Por ocasião da beatificação de D. Oscar Romero, na véspera de Pentecostes, dia 23 de maio/2015, reproduzimos parte de um texto de José Comblin.

A profecia na Igreja
segundo o testemunho de Dom Oscar A. Romero

José Comblin

Dom Oscar Romero nasceu em 1917 e morreu em 1980. Começou a sua missão de profeta já com 60 anos de vida e o foi durante três anos. Converteu-se aos 60 anos, dando em sua vida uma guinada de 180 graus. A vocação profética pode ocorrer em qualquer momento da vida. Dom Helder Câmara converteu-se aos 46 anos. Ninguém escolhe uma missão profética.

Até 1977, todos teriam dito que Oscar Romero é que nunca seria profeta. Ele tinha sido escolhido pelo núncio apostólico como o mais conservador dos candidatos possíveis. O núncio havia consultado o governo da ditadura, as elites econômicas e as aristocracias, e todos propuseram Dom Oscar Romero. Contrariamente, quase todo o clero de San Salvador fazia votos para que não fosse designado. Todos sabiam que Oscar Romero era amigo do coronel Molina, o ditador do turno, e não aceitava Medellín.


Tudo mudou poucos dias depois de tomar posse como arcebispo, no dia 12 de março de 1977. Nesse dia a ditadura matou o Padre Rutilio Grande, que regressava à sua paróquia de Aguilares. Metralharam seu carro com armas que somente o exército possuía, e mataram, com ele, dois camponeses que o acompanhavam. Então Dom Oscar abriu os olhos e descobriu o que nunca tinha imaginado: todas as acusações de comunismo eram mentiras. O Padre Rutilio Grande era um jesuíta salvadorenho muito estimado, venerado e querido tanto entre o clero como entre o povo. Estava totalmente dedicado ao povo pobre do campo. Para todos era modelo de sacerdote vivendo pobremente e sempre a serviço do povo. Fazia anos que Dom Oscar o conhecia e o tinha escolhido como diretor espiritual. Então estava claro que as autoridades mentiam e o exército estava matando centenas de camponeses totalmente inocentes, acusando-os de comunistas.

Oscar Romero nasceu num povoado da montanha perto da fronteira com Honduras. Seu pai queria que Oscar fosse carpinteiro. Mas apareceu no povoado um padre que o levou para o seminário em San Miguel, sede da diocese. No seminário, o jovem Oscar fez-se um programa de vida rigoroso. Depois do Seminário Menor, o bispo de San Miguel enviou-o a Roma para os estudos de teologia. Ficou apaixonado por Roma e pelo papa. Recebeu o impacto forte dos jesuítas que dirigiam o Colégio Pio Latino e foi grande admirador de Padre Escrivá de Balaguer, fundador do Opus Dei.

Oscar Romero recebeu a ordem sacerdotal em Roma. Foi recebido triunfalmente em San Miguel, onde muitos já pensavam que tinha sido vítima da guerra. O bispo de San Miguel logo descobriu as qualidades de Oscar Romero e quis fazer dele o seu secretário particular. Foi pároco, capelão do Santuário da Virgem da Paz, confessor e diretor espiritual de religiosas, fundador e dirigente de tudo o que existia no mundo de movimentos espirituais e religiosos para leigos naquele tempo. Os mais de vinte anos que trabalhou em San Miguel Foram meteóricos.

Mas com o clero encontrou dificuldades. Em 1966, os padres da diocese pediram ao bispo que removesse o Padre Oscar Romero das suas missões. O bispo não concordou, mas a partir de então iniciou-se um processo de busca de uma alternativa para o Padre Romero. Foi nomeado secretário geral da Conferência Episcopal, o que significava ter de residir em San Salvador [Capital]. A despedida foi muito dolorosa para ele, mas submeteu-se e foi para a capital em 1967.

Em 1970, foi feito bispo auxiliar de San Salvador. Sua sagração episcopal foi triunfalista, o que não agradou ao clero. Então teve conflitos com os jesuítas, sobretudo com o grupo dos jovens da Universidade Centro-Americana (UCA). Houve muito mal-estar no Seminário Nacional em que ele estava hospedado. Os jesuítas tinham a direção do Seminário e difundiam as ideias do Concilio Vaticano II e de Medellín. Isso agradava ao arcebispo, mas não era aceito por bispos do interior, que queriam o tipo tradicional do padre dedicado aos sacramentos e às devoções populares de sempre. Romero conseguiu o afastamento dos jesuítas.

Além disso, Romero foi nomeado reitor do Seminário, mas após seis meses teve de renunciar porque tinha sido um fracasso total. Tudo isso criou no clero uma postura de rejeição. No entanto, o que não agradava aos padres agradava ao núncio. Em 1974, Romero foi nomeado bispo residencial de Santiago de Maria. Então pode voltar à sua prática pastoral de San Miguel, mas precisou enfrentar um grave problema de repressão imposta pelos militares. Sucedeu num lugar chamado Las Tres Calles. Um grupo de camponeses voltava de um culto com a Bíblia na mão e mais nada. Soldados da Guardia abriram fogo com metralhadoras contra os camponeses, matando um bom número, inclusive crianças. O clero jovem queria que o bispo fizesse uma denúncia pública. O bispo aceitou, mas somente enviou uma carta pessoal ao presidente da República, coronel Molina.

Assim era Dom Oscar Romero quando, em 1977, foi nomeado arcebispo de San Salvador. O núncio esperava que ele mudasse a linha medellinista do seu antecessor. Reuniu-se com o clero para acalmar a indignação de quase todos os padres e foi aceito com resignação. Mas depois de poucos dias tudo mudou. Aconteceu o que o núncio jamais podia ter previsto. O assassinato do Padre Rutilio Grande de repente abriu os olhos de Dom Oscar. Uma vez que descobriu a realidade, não hesitou. Seu temperamento era de honestidade total. Confiara na honestidade do governo e das autoridades porque acreditava nas suas palavras. Agora descobriu a mentira e o cinismo do presidente, que era seu amigo, e de todas as instituições de poder.

No dia 15 de março, depois de uma assembleia do clero, reunido para definir a atitude da Igreja diante dessa morte, o arcebispo publicou um comunicado em que declarava que não assistiria mais a nenhum ato público com membros do governo e, segundo, que no domingo, dia 20, haveria somente um missa para a cidade inteira na catedral. O núncio repreendeu Dom Oscar de modo bastante agressivo, mas ele se manteve firme. Desse modo se consumou a ruptura entre o arcebispo e o núncio. Romero, alarmado, foi a Roma, suspeitando que já tinham chegado à Roma informações tendenciosas. O papa Paulo VI deu-lhe apoio, mas cardeais importantes da Cúria Romana receberam-no com muita frieza.

No dia 19 de maio, houve uma tragédia em Aguilares, que fora a paróquia de Rutílio Grande. Uma multidão de camponeses tinha ocupado uma fazenda. O exército chegou com a vontade firme de massacrar. Mas os camponeses foram avisados e fugiram antes da chegada do exército. Pensando que estivessem refugiados na paróquia, os procuraram e, não os encontrando, mataram o sineiro, prenderam os jesuítas da paróquia, bateram neles e expulsaram-nos do país imediatamente. Furiosos, invadiram a igreja, abriram o sacrário e jogaram fora as hóstias consagradas como sinal de rejeição. Decidiram ocupara a igreja e a paróquia. Depois de algumas semanas, afastaram-se.

No dia 19 de junho, Dom Oscar veio com o novo vigário reabrir a igreja para o culto. Pronunciou a homilia mais clara e profética desses primeiros tempos. Denunciou a perseguição e exortou o povo a perseverar com firmeza, sem se amedrontar. Em 1º de julho, assumiu o novo presidente, general Romero (sem parentesco), e o arcebispo não assistiu à posse, mas outros dois bispos se fizeram presentes. Com tudo isso começou uma verdadeira mobilização das elites do país contra Romero.

Cada domingo, na homilia transmitida pela rádio da diocese ao país inteiro, Dom Oscar falava claramente e com muito vigor, denunciando a situação e dando coragem ao povo oprimido. Nesse momento ninguém mais escutava outra radio. A opção pelos pobres era cada vez mais clara.

Não era fácil. Foi nomeado bispo auxiliar Dom Revelo, que se mostrou o adversário mais oposto do arcebispo. Em 1977, Revelo foi delegado de El Salvador no Sínodo de Roma e denunciou ali que em sua diocese os catequistas ensinavam o marxismo, e o próprio texto do catecismo era marxista. Quando Romero foi a Roma em 1978, viu que havia muitas intrigas contra ele. Na Congregação dos Bispos, a repreensão foi forte. Sentiu a surda oposição de muitos cardeais. O papa deu-lhe apoio, mas morreu um mês depois. Em El Salvador, a Conferência Episcopal manifestava cada vez mais oposição ao arcebispo.


Com o tempo, Dom Oscar se sentiu entre dois fogos: de um lado estava o governo, com todas as elites do poder, a maioria da Conferência Episcopal e o núncio; do outro lado havia organizações populares que se convenciam cada vez mais de que a única solução era a insurreição armada, e se aproximavam dos grupos guerrilheiros.

Em setembro de 1979, Dom Oscar tinha recebido a informação de que oficiais jovens queriam dar um golpe para tirar o general Romero da presidência. Foi um golpe sem disparar um tiro, sem matar ninguém, totalmente diferente dos golpes anteriores. Depois de um confronto entre os serviços de segurança e organizações populares, no qual Dom Romero serviu de mediador e evitou um encontro violento, houve desentendimento entre os ministros civis e a junta de governo. Todos os civis renunciaram. Desde então começou a reinar no pais um ambiente de guerra civil. No dia 24 de fevereiro de 1980, publicou um comunicado dizendo que estava ameaçado de morte. Em 22 de março, houve uma reunião com o clero para deliberar sobre a homilia que o bispo ia pronunciar no domingo seguinte. A questão era se convinha chamar urgentemente as Forças Armadas para terminar a repressão e convencer os soldados a desobedecer quando recebessem ordem para matar inocentes. Todos concordaram e foi o que Dom Oscar pronunciou em sua homilia. Foi seu decreto de morte. No dia seguinte, 24 de março, às 18h26, na capela do hospital em que presidia a Eucaristia, no momento do ofertório, houve um disparo e a morte foi instantânea.

De modo mais geral, vale sempre a experiência de Romero. A missão profética começa quando se descobre a realidade da opressão e da violência, ou seja, a verdadeira condição dos pobres. E todos os anos antes da sua conversão, Dom Oscar Romero sempre tinha sido aberto aos pobres, tratando-os com bondade, indo ao encontro das suas necessidades. Mas não se perguntava por que eram tão pobres. Um dia descobriu porque eram pobres. Então não somente defendeu os direitos deles, mas também os preparou e exortou a defender os seus direitos e mudar a sociedade no sentido da justiça e de uma verdadeira paz.


Parece bem claro que a ação profética de Dom Oscar Romero somente foi possível porque ele tinha qualidades muito excepcionais. Era firme e corajoso. Claro que teve medo da morte. Comentou isso várias vezes com os seus colaboradores mais próximos. Jesus também teve medo. Mas esse medo não o influenciou em nada. Os que viviam perto dele achavam que nunca tinha sido tão sereno, tão tranquilo, tão equilibrado como no meio de todos esses conflitos, e mais ainda quando soube das ameaças de morte. Deu um testemunho de fidelidade radical ao Evangelho de Jesus Cristo.

(artigo publicado na revista CONVERGENCIA – março 2010)




Um comentário:

  1. O seguimento de Jesus Cristo até as últimas consequências, ensejando uma conversão profunda e radical indicam a sentença de morte, o martírio, pela causa do Reino.
    O testemunho, a coerência e autenticidade do pastor, unem os fiéis na luta pela defesa dos pobres e perseguidos.....D. Oscar Romero vive pra sempre, na memória e no coração dos salvadorenhos e dos povos latino-americanos!

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