religião?
IHU On-Line – Qual foi
a influência das religiões no processo de constituição da identidade e do
discurso político dos movimentos sociais brasileiros? O senhor menciona que há
uma crescente apropriação de elementos religiosos por parte dos movimentos
sociais. Do que se trata especificamente?
Nadir Lara Junior – Boa parte dos movimentos sociais
brasileiros nasce de uma influência cristã e da religiosidade popular, assim
como de uma influência marxista. Esses são elementos fortes que marcam os
movimentos sociais das décadas de 1980 e 1990. Entre os fenômenos
político-religiosos, destaca-se a mística, que está presente no MST e que
articula, dentro desse fenômeno, elementos religiosos, políticos e culturais. A
mística é uma encenação, um ritual coletivo em que as pessoas cantam, celebram,
elaboram hinos do próprio movimento para se prepararem e conseguirem alcançar
seu próprio objetivo dentro do movimento e fora dele. Portanto, a mística é um
elemento de constituição da identidade coletiva do MST e de outros movimentos
que a assumem como elemento fundamental e estruturante. Trata-se de um elemento
próprio do movimento que, assumidamente, faz política costurando esses
elementos cristãos e marxistas.
IHU On-Line – Qual a
raiz desta relação do catolicismo brasileiro com o marxismo? Por que parte da
Igreja brasileira buscou elementos teóricos em Marx?
Nadir Lara Junior – Essa situação é complexa e
central para compreender a trajetória da Igreja no Brasil. Na década de 1960,
vivia-se a chamada guerra fria e o mundo estava dividido entre socialistas e
capitalistas. Nesse período, a América Latina começa a ser influenciada por
pensadores marxistas nas correntes intelectuais existentes. Essa influência se
deu tanto pela vinda de operários europeus para as grandes cidades brasileiras
– que trouxeram o marxismo e o anarquismo – como pelos intelectuais
latino-americanos, que haviam estudado na Europa. Nessa época, o marxismo era
um movimento intelectual que estava pairando pelas universidades europeias,
onde os intelectuais brasileiros e latino-americanos estudavam e, portanto, ele
exerceu muita influência aqui, especialmente porque havia uma tentativa de
pensar uma ciência para a América Latina. É com esse objetivo que diversos
intelectuais formularam teorias para tentar compreender a realidade
latino-americana.
Paulo
Freire, com sua pedagogia do oprimido, deu o grande “pontapé” no movimento
intelectual da Libertação através da educação; Gustavo Gutierrez deu início à
Teologia da Libertação; Enrique Dussel, na Argentina, iniciou os estudos da
Filosofia da Libertação; e Ignacio Martín-Baró, que morreu junto com Ignacio
Ellacuría, fundamentou a Psicologia da Libertação. Então, iniciou-se um
movimento para pensar a ciência a partir de um jeito de ser latino-americano, o
qual foi fortemente influenciado pelo marxismo.
Os teólogos
latino-americanos, quando chegaram à Europa e estudaram marxismo, compreenderam
que a visão de comunidade, de viver sem opressão – o que o marxismo propõe –,
estava próximo das propostas do cristianismo. A partir daí começaram a ver uma
grande semelhança entre o comunismo e o comunitarismo cristão. A própria ideia
de Jesus libertador é a do materialismo histórico, ou seja, a de trabalhar com
questões da realidade. Em outras palavras, a Teologia da Libertação torna o
Jesus metafísico em um Jesus material, sem perder a dimensão mística. Eles
conseguem trazer Jesus para a materialidade e passam a atuar com uma força
muito grande, especialmente nas periferias.
IHU On-Line – Quais
foram as principais transformações no campo religioso e político da última
década, e como elas influenciaram a prática e o discurso político dos
movimentos sociais?
Nadir Lara Junior – Na última década ocorreram três
mudanças muito significativas: o número de evangélicos saltou de15% para 22%,
gerando um boom demográfico; um ex-sindicalista (Lula), que atuava junto às
Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, à Central Única dos Trabalhadores – CUT e
ao sindicato, chegou ao poder; e houve um recuo da Igreja Católica em função de
uma ação política administrativa do Papa João Paulo II, que determinou o recuo
de incentivo às CEBs, deixando também de nomear bispos ligados à Teologia da
Libertação – assim, os seminários saíram das mãos de padres da Teologia da
Libertação –, e incentivando o movimento pentecostal dentro da Igreja Católica.
Esses três
elementos começam a circular na sociedade brasileira e afetam principalmente os
movimentos sociais porque, antes de Lula assumir a presidência, eram justamente
os membros da Igreja Católica, das igrejas protestantes históricas, partidos políticos
e dos sindicatos que ofereciam formação política para os integrantes dos
movimentos sociais. Com a chegada de Lula ao poder, há uma mudança radical: um
recuo dos sindicatos, partidos e dos movimentos sociais e uma associação deles
com o governo. Diante dessa nova conjuntura, um ex-líder sindical vira ministro
e passa a negociar a greve com o amigo que deixou no sindicato. Criou-se um
problema, porque as principais lideranças dos movimentos sociais começaram a
ser chamadas para participar do governo e a representar os movimentos sociais
que, até o dia anterior às eleições, eram contra o Estado e, dias após as
eleições, se tornaram o próprio Estado. A partir desse momento, surge um
problema de identificação, de quem são os movimentos sociais e de quem é o
Estado. O Estado, que foi sempre o inimigo (“fora FHC, fora FMI, fora
neoliberalismo”), de repente começa a chamar membros dos movimentos para compor
secretarias, cargos de confiança etc.
Formação instrumental
Diante da
nova configuração, há um recuo na formação política, e o movimento social passa
a ter de prover a formação política para seus membros. Este é o tema da minha
atual pesquisa, e já pude constatar que a formação dos movimentos sociais da
última década estão se tornando instrumental, ou seja, uma formação para
ensinar o militante a se movimentar dentro das burocracias das políticas
públicas. Não nego a importância das políticas públicas. O que afirmo é que os
movimentos sociais, de certa forma, se reduzem a formar seus quadros não na oposição,
na crítica, na política, mas sim numa certa subserviência travestida de
participação política. A política pública virou a participação política. Com
isso acaba-se com toda a história de contestação dos movimentos sociais,
reduzindo-os a um quadro técnico. O próprio movimento acaba profissionalizando
uma pessoa na política pública, e o Estado contrata a mão de obra qualificada
pelo movimento, e assim ele fica fragmentado. Isso gera um problema porque os
movimentos vão perdendo a dimensão da crítica.
IHU On-Line – Essa
mudança diz respeito aos movimentos sociais e sindicatos do mundo todo ou está
restrita ao Brasil?
Nadir Lara Junior – Essa é uma característica
brasileira. Inclusive a atuação dos movimentos sociais no país é bem
característica, e bastante diferente do que existe no exterior. Diante da crise
econômica surgem outras formas de manifestações, como o Movimento dos
Indignados, da Espanha, ou Occupy Wall Street, dos EUA. Os movimentos de
ocupação são uma tentativa de organização popular longe do Estado e dos
partidos para demarcar uma fronteira.
IHU On-Line – Esses
novos movimentos sociais não têm representatividade política. Como poderão
fazer a diferença?
Nadir Lara Junior – A atuação dos antigos movimentos
deixou de herança uma concepção para os novos movimentos: é preciso mexer na
estrutura do Estado. Por isso a ideia de revolução novamente volta à pauta.
Fazer revolução ou falar de mudança social hoje em dia é um escárnio. Parece
uma ideia de pessoas ultrapassadas, mas nunca se teve tão em voga como hoje a
necessidade de se discutir dois elementos: ideologia política, porque ela foi
sepultada junto com a aproximação dos movimentos sociais com o Estado; e o que
é revolução hoje, ou seja, que tipo de mudança social queremos.
Esses
aspectos são importantes porque o Estado brasileiro, desde seu surgimento,
nunca foi reconstruído; ele vive de reformas e está sempre reformando a
educação, a saúde. Basta ver que até hoje o país está reformando o Estado da
ditadura militar. E nós, intelectuais, não paramos para provocar, no cenário
político, uma discussão. Já vimos que não há como fazer alianças com este
Estado, mesmo estando no poder um ex-sindicalista, porque seremos sempre
engolidos.
IHU On-Line – Mas como
fugir dessa negociação, se o Estado é constituído pelas oligarquias?
Nadir Lara Junior – Saber disso já é alguma coisa.
Foucault fala do saber e do poder. Saber que precisamos colocar na pauta a
mudança do Estado já é uma transformação imensa. Mas hoje ninguém quer saber
disso. Está todo mundo fascinado com o Estado, porque a economia brasileira
está estável, todos querem aumento salarial, e todo mundo está satisfeito com
essa “coisa” que o Brasil vive – e eu digo “coisa”, porque não sabemos
descrever isso. Estamos fascinados e não paramos para avaliar o Estado.
Entra
campanha, sai campanha, todos os políticos falam de reformar a saúde, a
educação, a moradia e a segurança. Se os políticos resolvessem esses quatro
problemas, não teriam o que dizer nas campanhas políticas, porque só falam
disso. Não se fala em aperfeiçoamento de saúde, educação, mas do primário. Quer
dizer, fala-se de as pessoas terem um teto para morar, de as crianças terem
banheiros nas escolas, e do mais elementar: do fato de que essas oligarquias
continuam com as mesmas políticas há séculos. O nosso grande desafio é saber
disso, diante de uma sociedade que insiste em não querer saber.
IHU On-Line – O que
distingue o discurso dos movimentos sociais brasileiros hoje de uma década
atrás?
Nadir Lara Junior – A partir da minha pesquisa, posso
dizer que diante da interpelação do Estado, os movimentos sociais estão
abandonando o discurso religioso, utópico, marxista-cristão e assumindo o
discurso pragmático-capitalista neoliberal. Então, o discurso da maioria dos
militantes é praticar uma política pragmática, embora muitas vezes eles nem se
deem conta disso. Alguns intelectuais dizem que o pragmatismo é necessário.
Concordo, desde que se saiba o que se está reproduzindo com ele. Quando se assume,
nesse contexto específico, um discurso neoliberal, está-se depondo contra esse
processo histórico de formação dos movimentos e favorecendo as oligarquias, o
Estado capitalista e o mundo desigual.
IHU On-Line – Essa é
uma tendência crescente no mundo do trabalho.
Nadir Lara Junior – Sim, porque retiramos do mundo do
trabalho as discussões ideológicas que nos unem e nos afastam: quem é esse
Estado? Quem é nosso patrão? Quem é esse governo? A geração atual está pegando
o mundo que a geração anterior deixou: muitos que eram de esquerda hoje estão
abraçados com os de direita. Como os jovens irão acreditar nesse modelo? Diante
de tal conjuntura novas manifestações estão surgindo. As pessoas estão falando
e criticando o sistema de outro jeito, usando as redes sociais, por exemplo.
Existem novas formas de pensar e que ainda são embrionárias.
IHU On-Line – Como
ocorre a relação entre política e religião no cenário político atual? Nesse
sentido, como vê a atuação da bancada “religiosa” no cenário político brasileiro?
Nadir Lara Junior – O boom do movimento
neopentecostal chegou aos movimentos sociais e nas políticas públicas. Como
eles chegam a estes lugares? Com um arcabouço político, ideológico, religioso
de sua matriz neopentecostal, que é extremamente pragmática. O
neopentecostalismo nasce com uma experiência da periferia dos EUA, e o governo
estadunidense se apropria disso, fazendo um canal para divulgar as ideologias
neoliberais com seus elementos: individualismo e pragmatismo. Essa combinação
ideológica de neoliberalismo e neopentecostalismo entra no movimento social e
torna tudo muito pragmático. Em geral, o evangélico participa do movimento
social, porém não quer discutir questões mais amplas relacionadas à política,
mas sim o acesso a casa, a universidade etc.
Bancada religiosa
Há poucos
dias li a tese de doutorado de Bruna Dantas sobre a bancada evangélica no
Congresso. Ela analisa a ideologia da bancada evangélica, hoje, e mostra como
os evangélicos se estruturam para pautar algumas políticas dentro do cenário
nacional baseados em ideias religiosas. Por isso que uma série de temas com
implicações morais não são aprovadas, como a questão do aborto e a da
homossexualidade.
Muitos
votos começam a ser direcionados aos pastores das igrejas. Começamos a remontar
um novo tipo de voto de cabresto, como tinha antigamente no interior do Brasil.
Mas como disse, não podemos culpá-los nem praguejá-los, porque estão exercendo
tudo aquilo que o Estado lhes permite fazer. Da mesma forma que os evangélicos
defendem questões morais, os ruralistas defendem pautas de seus interesses. Só
os trabalhadores não se organizam para se fazer representar.
IHU On-Line – São os
membros evangélicos, e não as igrejas, que se relacionam com os movimentos
sociais? A atuação é diferente daquela do catolicismo?
Nadir Lara Junior – É diferente. O pastor vai aos
encontros do movimento para rezar, dar um apoio, mas ele não representa o apoio
da igreja ao movimento. A igreja apoia o seu fiel para que ele consiga algo
pontualmente.
IHU On-Line – A
influência evangélica cresce em diversos movimentos sociais?
Nadir Lara Junior – Sim. O MST há muito tempo tem uma
influência evangélica; os movimentos de moradia de São Paulo também. Da mesma
forma, os evangélicos se aproximam dos movimentos LGBT, nos cultos específicos.
IHU On-Line – Como vê
a representatividade das igrejas tradicionais junto dos movimentos sociais?
Nadir Lara Junior – A Igreja enquanto instituição se
retira dessa discussão, mas isso não quer dizer que padres, freiras e
religiosos façam o mesmo. Ainda há um grupo importante de padres e religiosos
que dão suporte a esses movimentos. Tenho um colega antropólogo que estuda a
relação das freiras nas favelas do Rio de Janeiro e a liderança que elas ainda
exercem nesses locais. Isso demonstra que têm muitos religiosos resistindo,
especialmente no interior e nas áreas de fronteiras. A Igreja Católica e as protestantes
históricas ainda são referência nessas questões enquanto congregações.
IHU On-Line – Quais os
limites da interferência religiosa no cenário político? Como fica a discussão
acerca do Estado laico no Brasil?
Nadir Lara Junior – Nós temos de entender o Brasil.
Somos um Estado laico com 92% de pessoas que se declaram religiosas, cujo lema
nas cédulas de dinheiro é “Deus seja louvado”. Então, temos uma realidade
própria e só sabemos fazer política se tivermos os atravessamentos religiosos.
Não quero ser reducionista e dizer que a política é de um jeito ou de outro,
mas temos de considerar as questões que estão postas. O Brasil é um país
complexo, porque na Europa, se observarmos os teóricos políticos, há uma ideia
de que as coisas são mais divididas, disciplinadas, organizadas. Foucault
mostra como o disciplinamento na Europa aconteceu muito cedo, só que nós
vivemos em um país em que o ordenamento social é outro: as pessoas pensam e se
relacionam de outro jeito, e a política ainda é muito embrionária, porque o
país saiu de uma ditadura há pouco tempo. Tudo no Brasil é muito próprio e
característico. Não sou um defensor da religião, mas temos de olhar para ela,
porque exerce influência.
IHU On-Line – Como o
senhor vê o uso do espaço público, como a televisão, pelas religiões?
Nadir Lara Junior – Vivemos num Estado democrático
capitalista. O que isso significa? Significa que quem paga tem, e quem não paga
não tem; quem tem dinheiro faz o que quer, e quem não tem dinheiro não faz
nada. Os evangélicos neopentecostais entenderam muito bem essa linguagem. Eles
pagam para ter acesso a determinados horários na televisão, no rádio. E dentro
de uma sociedade capitalista, quem vai regular isso?
Em um país
em que há liberdade religiosa, como dizer que eles estão errados e que não
podem utilizar esse espaço? Tem de cuidar para que não se crie uma guerra
religiosa. Por isso não podemos ficar restritos a essa questão, temos de
ampliar o debate, discutir se esse Estado está funcionando para todos. O
capitalismo e o neoliberalismo que estamos implantando a cada dia na
universidade, na escola, estão formando que tipo de sujeito?
De acordo
com a Organização Mundial da Saúde – OMS, a doença do século XXI são as doenças
mentais. Temos visto pelas notícias da imprensa que quanto mais capitalistas
são os Estados, mais psicopatas eles formam. E aí eu pergunto: Como vamos
formar uma geração sem valores, sem escrúpulo? Nesse sentido, Marx ajuda a
compreender algumas coisas a partir da realidade histórica, material. O capitalismo
cria ideologias para que se considere um psicopata como algo normal, natural,
parte do cenário, um fraco e único culpado parte da história, da mesma forma
que ser oprimido pelo patrão é natural, e o importante é consumir. Vivemos a
base de ideologias desse tipo, que nos fazem viver num engodo praticamente
irreversível.
IHU On-Line – A
religião determina o voto? Como explicar ascensão de candidatos evangélicos,
como Celso Russomanno em São Paulo?
Nadir Lara Junior – O ministro José Eduardo Cardozo
já disse que é preciso fazer uma reforma política, mas não se pode tocar em
questões religiosas. Isso diz alguma coisa. Como pode um ministro de um Estado
laico fazer esse tipo de afirmação? O candidato à prefeitura de São Paulo,
Celso Russomanno, é abertamente um candidato da Igreja Universal do Reino de
Deus. Uma igreja que está fazendo aquilo que sempre quis fazer e se propôs a
fazer: formar lideranças políticas e chegar ao mais alto dos cargos possíveis.
Eles estão fazendo isso com muita competência, com muito dinheiro, e estão
chegando lá.
Gostaria de
destacar que não sou contra ou a favor dos evangélicos; apenas estudo o
fenômeno político. A sociedade democrática é feita por disputas, e elas são
vencidas por quem está melhor organizado. Por que os movimentos sociais estão
pagando seu preço? Porque eles se retiraram das periferias mais pobres, se
retiraram dos debates mais prementes, e assim acabam negando as origens políticas que os colocaram no poder.
Adversário político
Os que se
opõem aos evangélicos não devem percebê-los como um inimigo a ser destruído,
mas como um adversário. É legítimo se opor a eles no cenário político, debater,
porque eles sempre disseram de onde vêm, o que fazem e o que vão fazer. O Edir
Macedo nunca negou que queria chegar à presidência da República. Eles nunca
deixaram de cobrar dízimo; foram sempre explícitos. O que quero relativizar
nesse sentido é que esses fatos são públicos, e todo mundo sabe. O que não é
público é o nome do político que rouba a merenda escolar. Quero colocar o
debate na instância política. Então, não adianta os candidatos laicos
criticarem os candidatos religiosos, ainda mais num momento em que o Estado
laico está mostrando uma dimensão de desonestidade política muito assustadora.
Quando você debate com um candidato assim, não sabe se ele é de esquerda, de
direita, de centro, se ele está agradando você porque ele quer seu voto ou
porque quer lhe ludibriar. Então, essa diluição da fronteira política no Estado
laico faz com que os candidatos religiosos cresçam, porque eles não omitem a
sua ideologia – isso não quer dizer que eu concorde com ela.
IHU On-Line – Diante
da atuação política dos evangélicos, o que podemos esperar para as próximas
eleições municipais? Uma ascensão de políticos religiosos?
Nadir Lara Junior – Sim, e o Russomanno, em São
Paulo, é a prova cabal disso. Este candidato está derrotando – a princípio, as
pesquisas mostram isso – candidatos tradicionalíssimos, como José Serra, e está
desbancando inclusive o candidato do PT, mesmo com o apoio de Lula e de toda a
máquina governamental. Isso quer dizer alguma coisa. O que isso quer dizer? Que
o Russomanno, em nenhum momento, nega sua filiação à Igreja Universal, e isso
mostra uma honestidade política – não quer dizer que eu concorde com isso. Ele
nunca disse que deixará de defender os valores da bancada evangélica. Então o
povo começa a perceber que entre ele e os outros, há ainda um princípio de
honestidade que falta nos demais políticos.
IHU On-Line – Quais as
relações entre religião e política no cotidiano? Como essa relação, de um lado,
emancipa os cidadãos e, de outro, aliena?
Nadir Lara Junior – O nosso cotidiano está recheado
de questões religiosas. Há algum problema nisso? Não, depende do uso que se faz
disso. A nossa religiosidade está sendo leiloada pelo marketing, pelo governo,
ou por pessoas que já entenderam que essa pré-disposição religiosa rende lucro
ou voto. Esse é o grande problema. Com esse recuo da formação política nas
bases, a propensão da religião alienar aumenta muito, e há um cenário muito
fértil para que religião seja tomada como ópio do povo. Estamos diante de um
problema gravíssimo que precisa ser pensado.
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