Dia 14 de setembro, Dom Paulo Evaristo Arns vai completar 90 anos

D. Paulo devotou-se a devassar
a repressão política, identificar vítimas, colher
narrativas de barbárie e arrolar torturadores

 José de Souza Martins

O franciscano D. Paulo Arns
As 3 mil páginas de documentos sobre o combate à tortura no Brasil durante o regime militar que estavam guardadas no Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, objeto da série publicada neste jornal, são apenas a face legível da ação que teve no cardeal d. Paulo Evaristo Arns a figura aglutinadora e carismática. O arcebispo de São Paulo conseguiu reunir em torno de si uma legião de pessoas que nele confiaram e se devotaram à missão de penetrar nas entranhas da repressão política, identificar vítimas, colher narrativas sobre os procedimentos da barbárie, arrolar torturadores que a ela sucumbiram e por meio dela se desumanizaram e se degradaram. O amplo e grave comprometimento do Estado brasileiro na criação de uma verdadeira indústria de tortura, com dinheiro público e o complemento de doações privadas para remunerar e premiar por tarefa os nela envolvidos, ficou evidente na volumosa coleção de testemunhos e indicadores que resultaram no relatório Tortura, Nunca Mais.

Fazia tempo que um grupo de lídimos cidadãos, de vários modos ligados à Igreja Católica, o que incluía protestantes como o pastor Jaime Wright, juntamente com religiosos, estava aglutinado por d. Paulo na Comissão de Justiça e Paz e na Comissão de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, preocupados com violações de direitos por parte do regime político. Um membro da primeira comissão, Helio Bicudo, procurador de Justiça, com o promotor Dirceu de Mello, investigara e denunciara o esquadrão da morte que sequestrava e executava supostos delinquentes. Membros do esquadrão eram policiais, alguns ligados ao Dops e à tortura de presos políticos, que foram recrutados pelo Exército para prestar os mesmos serviços "especializados" na Oban, germe do DOI-Codi, o órgão de tortura instalado junto ao quartel-general do II Exército, da Rua Tutoia, no Ibirapuera.
Na roda de amigos
Investigar a barbárie, identificar-lhe a cara, os procedimentos e as vítimas, como o fez o grupo de pessoas que se reuniu ao redor de d. Paulo, foi ato de resistência cidadã, de pessoas movidas pelo mais alto sentimento de compromisso com a condição humana, acima das convicções religiosas, ainda que movidas por elas. Um gesto decisivo na restauração da dignidade nacional e na restituição do Brasil à verdade de sua consciência e à moralidade de seus anseios históricos.

Mas isso não se deu ao acaso. No âmbito da Igreja, d. Paulo não estava cercado de apoios tão extensos quanto eram necessários. Sempre é bom lembrar que a Igreja Católica, em 1964, com poucas exceções, apoiara o golpe de Estado de maneira decisiva, com as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, o suporte de rua de que os militares careciam para atropelar a legalidade e instituir o regime autoritário. Mas aí havia complicados desencontros. A tradição positivista e anticlerical do Exército, que na proclamação da República promovera a emancipação da Igreja, dela separando o Estado, como Estado secular e laico, mantivera-se ao longo da história republicana.

No golpe de Estado, o Exército e as Forças Armadas deixaram imediatamente claro que agiam em nome próprio, embora isso não fosse verdade indiscutível. A sutil ascensão política dos protestantes durante o regime militar é muito indicativa de quanto a caserna estava longe de rever o anticlericalismo da imposição republicana do golpe de 1889. Subsistiam, no entanto, no interior da Igreja grupos que se sentiam mais protegidos em suas convicções religiosas no silêncio sobre o regime e suas práticas do que com as inquietações humanitárias de bispos como d. Paulo e d. Hélder Câmara. Era um tempo de incerteza também para a Igreja, o que mais valoriza o inconformismo de d. Paulo e dos que o seguiram na investigação e denúncia da tortura.
O inconformismo contra a tortura que oficialmente atingia todos os rotulados como subversivos e comunistas, fossem-no ou não, até mesmo religiosos, era, portanto, não se conformar com o crônico e não raro justificado temor da Igreja Católica em relação ao materialismo comunista, com função indevida de religião arreligiosa na ideologia da esquerda. Em Roma difundiam-se as reservas à Teologia da Libertação, indevidamente interpretada como leitura marxista do Evangelho. Quando é na verdade um modo católico de adoção do método dialético na interpretação religiosa, justamente em nome do enfrentamento da crise da mística e da busca do reencontro da dimensão de totalidade num mundo dividido e fracionado pela modernidade, a própria religião reduzida à banalidade do acaso e do descartável. Atitudes como a de d. Paulo, nesse cenário, acabavam interpretadas na pauta dos temores de Roma e de suas restrições anticomunistas em sua resistência a um suposto encontro de catolicismo e marxismo.

Portanto, era alto o preço que d. Paulo sabia ter que pagar por sua opção preferencial pela justiça e pela verdade no que se referia às violências do regime ditatorial. E ele, serenamente, o pagou.

 JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO E PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP.

[Fonte: Estadão, Suplemento, 26.6.2011]

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