DOM HELDER VISTO POR JOSÉ COMBLIN


No dia 3 de maio/2015, a Igreja da Arquidiocese de Olinda e Recife celebra a abertura oficial do processo de beatificação e canonização de Dom Helder Camara. 


Fonte: Dom Helder e a Vida Religiosa, 
em: Convergência, julho-agosto/2009



Dom Helder não era religioso. Mas é difícil achar um religioso tão religioso como ele. Assimilou-se profundamente com os pobres e quis ser pobre como Jesus foi pobre. Viveu pobre num apartamento muito pobre anexo à igreja colonial das Fronteiras. Viveu pobre na alimentação. Almoçava na lanchonete da esquina com os pobres. Comia muito pouco Não tinha carro, nem motorista, nem empregada. Não tinha porteiro e abria a porta ele mesmo, ainda que de 9 pessoas que vinham bater na sua porta, 9 eram mendigos. Acolhia a todos com a mesma simpatia, o mesmo amor. Ele se levantava todas a noites às 2 da madrugada desde a sua ordenação sem nunca faltar. Ficava em oração até às 4 e dormia de novo um pouco.

Era bispo mas vivia como servidor. Dois verbos nunca foram usados por ele: mandar e exigir. Ele podia sugerir, pedir, mas nunca mandava nem exigia. Nunca invocava a sua autoridade e por isso sempre manteve um governo colegial. Não precisava mandar: muitos seguiam-no com fervor e ele nunca importunou os sacerdotes ou as pessoas que não o aceitavam. Aceitava as orientações do governo colegial. Era o bispo, mas obedecia. Nunca quis impor a sua preferência pessoal. Ele abria os caminhos, mas não obrigava ninguém a segui-lo.


D. Helder visita Comblin, exilado na Bélgica


Era sempre de uma perfeita naturalidade. Não queria aparecer como alguém que é bispo, mas simplesmente como o irmão de todos e sobretudo dos mais simples. Jamais quis mostrar que era bispo, salvo para enfrentar os generais da ditadura. Queria ser ele mesmo filho dos seus pais, feliz de ter nascido no Ceará, feliz de ser nordestino. Era ele mesmo, dom Helder, sem títulos, sem artifícios, com a simplicidade de um pobre. Era um homem totalmente livre, totalmente aberto a todos.

Dom Helder recebia dezenas de visitantes a cada dia. Atendia a todos com a mesma atenção e a mesma simpatia como se cada um fosse a única pessoa interessante do dia. A todos dava a impressão de que ele ou ela era a única pessoa importante.

O seu relacionamento com o bispo auxiliar dom José Lamartine foi algo excepcional. Claro que dom Lamartine era um santo. Mas há autoridades que não sabem descobrir que têm um santo ao lado. Dom Helder entregava-lhe todo o governo da diocese. Tudo conversava com ele. A qualquer problema relativo à marcha da diocese, dom Helder dizia: Fale com dom José. Dom Lamartine se podia ver sempre feliz, o que não é tão comum entre os bispos auxiliares.


Era um místico. Vivia toda a sua vida superativa dentro de uma visão de fé: como presença do amor do Pai, como presença física de Jesus reconhecido em todos e como abertura para a inspiração do Espírito Santo. Todos os acontecimentos, todas as pessoas, todas as palavras ouvidas eram reconhecidas como palavras de Deus. Tudo isso com a maior simplicidade de tal modo que ninguém teria podido suspeitar. Os ateus estavam à vontade com ele sem desconfiar que conversavam com um místico. Ou seja, muitos têm uma visão convencional e artificial de uma vida mística. Em dom Helder, tudo era tão natural porque tudo procedia da sua espontaneidade. Não queria brincar de místico. Essa mística aparece nos milhares de poesias que escreveu e conservou. Escrevia as suas intuições místicas em forma de poesia durante as horas da noite, dedicadas à oração. Estava revendo os acontecimentos do dia anterior, os encontros, as pessoas, tudo iluminado à luz de Jesus.

A profundeza da sua vida religiosa aparecia durante a missa de cada dia. Então ele dava a impressão de estar no céu. Não manifestava nenhum esforço, mas era como se tivesse sido raptado por forças espirituais. Estava mergulhado no mistério. Dom Helder não era teólogo e não tinha nada que pudesse atrapalhar a sua devoção. Era simples na religião como os camponeses e sobretudo as camponesas do seu Ceará. Estava impressionado pela força da presença de Deus. Assim são os romeiros que vão a Juazeiro do Norte ou a Canindé.


CONVERSÃO E PERSEGUIÇÃO


Dom Helder descobriu os pobres bastante tarde na vida. Foi na sua grande conversão de 1955 no final do congresso eucarística que foi o seu grande triunfo como membro do governo da Igreja. Durante 5 anos em Fortaleza e quase 20 anos no Rio de Janeiro dom Helder tinha servido a Igreja, ou seja, a instituição eclesiástica com entusiasmo, ardor, felicidade e os mais brilhantes resultados: Responsável pela educação católica, assessor nacional da Ação católica, fundador e secretário geral da CNBB, fundador do CELAM com dom Manuel Larraín de Talca (Chile). Uma atividade exuberante com os mais brilhantes resultados. Mas ainda não tinha descoberto o mundo dos pobres. Vivia de maneira muito austera, pobre, mas não tinha encontrado os pobres face a face na sua realidade de pobres. Então veio a conversão. Converteu-se aos 46 anos.

Quando dom Helder descobriu a pobreza nas favelas do Rio, a sua vida mudou completamente. Começou a orientar toda a sua ação pastoral para os pobres de Rio de Janeiro. Quando chegou ao Recife, logo deu a entender que os pobres seriam a sua prioridade e imediatamente promoveu obras e atividades no mundo dos pobres, por exemplo, o “Encontro de Irmãos” que foi a expressão recifense das Comunidades Eclesiais de Base. Escolheu um modo de vida mais pobre e deixou as portas mais abertas para os verdadeiros pobres. Não se contentou com frases bonitas.

Dom Helder chegou ao Recife e tomou posse poucos dias depois do golpe. A repressão foi muito forte no Recife considerado pelos militares como o centro comunista mais perigoso do país com a proteção do governador Miguel Arraes. Logo o dom teve que enfrentar o problema da repressão e teve que assumir a defesa das vítimas do golpe. Quando dom Helder começou a estar ao lado dos pobres, começaram as perseguições. Uma Igreja que se preocupa com as classes dirigentes nunca será perseguida. Quando faz opção pelos pobres a perseguição é inevitável. De acordo com os evangelhos, a perseguição é parte da missão dos discípulos. Jesus foi muito claro.

Na perseguição, dom Helder sofreu muito, sobretudo quando as vítimas dessa perseguição eram colaboradores seus. Sofreu muito com o assassinato de padre Henrique morto aos 28 anos de idade. Sabia que era um recado para ele. Prenderam sacerdotes e leigos. Sofreu, mas não se deixou intimidar. Foi ameaçado muitas vezes, mas nada mudou o seu comportamento.


Por natureza era homem de paz e de conciliação. Fundou movimentos pela paz. Mas foi atacado, denunciado, perseguido como homem defensor da violência política. Não ficou calado. Suportou o peso das mentiras, das falsas acusações. Sofreu tudo sem rancor, sem amargura. Mas era de caráter muito sensível, como verdadeiro nordestino e não deixava de sofrer.

O maior sofrimento veio da perseguição dentro da própria Igreja. Ele teve que sair de Rio porque foi expulso pelo cardeal. Quando começou a defender a reforma agrária, foi acusado de comunista por bispos do Brasil. Quando se deu o golpe, a CNBB agradeceu oficialmente o exército golpista por ter libertado o Brasil do perigo comunista. Dom Helder foi afastado. Como era ativo, sempre cheio de esperança e de ilusões, resolveu abrir os olhos dos seus colegas e logrou depois de 7 anos colocar na presidência dom Aloísio Lorscheider e com ele começou a época gloriosa da CNBB que durou 24 anos. A CNBB foi centro da resistência à ditadura militar.

A atuação de dom Helder foi muito importante e chamou a atenção de bispos que se sentiam mais abertos para aplicar as reformas conciliares. Chamou também muito a atenção na Conferência de Medellín e quando começaram as lutas contra a ditadura militar no Brasil. Depois do Concílio começou a receber muitas visitas de personalidades eclesiásticas ilustres e recebeu muitos convites para falar em todos os países católicos e também não católicos.

Da Cúria vieram pressões para proibir suas viagens ao exterior. Essas viagens foram limitadas e nem a amizade do Paulo VI o salvou da raiva da Cúria. Paulo VI não mandava em Roma. No Brasil, os militares proibiram que o seu nome fosse pronunciado. Muitos pensaram que tinha morrido porque nunca se falava dele. Finalmente quando foi obrigado a renunciar por causa da idade, deram-lhe o sucessor que todo mundo conhece. Sem comentários! Quem o conheceu durante esses 15 anos, sabe o que foi a velhice dele. Soube da santidade de vida que se manifesta no sofrimento.

Dom Helder nunca fez muitos comentários sobre as instituições eclesiásticas. Tinha idéias muito claras sobre as reformas indispensáveis na Igreja católica e expressou claramente o seu pensamento a Paulo VI, sem ter muitas ilusões Não tinha muito interesse em mostrar aos sacerdotes quais eram os seus deveres, nem aos religiosos qual era a sua missão. Não gostava de dar lições aos outros. As instituições da vida religiosa não tinham interesse para ele. Ele praticava os votos religiosos, mas não estava interessado pela sua instituição canônica. Tinha admiradores e seguidores entre os religiosos e tinha também inimigos entre eles. Tudo isso era sem importância. A sua palavra, a sua vida, o seu comportamento era uma exortação permanente para todos. Dom Helder mostrou que era possível ser humano dentro das estruturas do sistema eclesiástico. Mas é preciso cultivar muitas virtudes.


José Comblin

Um comentário:

  1. A trajetória de d. Helder Câmara, esse profeta contemporâneo nosso, tem tudo para cativar as gerações atuais, pelo testemunho de despojamento, compromisso incondicional com a defesa da vida humana, com dignidade; opção preferencial e verdadeira pelos pobres, na adesão total à pobreza evangélica, acolhendo todos os pobres e vivendo como eles.
    Sua biografia resumida, apresentada pelo pe. José Comblin, outro profeta hodierno, com testemunho muito semelhante, poderá ser referendada por D. Paulo Evaristo Arns, outro gigante na luta pela defesa dos fracos e oprimidos e intransigente defesa da liberdade, dos direitos humanos e da vida plena, com dignidade, para todos!

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