Em meio a uma das piores crises de seu governo, o presidente da Bolívia, Evo Morales, suspendeu a construção de um trecho rodoviário que tem financiamento do Brasil e foi contratado com a construtora brasileira OAS. Ele acabou cedendo após semanas de protestos de indígenas, que rejeitam a passagem da estrada por uma reserva. Morales pretende agora fazer uma consulta ampla à população local. O governo brasileiro vai aguardar a decisão final dos bolivianos.
A reportagem é de Fabio Murakawa, Sergio Leo e Chico Santos e publicada pelo jornal Valor, 28-09-2011.
A reportagem é de Fabio Murakawa, Sergio Leo e Chico Santos e publicada pelo jornal Valor, 28-09-2011.
A estrada, que liga os departamentos (províncias) de Beni e Cochabamba, tem 306 km e está orçada em US$ 415 milhões, dos quais US$ 332 milhões financiados pelo BNDES. A conclusão estava prevista para 2014. As obras do trecho 1 e 3 já estão em andamento.
Protesto e repressão |
O trecho principal, porém, é o 2, que atravessa o Tipnis - uma reserva indígena de 1 milhão de hectares, onde vivem de 10 mil a 12 mil indígenas. Esse trecho responde por cerca de 40% do valor total da estrada. O início dos trabalhos, agora suspenso por Morales, estava marcado para 2012.
A repressão pela polícia a uma marcha de protesto indígena, que pretendia chegar a La Paz, foi o estopim para a suspensão da obra. Segundo a imprensa boliviana, um bebê morreu por asfixia quando policiais lançaram gás lacrimogêneo num acampamento indígena. Haveria ainda desaparecidos, que teriam sido levados pela polícia. Não há confirmação independente dessas notícias. Em reação, os indígenas bloquearam estradas.
O confronto gerou uma grave crise no governo. Por discordar da ação da polícia, a ministra da Defesa, Cecilia Chacón, renunciou anteontem. Já ontem renunciaram o ministro e o vice-ministro do Interior, criticados pela repressão.
O diretor-superintendente da área internacional da OAS, Augusto César Uzêda, disse ao Valor ter recebido ordem do governo boliviano para continuar as obras nos trechos 1 e 3 da rodovia. Já a preparação para a execução do trecho 2 foi suspensa até que haja a consulta à população prometida por Morales. Não há data para isso, nem se sabe como ela será realizada.
Vitória do povo: suspensão do projeto
Segundo Uzêda, há atualmente 2.200 pessoas envolvidas na construção da estrada. Ele informou que, apesar de o BNDES ainda não ter liberado nenhuma parcela do financiamento, a empresa recebeu cerca de US$ 40 milhões do governo boliviano pelas obras já feitas. "O meu contrato não é com o BNDES, é com o governo da Bolívia."
O executivo disse que não acredita que a rodovia não seja executada em sua totalidade. "Não tenho dúvida de que [o trecho 2] vai sair. Existe uma rodovia que é [prevista por] uma lei, que vai ser feita", disse ele. "Pode-se discutir a possibilidade de mudança do traçado."
A estrada encurtaria em cerca de 500 km o caminho entre Beni e Cochabamba. Segundo Uzêda, ainda seria viável um traçado cerca de 200 km mais longo que o previsto, mas que ainda teria de atravessar áreas do Tipnis. Os indígenas propõem que seja feito um novo projeto e que o trajeto seja desviado da reserva. Para a OAS, isso inviabilizaria a estrada, pois anularia o objetivo de encurtar o caminho.
O caso cria problemas para o Brasil. Há preocupação com o caráter anti-Brasil de alguns protestos em La Paz. Há cerca de dez dias, manifestantes colocaram uma placa de "interditado" nas fachadas da embaixada brasileira e de uma agência do Banco do Brasil na capital. Em outras manifestações, estudantes distribuíram panfletos acusando o "imperialismo brasileiro" pelo interesse em realizar a estrada, que faz parte do Iirsa, conjunto de obras prioritárias criado para facilitar a integração de infraestrutura da América do Sul.
Em viagem à Bolívia, no fim de agosto, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva reuniu-se com Morales e o aconselhou a adotar uma postura menos beligerante em relação aos indígenas. O mesmo conselho foi dado pelo assessor especial da Presidência para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, que esteve no país uma semana depois, segundo fontes.
A presidente Dilma Rousseff e o ministro de Relações Exteriores, Antônio Patriota, foram informados da crise gerada pela repressão aos protestos indígenas quando estavam ainda na Assembleia Geral da ONU, em Nova York. Dilma não chegou a falar com Morales.
O governo brasileiro avalia ter "flexibilidade" para apoiar as autoridades bolivianas na solução do impasse. A orientação de Dilma é analisar as propostas que serão feitas por Morales, caso ele decida mudar o projeto. O BNDES, segundo uma autoridade, pode manter o financiamento para outro trajeto que evite o trecho polêmico.
O BNDES confirmou que "não realizou nenhum desembolso para a obra e vai aguardar a definição do governo boliviano em relação ao prosseguimento do projeto".
Há no governo brasileiro uma corrente que acredita que o financiamento à obra não deveria ter sido aprovado antes de um acordo entre Morales e os indígenas. "Teremos problemas, qualquer que seja a nossa posição", disse ao Valor uma fonte brasileira no mês passado. "Se o BNDES não liberar o financiamento, a relação entre Morales e o Brasil vai estremecer. Se liberar do jeito que está, o Brasil será lembrado como um espoliador por décadas. É a crônica de um problema anunciado."
Há no governo brasileiro uma corrente que acredita que o financiamento à obra não deveria ter sido aprovado antes de um acordo entre Morales e os indígenas. "Teremos problemas, qualquer que seja a nossa posição", disse ao Valor uma fonte brasileira no mês passado. "Se o BNDES não liberar o financiamento, a relação entre Morales e o Brasil vai estremecer. Se liberar do jeito que está, o Brasil será lembrado como um espoliador por décadas. É a crônica de um problema anunciado."
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