10 de março 2012
Jovem de 19 anos foi submetido a choques no peito, nos genitais, na língua e teve um saco colocado na cabeça para não respirar. “Vamos levar ele para a desova”, teria dito um dos homens. Ismael começou a rezar. Comando admite culpa e afasta dois suspeitos. O caso foi denunciado ontem pela Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Paraná. O Comando da Polícia Militar reconheceu o fato e informou que dois PMs foram afastados preventivamente. (Gazeta do Povo)
Uma carta de Teresa Urban para Ismael
Teresa Urban, a jornalista, foi presa e torturada durante o regime militar por suas posições ideológicas. Ela mandou uma carta para o garoto Ismael, de 19 anos, torturado pela PM de Uberaba
Caro Ismael,
Somos moradores da mesma cidade, mas não nos conhecemos. Posso ter passado por você, ou você por mim, numa rua qualquer, mas nem nos olhamos, como é costume por aqui. Ou, então, vi você passar de bicicleta e mais uma vez pensei na vontade que tenho de fazer o mesmo, andar de bicicleta pela cidade, mas sempre deixo para depois. Mesmo assim, conheço bem seu olhar na foto publicada na Gazeta do Povo de terça-feira, dia 6. Já vi esse olhar antes, muitas vezes, mistura de perplexidade, humilhação, medo, dor e raiva (a raiva bem escondida para ninguém perceber) em quem foi agredido, espancado ou torturado. Eu mesma já tive esse olhar um dia.
Por essas coisas todas – e porque você tem a idade de meu neto – quero te contar uma história (coisa que as avós adoram fazer).
Em 1972, fui presa e levada para a Delegacia de Vigilância e Captura (não sei se ainda existe). Ficava na Rua Barão do Rio Branco, onde depois foi instalado o Museu da Imagem e do Som e durante muito tempo imaginei se os sons e as imagens guardadas nesse museu eram os das celas que ficavam na parte de trás do prédio.
Fui colocada na cela com umas 20 mulheres. Todas nuas, amontoadas. Havia também uma garota muito jovem. O que elas tinham feito? Vadiagem e atentado ao pudor, me explicaram. Eram prostitutas que, dia sim, dia não, eram detidas durante a madrugada e soltas no final da tarde. De tempos em tempos, os policiais jogavam água dentro da cela, segundo eles, para esfriar os ânimos.
A mangueira era grande como as usadas pelos bombeiros, e o jato feria a pele. Quanto mais as mulheres gritavam, mais forte era o jato. Quando a situação ficava insuportável, elas ofereciam a menina aos policiais, garantindo que era virgem. Mesmo com todo aguaceiro, o calor era insuportável e quando pediam água, os policiais traziam um balde e um caneco. Antes de entregá-lo às mulheres, urinavam dentro.
No final do dia, as mulheres eram liberadas. Pegavam as roupas guardadas num vão no alto da cela, se vestiam e saiam, levando junto a menina. Já era rotina. Em alguns dias, tudo isso voltaria a acontecer e ninguém, lá fora, saberia. Elas não contariam, é claro, e mesmo que contassem, quem iria ouvir?
Já tinha visto e sofrido maus tratos – afinal, eu era presa política – mas foi ali que compreendi que a tortura praticada nos quartéis durante a ditadura militar era só um prolongamento do que acontecia diariamente nas delegacias deste país. É verdade que o regime militar facilitou as coisas porque, se os homens fortes do pais permitiam a tortura, a morte e faziam desaparecer quem ousava levantar a voz, então “liberou geral”. Por isso, ninguém temia ser censurado ou punido por isso.
Gostaria de terminar a história assim: voltou a democracia, houve uma rigorosa investigação sobre os crimes cometidos durante a ditadura e todos os responsáveis foram punidos. Aí, acabaria o “liberou geral” e ninguém, em nenhuma delegacia, ia ter coragem de colocar a mão num preso porque saberia do risco. Aí, os policiais pensariam duas vezes antes de bater num menino de rua ou num garoto tatuado ou num jovem trabalhador negro numa bicicleta porque a tortura – qualquer tipo, em qualquer grau – foi banida do pais. Afinal a Constituição que conquistamos com tanto esforço em 1988 diz que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.
Isso não aconteceu, Ismael, e 40 anos depois do começo de minha história, os velhos hábitos herdados da Inquisição portuguesa e praticados por séculos contra o africanos escravizados aparecem no seu olhar e na história contada nas páginas do jornal.
Mas então, por que estou escrevendo? Só para aumentar sua inquietação? Não, Ismael, escrevo para dizer que isso pode e precisa mudar. Exige coragem - que você e sua família tiveram – e exigem um compromisso da sociedade. O silêncio foi rompido pela imprensa e pela OAB. Agora, é preciso ir adiante. É preciso localizar os quartos dos horrores, onde é possível espancar uma pessoa, dar choques, sufocar com um saco plástico e ninguém mais, além dos algozes, fica sabendo. São estúdios especiais à prova de som, onde o terror reina? Existem máquinas de choque (talvez herdadas dos quartéis) ou usa-se a instalação elétrica comum, com fios descascados? Ninguém mais sabe ou ninguém se importa?
Sem responder a essas questões e punir que fez, quem viu, quem permitiu, quem se calou, não há política de segurança possível. Precisamos construir uma nova história. Para “congelar o crime” é preciso saber quem são os criminosos e a primeira lição básica está na própria Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.”
Paz e bem, Ismael, para você e seus familiares.
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