Evo não viu o índio
José de Souza Martins*
Os sucessos políticos da semana na vizinha Bolívia repõem, uma vez mais, as contradições e impasses históricos de toda a América Latina e não só daquele país. O labirinto da solidão, da metáfora de Octavio Paz. A pátria do encontro difícil entre os fragmentos de uma história penosa de dilaceramentos, desidentificações, chegadas tardias, modernidade de superfície. Juntamos na ficção de identidades inventadas, imaginadas, rabiscadas sem fundamento nas estruturas profundas de nosso ser perdido, os cacos que restaram da exploração colonial, da escravidão, do genocídio. Somos o outro sem sermos nós, todo o tempo na busca inconclusa, no partir sem chegar, no esperar sem ter. A Bolívia tem sido a sofrida pátria de todos nós que estamos perdidos no labirinto e na solidão, o emblemático símbolo de uma humanidade de sobreviventes.
Nestes dias, essa pauta histórica se repôs diante dos nossos olhos, atiçou nossas indagações, nessa sina de recomeçar sempre, como Sísifo, subindo os Andes sem nada e descendo os Andes ainda sem nada. Quando chegará o dia da chegada? Três nações indígenas – Chimán, Yucararé, Mojeño – da Bolívia amazônica, estão a caminho do Palácio Quemado, em La Paz, diante do qual, na calçada, num poste de iluminação, foi pendurado, numa revolta de 1946, o corpo do presidente Gualberto Villarroel, trucidado pela multidão que invadira o palácio presidencial. Villarroel era reformista, reconheceu os direitos dos trabalhadores. É tido como um mártir da nação, que o matou.
País de alta proporção de indígenas de várias etnias, divide-se entre visões do mundo e da própria condição humana, nas várias línguas que fala, nas várias caras que tem, nos vários modos de ser, nos desencontrados modos de esperar. Dois mil Chimáns, Yucararés e Mojeños, no dia 15 de agosto, saíram na longa e penosa caminhada de 600 quilômetros rumo a La Paz. Pretendem levar ao homem que chegou ao poder em nome dos índios sua apreensão com a construção de uma estrada que atravessa o Tipnis (Território Indígena e Parque Nacional Isidoro Sécure), dividindo-o. Torna-o vulnerável aos cocaleiros, base política de Evo Morales, e aos traficantes. São povos amazônicos que vivem no limite da economia de mercado, para os quais o território íntegro é um meio vital de existência. A estrada dentro de suas terras é, culturalmente falando, genocida.
A estrada está sendo construída pela OAS, uma empresa brasileira, com 80% de seu custo financiado pelo BNDES, o banco brasileiro de fomento. O governo brasileiro, por esse meio estimula a nossa economia nacional: 85% dos custos da estrada devem ser gastos com produtos e serviços brasileiros. A estrada se situa na geopolítica da frente de expansão, em busca de portos para o Brasil no Peru e no Chile, cuja concessão já está negociada, segundo o ex-vice-presidente Victor Hugo Cárdenas, da Bolívia. A lógica da linha reta genocida segue os parâmetros da onda de ocupação da Amazônia brasileira, iniciada no regime militar.
Tudo parecia sob controle, os índios marchando e recebendo apoio das populações locais, no rumo da conversa que queriam ter com seu governo. Mas o governo boliviano estava atento à inquietação representada pela marcha. Índios do altiplano, com outros interesses que não os dos índios amazônicos, resolveram barrá-los no meio do caminho, a 300 km de La Paz. A OAS também estava atenta. Segundo artigo de O Globo, clipado no “site” do Ministério do Planejamento, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi por ela contratado para fazer palestras em Santa Cruz de la Sierra, aos movimentos sociais e a empresários, sobre a integração regional da América Latina, ideologia de que a estrada é instrumento. Chegou em avião particular da empresa. Mas agendou, também, uma conversa reservada com o presidente Evo Morales, para convencê-lo a abrandar a postura em relação aos índios que protestavam. Encontrou-se com ele no dia 29 de agosto. Um mês depois, no dia 25 de setembro, 500 policiais atacaram homens, mulheres e crianças com bombas de gás lacrimogênio acampados em Yacumo. Várias pessoas ficaram feridas, dezenas foram presas, amarradas e levadas para outras localidades. Centenas se refugiaram na mata.
A violência apenas confirmou o recuo de Morales quanto aos índios. A Bolívia moderna e lucrativa lhe sussurrou a cantilena da modernidade contra programa de índio. A repercussão foi imediata. O pacto da indianidade, por ele personificado, começou a romper-se. Ele mesmo dividiu os índios. Operários, a classe média e mesmo lideranças indígenas começaram a estranhá-lo, saíram às ruas, decretaram greve. Seu governo parou os índios do Tipnis no meio do caminho. Mas o movimento dos índios parou Morales no meio da trajetória. Vários membros do primeiro escalão do governo pularam fora do barco furado. Sua popularidade caiu pela metade: de pouco menos de 70% para pouco mais de 35%. Evo Morales unificou as oposições e robusteceu-as. Neste momento procura um bode expiatório para o seu erro político.
*José de Souza Martins é sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP.
[fonte: O Estado de S. Paulo, Caderno Aliás, 2 de outubro de 2011, p. 17A Semana Revista]''O BNDES é (co)responsável pelos conflitos na Bolívia''
“Repudiamos a atitude do BNDES e do Itamaraty de desrespeitar os verdadeiros anseios da população boliviana, colocando os interesses econômicos e o lucro de empreiteiras brasileiras acima do respeito à vida, à biodiversidade, ao direito dos povos indígenas naquele país e à soberania do povo boliviano”. O texto integra Carta publicada pela Plataforma BNDES[http://www.plataformabndes.org.br/site/].
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