A missão de caminhar
juntos para a periferia
Paulo Suess
Os paradigmas com suas dimensões eclesiológicas,
pastorais e teológicas, que se revelam cada vez com mais clareza como
estruturantes do pensamento do Papa Francisco, são os seguintes:
Caminhar juntos: Refugiados em Lesbos |
- missionariedade como núcleo da Igreja
evangelizadora em saída;
- marginalidade da periferia existencial
e geográfica como lugar teológico do encontro com marginalizados e marginais,
fugitivos e refugiados, pobres e feridos, excluídos e não reconhecidos;
- sinodalidade, misericórdia e alegria como
modos de operação entre saída da acomodação e chegada, permanência e vida
partilhada nas periferias.
1.
A missão
A missão é ordem e obra do amor de Deus.
Ele nos amou primeiro (1Jo 4,19). E nesse amor ele nos deu a ordem de sair de
qualquer tipo de instalação. “Na Palavra de Deus, aparece constantemente este
dinamismo de «saída»” (EG 20), que nos lembra a Evangelii gaudium. “Abraão aceitou o chamado para partir rumo a uma
nova terra [cf. Gn 12,1-3]. Moisés ouviu o chamado de Deus: «Vai; Eu te envio»
[Ex 3,10], e fez sair o povo para a terra prometida [cf. Ex 3,17]. A Jeremias
disse: «Irás aonde Eu te enviar» [Jr 1,7]. Naquele «ide» de Jesus, estão
presentes os cenários e os desafios sempre novos da missão evangelizadora da
Igreja, e hoje todos somos chamados a esta nova «saída» missionária” (EG 20).
Qual é a finalidade dessa saída? A EG
aponta para uma metodologia com quatro pilares de uma pastoral em chave
missionária (EG 33ss):
a) Abandonar
o cômodo critério pastoral, seu imobilismo e tradicionalismo: “fez-se sempre
assim” (EG 33).
b)
“Ouvir a todos” (EG 31). Faz parte de um “processo participativo” que promove
“uma comunhão dinâmica, aberta, missionária” (EG 31) e sinodal.
c) “Saída
de si próprio para o irmão” (EG 179). A Igreja em saída é uma Igreja despojada
com as portas abertas (cf. EG 46). No outro “está o prolongamento permanente da
Encarnação para cada um de nós” (EG 179). A “resposta à doação absolutamente
gratuita de Deus” (EG 179) é a saída de si como “absoluta prioridade” da vida
cristã. “A vida se alcança e amadurece à medida que é entregue para dar vida
aos outros. Isto é, definitivamente, a missão” (EG 10).
d)
Concentrar-se “no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente
e, ao mesmo tempo, mais necessário” (EG 35). “As elaborações conceituais hão de
favorecer o contato com a realidade que pretendem explicar, e não nos afastar
dela” (EG 194).
Como operacionalizar essa saída? “Sair
da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias”? (EG 20).
A Igreja “em saída” encontra obstáculos. A saída exige “prudência e audácia” (EG
47), “coragem” (EG 33, 167, 194) e “ousadia” (EG 85, 129). O modelo dessa
missionariedade é a itinerância do próprio Jesus.
Quem se propõe a “ser o fermento de Deus
no meio da humanidade” (EG 114) está sempre em busca de “respostas que
encorajem, deem esperança e novo vigor para o caminho” (ibid.) do povo de Deus. Essa Igreja cumpre a sua missão quando se
torna “o lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam sentir-se acolhidos,
amados, perdoados e animados a viverem segundo a vida boa do Evangelho” (EG
114).
Os verbos preferenciais de Francisco,
para caracterizar a visão de uma Igreja, que é por sua natureza missionária (AG
2, DAp 347), são: abrir, sair, caminhar, converter (transformar), priorizar,
despojar e diversificar na unidade do Espírito Santo. Enfim, a missão tem sua
raiz e seu fim não na propaganda nem nas múltiplas atividades nossas, mas na
atração do Deus trino e uno que se encarnou em nosso meio: “Quando eu for
levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32).
2.
A margem
Lugar de atuação e horizonte da “Igreja
em saída” são as periferias. Ser Igreja em saída para as margens não é natural,
é opção que “deriva da nossa fé em Cristo, que Se fez pobre e sempre Se
aproximou dos pobres e marginalizados” (EG 186). As periferias, que são lugares
de encontro com os marginalizados e os marginais, os fugitivos e os refugiados,
com os desesperados e os excluídos, são também lugares do encontro com Deus,
que no presépio se fez pequeno; no Egito se fez um refugiado; no monte das
oliveiras, um desesperado; no tribunal da época, um acusado; na cruz, um
condenado à morte e, aparentemente, um abandonado por Deus e pela humanidade.
Pela encarnação, Deus tem experiência com
as periferias existenciais e geográficas. Além do sacrário, a periferia é o
lugar seguro do encontro com esse Deus anônimo, escondido e fiel. Se a Evangelii gaudium nos diz: “Todos somos
convidados a aceitar este chamado: sair da própria comodidade e ter a coragem
de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG 20), não
quer dizer que as periferias são lugares das trevas. O sofrimento, o abandono e
o pecado podem obscurecer nosso tempo de vida e aprofundar nossa solidão. Mas,
é tarefa da missão mostrar que a luta pela vida é a luta pela glória de Deus
que irrompe nas trevas históricas, na audácia do líder tupinambá Babau, na
gratuidade da vida da Irmã Dorothy Stang, na solidariedade dos mártires da UCA
de El Salvador, na fidelidade dos sete mártires de Tibhirine, na Argélia. Todos
eles, que vieram da grande aflição das periferias, souberam viver “a
afetividade irmanada com a racionalidade da luta; a eficácia na loucura da
gratuidade” (Plano Pastoral do Cimi, n. 86) tentando construir um mundo para
todos. Eles não precisam de holofotes nem da propaganda midiática, “não
precisam de sol nem de lua para sua iluminação, pois a glória de Deus é a sua
luz e a sua lâmpada é o Cordeiro” (Ap 21,23).
Visando a vida para todos, Francisco
pode generalizar: “No coração de Deus, ocupam lugar preferencial os pobres,
tanto que até Ele mesmo «Se fez pobre» (2Cor 8,9). Todo o caminho da nossa
redenção está assinalado pelos pobres” (EG 197). Ouvir o clamor dos pobres não
é um mérito especial, mas expressão da nossa fé na presença de Deus e expressão
da nossa indignação contra aqueles que tentam apagar essa glória de Deus no
meio dos marginalizados.
Nesse contexto, o Papa Francisco cita longamente
os Bispos do Brasil: “Desejamos assumir, a cada dia, as alegrias e esperanças,
as angústias e tristezas do povo brasileiro, especialmente das populações das
periferias urbanas e das zonas rurais – sem terra, sem teto, sem pão, sem saúde
– lesadas em seus direitos. [...] Escandaliza-nos o fato de saber que existe
alimento suficiente para todos e que a fome se deve à má repartição dos bens e
da renda” (EG 191).
Esse privilégio da periferia não seria
uma quebra do princípio evangélico da igualdade? O papa responde com clareza: “Quando
se lê o Evangelho, encontramos uma orientação muito clara: não tanto aos amigos
e vizinhos ricos, mas sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas
vezes são desprezados e esquecidos, «àqueles que não têm com que te retribuir»
(Lc 14, 14). [...] Hoje e sempre, «os pobres são os destinatários privilegiados
do Evangelho», e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino
que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel
entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos! (EG 48). Este
vínculo entre a fé e os pobres “tem consequências na vida de fé de todos os
cristãos [...] Inspirada por tal preferência, a Igreja fez uma opção pelos
pobres” (EG 198). E essa é a opção da Igreja povo de Deus. Não se trata de preferências
setoriais ou individualistas. Priorizar as periferias e preocupar-se com elas são
tarefas da Igreja como comunidade missionária e de seu caminhar na unidade e
diversidade do Espírito Santo.
3.
O Sínodo
Desde o início de seu pontificado, o
Papa Francisco sublinhou a importância do Sínodo como atualização do espírito
da sinodalidade e colegialidade. Em sua entrevista programática com o padre
Antonio Spadaro, SJ, de agosto de 2013, na Casa Santa Marta, Francisco falou de
sua visão da sinodalidade: “Devemos caminhar juntos [...]. A sinodalidade
vive-se em vários níveis. Talvez seja tempo de mudar a metodologia do sínodo,
porque a atual parece-me estática. [...] Nas relações ecumênicas, isto é importante:
não só conhecer-se melhor, mas também reconhecer o que o Espírito semeou nos
outros como um dom também para nós” (SPADARO, Entrevista, Paulus/Loyola, 2013, p. 24). Perguntado sobre sua visão
da unidade, Francisco respondeu: “Devemos caminhar unidos nas diferenças. Não
há outro caminho para nos unirmos. Este é o caminho de Jesus” (ibid.). Por isso, deve-se tornar os
sínodos “menos rígidos na forma. [...] Quero que seja uma consulta real, não
formal” (ibid., p. 16). “Pouco temos
avançado neste sentido. Também o papado e as estruturas centrais da Igreja
universal precisam ouvir esse apelo a uma conversão pastoral. [...] Uma
centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da Igreja e sua
dinâmica missionária” (EG 32).
Em seu discurso por ocasião da
comemoração do cinquentenário da instituição do Sínodo dos Bispos, dia 17 de
outubro de 2015, o Papa Francisco qualificou o Sínodo como “um dos legados mais
preciosos da última sessão conciliar. [...] O caminho da sinodalidade é
precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio” (Discurso, www.vatican.va
/17.10.2015, p. 2). “Igreja sinodal” é um pleonasmo, porque, segundo João Crisóstomo
(+407), “Igreja e Sínodo são sinônimos” (ibid.
p. 4). O papa dá nesse discurso uma verdadeira aula sobre a função da
sinodalidade na Igreja. “Estou convencido de que, numa Igreja sinodal, também o
exercício do primado petrino poderá receber maior luz. O Papa não está,
sozinho, acima da Igreja; mas, dentro dela, como batizado entre batizados”
(Discurso, l.c. p. 6).
Como se pode perceber, a sinodalidade
toca hoje em pontos nevrálgicos da Igreja católica: ministerialidade,
colegialidade, ecumenismo, magistério partilhado, autoridade como serviço,
exercício do papado e de sua conversão (Discurso,
l.c., p. 6). A sinodalidade tem um grande valor para a Igreja e o mundo, pois, apesar
de invocar participação, solidariedade e transparência na administração dos
assuntos públicos, frequentemente entrega o destino de populações inteiras nas
mãos gananciosas de grupos restritos de poder. [...] Cultivamos o sonho de que
a redescoberta da dignidade inviolável dos povos e da função de serviço da
autoridade poderão ajudar também a sociedade civil a edificar-se na justiça e
na fraternidade” (ibid., p. 6).
A “redescoberta” aponta para práticas,
hoje, esquecidas. O “sonho” alimenta a esperança na possibilidade de um projeto
do bem viver para todos. A força de suscitar essa memória e prática da
dignidade inviolável, e de sustentar esse desejo do bem viver está em cada um
de nós. Está no reconhecimento dos outros em sua alteridade, na opção de
amá-los em sua pobreza e na disposição de resistir com eles contra as múltiplas
ofertas de uma vida alienada.
Nosso querido Professor Pe. Paulo Suess captou com muita perspicácia os paradigmas que perpassam a teologia do Papa Francisco, explicitando para nós, seus leitores, com clareza e profundidade, a teologia trinitária e profética, pastoral e espiritualmente orientada de Francisco.
ResponderExcluirNão nos cansamos de ler, reler e refletir esse texto, denso e poético - suas referências primorosas como: "Deus-amor forja o caminho misericordioso e alegre da sinodalidade do Espírito"...."A periferia é o lugar...(do) despojamento radical e (da) plenitude...."
"onde Deus coloca seu berço humano e sua cruz divina"....
Após a brilhante introdução, os tópicos seguintes: a Missionariedade - com ênfase para a Igreja em Saída, a Marginalidade e a Sinodalidade propiciam um mergulho nas entrelinhas da EG e de outros Documentos preciosos, com a Conclusão, não menos magnífica.....Texto imperdível!Para ser mastigado, introjetado, assumido....