XXXII Assembleia Regional do Cimi Maranhão em São Luís

A Mãe Terra clama pelo Bem Viver


Cleber Buzatto, secretário adjunto do
Cimi, Brasília, e D. Sebastião Lima
Duarte, bispo de Viana
Entre os dias 17 a 20 de maio de 2011, o Regional Maranhão realiza sua Assembleia em torno da temática “Terra” e “Qualidade de Vida” para os povos indígenas da região. Face ao grito dos povos indígenas por terra, dignidade e justiça, a Igreja missionária maranhense, ligada ao Cimi, organiza suas atividades e fortalece a sua mística em torno do lema: “A Mãe Terra clama pelo Bem Viver”. Do Cimi Nacional participarão do evento o secretário adjunto, Cleber Buzatto, e o assessor teológico, Paulo Suess. Para aprofundar a temática, oferecemos dois subsídios: para a análises da conjuntura, a entrevista que D. Tomás Balduíno recentemente deu à “Revista do Brasil” (I) e um texto, que Paulo Suess escreveu para a Agenda Latino-Americana de 2012 (II).



I.
A lógica da transformação
Entrevista de Cida de Oliveira com Dom Tomás Balduíno



Foto: Pablo de Regino
O que mudou no tratamento do homem do campo da ditadura até hoje?
Superamos um estado de repressão, de desaparecimento, de matança. Eles não brincavam em serviço. Mas o golpe foi dado prioritariamente para quebrar a espinha dorsal das organizações camponesas, porque eles achavam que elas eram a porta de entrada do comunismo internacional. Não sei se os militares faziam isso (por conta própria) ou se eram orientados pelos Estados Unidos. Eles generalizavam porque eram partidos de esquerda que organizavam os trabalhadores. Foi por isso que nasceu a CPT: havia repressão aos trabalhadores rurais e aos indígenas. Então a Igreja entrou em cena. O MST nasceu nesse tempo, embaixo do guarda-chuva das igrejas ligadas às Comunidades Eclesiais de Base, e cresceu com a abertura lenta e gradual. Assim como as organizações indígenas, que cresceram muito. Hoje há muitas organizações, autônomas. E isso é que é bonito: a Igreja com a opção pelos pobres. A gente não discutia com eles, apoiava.
Hoje há mais de 300 conflitos envolvendo indígenas, trabalhadores rurais e quilombolas. A questão da terra está longe de ser resolvida?
Os povos indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, ribeirinhos e seringueiros têm outro relacionamento com a terra, com as águas. Por isso não são levados em consideração pelas políticas, já que o governo se relaciona com a terra do ponto de vista da produção, do agronegócio. O cerrado, escolhido para o avanço da monocultura, foi tomado primeiro pela soja e está sendo dominado pela cana para o etanol e pelo eucalipto para a celulose, entre outras culturas. Isso preocupa muito porque, embora seja de grande importância para o equilíbrio ecológico do país e da América Latina, é um bioma desvalorizado pelo capital, tratado como área de exploração. Suas plantas funcionam como reservatórios de água do nosso país. Se o cerrado for arrasado pela monocultura, haverá desequilíbrio.
Qual a razão desse interesse no cerrado?
Porque o terreno em geral é plano, com vegetação frágil, tortuosa, pequena, não dificulta o trabalho das máquinas. O que não acontece na floresta, onde é mais complicado desmatar em pouco tempo para fazer campos de monocultura até perder de vista. O desmatamento do cerrado prejudica o sistema freático. A rama, a copa das plantas, tem o correspondente em raiz – que funciona como uma esponja, uma caixa d’água, alimentando o freático e a planta durante a estiagem. Se arrancá-la, o circuito da água deixa de ser vertical, em direção ao freático, e torna-se horizontal, causando erosão, assoreamento de córregos e rios.
Mas há alternativas que garantam maior produção em menor área plantada?
Há várias alternativas à destruição da vegetação nativa que vão em direção oposta à chamada revolução verde (o plantio de eucaliptos em grandes extensões). Aparentemente são bonitas as grandes extensões verdes, que produzem o suficiente para alimentar o mundo, não é? Mas isso é um engano. A revolução verde foi pensada para substituir aquilo que existia antes, onde entra o trator que corrige a terra, aduba, põe calcário, semente, tudo de uma forma mecânica, pesada. Embora a cobertura seja verde, é na verdade um deserto verde. Esse modelo destrói o meio ambiente, acaba com as nascentes, leva à seca. Na Bacia do São Francisco, onde há plantação de eucalipto, ficaram secas 1.500 pequenas vertentes que fluíam para o São Francisco.
Há quem defenda que monoculturas como a do eucalipto só ocasionam problemas quando não há manejo correto.
Há mil justificativas para a manutenção desse modelo que destrói o bioma em troca de dinheiro, divisas. Mas não se buscam alternativas técnicas. Nós temos em Goiás, Tocantins, Bahia, Minas, grupos extrativistas organizados, que convivem com o cerrado sem destruí-lo. São todos desconsiderados. O que realmente interessa ao governo, bem como aos anteriores, é o agronegócio que passa por cima das pequenas propriedades mas não mata a fome, porque seu objetivo não é distribuir, mas concentrar, sobretudo o lucro. Está comprovado que 70% do alimento consumido no país vem dos pequenos produtores.
E quanto à energia?
Com a energia é a mesma coisa. Insiste-se no mesmo modelo, seja de usina hidrelétrica, seja de nuclear. Ficam de lado outras possibilidades, como a energia solar, que alimenta diversas cidades na Alemanha. O excedente das casas vai para as redes de distribuição. É claro que isso requer pesquisas, abertura ao entendimento e resistência às pressões do mercado. Às vezes, o governo segue uma linha predatória, prejudicial aos povos indígenas, por exemplo, porque sofre pressão fortíssima de conglomerados econômicos nacionais e internacionais. Por que tem de prevalecer a lógica da superprodução? O índio se relaciona com a mãe terra de maneira harmoniosa, mística, afetiva. Não é transformada violentamente, depredada, arrasada, destruída¬ em nome da produção, do ter cada vez mais. O povo da terra do semiárido também tem consciência do valor e da riqueza da caatinga, em oposição ao capital. Durante muito tempo, prevalecia a proposta dos versos de Luiz Gonzaga, de ir embora dali. Agora eles estão descobrindo que o semiárido tem água, um total de 37 bilhões de metros cúbicos. Segundo técnicos, isso prova o equívoco da transposição do São Francisco, um investimento caríssimo para levar água ao Nordeste. Mas lá não falta água, e sim política governamental para distribuir essa água que está concentrada. Uma vez distribuída, alimenta tudo. Com a transposição do São Francisco, vão ser levados 3 bilhões de metros cúbicos para uma região que tem 37 bilhões. Se com 37 bilhões não se resolve o problema da seca, como é que 3 bilhões vão resolver?
Os acidentes nucleares no Japão põem em xeque os projetos de construção de usinas atômicas como os previstos no Nordeste?
Um desenvolvimento “de ponta”, né? Bem no momento em que o mundo começa a repensar esse modelo nuclear para a produção de energia. O Japão, por exemplo, que na conferência do clima em Cancún lutou para anular o Tratado de Kyoto e não ter de reduzir as emissões de poluentes nem o lucro, tem um modelo mundialmente questionado. Suas usinas não resistiram aos terremotos, têm vazamentos e passaram a ser uma ameaça à população. Independentemente de estar no Nordeste, no Centro-Oeste, Sudeste ou Japão, é o modelo que está sendo questionado pelos melhores técnicos, por todos aqueles que eram a favor e agora são contra. É o feitiço que se volta contra o feiticeiro. Acredito que brevemente toda a humanidade estará esclarecida e terá uma consciência contrária a respeito. Por enquanto são grupos mais seletos, cientistas que começam a repensar a coisa. A consciência ecológica, aliás, é um ganho para a humanidade, um avanço como a conquista da igualdade dos direitos da mulher, que custou séculos para chegar a esse ponto e deve ser aprimorada, mas é uma conquista.
Qual é o modelo que o senhor defende? Menos produção, consumo e conforto?
Isso mesmo. É necessário tudo isso que se busca? O conforto dos Estados Unidos pode ser aplicado a uma população de 6 bilhões, mas a terra é insuficiente, e isso mostra que tem algo errado aí. Como pensar num mundo e numa humanidade equilibrados e sustentáveis? Produzindo de acordo com a necessidade. Uma coisa é a necessidade em que todos participem. Outra, é atender a um modelo superpredador de determinados países do Primeiro Mundo. Então, volto à pergunta anterior. Não seria a hora de questionar o modelo vigente e dar a palavra à população camponesa, ao indígena?
A CPT conta com apoio do Vaticano?
O Vaticano está muito longe. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), à qual pertence a CPT, é um organismo suficiente para resolver o problema pastoral, eclesial. A CPT nasceu assim, da Igreja, e não para a Igreja, a serviço do trabalhador do campo. Como o bom samaritano que se dá para levantar o caído, dando a ele autonomia para se erguer e um dia levantar outro caído, tratando-o como sujeito, e não objeto da nossa ação caritativa. A Pastoral Indigenista segue o mesmo princípio, de dar todo o auxílio a uma população que sofre repressão, vive em conflito com o roubo da terra e a expulsão do campo pelas autoridades armadas para deixar o terreno livre para a monocultura do grande capital. A terra pode ser de japonês, americano, alemão, desde que seja do capital. Não pode ser dos índios, dos lavradores, senão vem a polícia e despeja. São milhares de ações de despejo no nosso Judiciário contra quem ocupa a terra há vários anos de forma pacífica.
Como o senhor avalia a impunidade no campo? Dorothy Stang, Corumbiara, Eldorado dos Carajás...
Entre 1985 e 1996, a CPT fez um levantamento sobre os assassinatos no campo por disputa pela terra. São assassinatos encomendados pelo latifúndio. Raramente aparece o mandante. Há o pistoleiro que é contratado, faz o serviço e recebe. Nesses 11 anos do estudo, foram constatados cerca de mil assassinatos, dos quais só 70 viraram processos levados ao tribunal e apenas 14 tiveram os pistoleiros condenados. Dos mandantes, só sete foram condenados e cinco fugiram. Os pistoleiros que escaparam na certa voltaram a matar. É o quadro da impunidade. Eu participei de uma sessão do Supremo Tribunal Federal em que se julgava a possibilidade de federalizar os crimes contra os direitos humanos. Era justamente na época do assassinato da Dorothy. Como envolvia vítima internacional, norte-americana, o estado do Pará agilizou o processo, que está praticamente concluído. Muito boa a Justiça naquele caso. E nos demais? E naqueles em que o assassinado não é norte-americano ou alemão? Isso tem favorecido a manutenção do crime, o que interessa aos grandes fazendeiros, a muitos detentores do poder, juízes, latifundiários e parlamentares. E, por falar em parlamentar, a proposta de confisco da terra onde há trabalho escravo, para fins de reforma agrária, não caminha. Acho que com esse time que está aí, de congressistas latifundiários, uma bancada ruralista fortíssima e numerosa, jamais será aprovada.
O que o senhor acha da atualização do Código Florestal?
É um desastre, um absurdo diminuir a já pequena cobertura vegetal em torno dos mananciais, facilitar a devastação da floresta e não oferecer nenhuma proteção ao meio ambiente. A gente sabe que nem todas as pessoas no Congresso concordam com isso. Pena que sejam minoria.
Como o senhor vê o fato de termos pela primeira vez uma mulher na Presidência da República?
É muito positivo, mas não deixa de ser um continuísmo, um tempo de inverno para o movimento de reforma agrária. E, com o avanço do agronegócio, pior ainda. Do ponto de vista do homem da terra, ainda há retrocesso. Durante a campanha, ela nada falou sobre reforma agrária, o que pode ser significativo. Embora tapeasse e protelasse, dizendo que ia cumprir as promessas de campanha, Lula dialogava e não reprimia, ao contrário de FHC. Em compensação, durante os anos FHC os movimentos se fortaleceram, com todo o grande capital por trás. É que, conhecendo o adversário, isso fica mais fácil. Tanto que a oposição ao governo tucano foi feita mais pelos movimentos do que pelo PT. Mais do que enrolar, Lula traiu o compromisso de fazer a reforma agrária, que acabou ficando por conta dos movimentos via ocupações e pressões das bases, e não do Incra, cada vez mais sucateado.
E quanto aos transgênicos?
O transgênico é sério porque atinge a semente, e ela é a força do lavrador. Em vez de manipular sua semente para plantar, ele tem de ir ao mercado e pagar (por ela). O pessoal diz que tudo o que é transgênico é duvidoso, não se tem segurança. Mas nós, da área rural do CPT e os trabalhadores rurais, consideramos que o principal veneno é o fato de a semente ser subtraída. Aquilo que é vital para o trabalhador, e é milenar, ser levado ao monopólio. O trabalhador tem de ter o domínio da semente e da terra.
O senhor já recebeu ameaças de morte?
Várias vezes. E tive medo não por mim, mas por outros padres, sacerdotes. Ninguém vinha direto a mim, mas estimulavam gente maluca. Eu soube de vários planos de morte, como uma emboscada numa festa em que iria, numa paróquia, mas fui ao sepultamento do padre Rodolfo e do índio Simão, assassinados por fazendeiros. Toda noite rezo para o padre Rodolfo, que me salvou de uma emboscada. Soube também que na ditadura fui vigiado durante todo o tempo. Pior é quando é pistoleiro, como aquele que atirou no padre Chicão, um defensor dos sem-terra, que levou tiro de cartucheira no rosto e ficou cego dos dois olhos. Sei que aquele tiro era para mim. Mas é complicado matar um bispo. Escapei, e agradeço ao Chicão.
[fonte: Revista do Brasil - Edição 59 - Maio de 2011]

II.
Bem Viver - Sumak kawsay
Horizonte, plataforma, aliança

O paradigma sumak kawsay, de origem quéchua, aponta para o horizonte do bem viver tradicional do mundo andino. Em suas Constituições, Bolívia e Equador retomaram esse conceito e o procuraram contextualizar no mundo de hoje, como projeto alternativo ao desenvolvimentismo das economias globalizadas. Os intérpretes do sumak kawsay apontam para seu caráter processual, crítico, plural e democrático. O sumak kawsay deve ser compreendido como plataforma política com um horizonte utópico e como aliança de diferentes culturas e múltiplos setores, dispostos a construir novas relações sociais na base de uma nova relação com a natureza.

Utopia migrante
Ao contrário do que se espera, a utopia é uma migrante de países prósperos, que dela supostamente não mais necessitam, a países pobres. O discurso político hegemônico despreza a grande narrativa que resiste à redução da palavra a manchetes de jornais, slogans de propaganda ou palavras de ordem. Nessa grande narrativa, com seu índice utópico que não se dissolve no pragmatismo cotidiano, ressoa a causa universal e a crítica dos que não se conformam com o mundo assim como é. Essa causa questiona os imperativos agressivos da sociedade de consumo com suas exigências de crescimento, produção acelerada e prazer instantâneo. Enfeitiçados pelos meios de comunicação, que fazem estimar o opressor, perdoar ao corrupto e desprezar o oprimido, assistimos a um rebaixamento do espírito revolucionário de um proletariado aburguesado, sindicatos burocratizados e líderes populares incorporados em máquinas administrativas de governos supostamente progressistas.
Também as Igrejas, que teriam a oferecer um grande capital contracultural, que ao mesmo tempo questiona a cultura hegemônica e valoriza as culturas marginalizadas, se acomodaram no interior do sistema, em troca do reconhecimento de sua liberdade institucional e do seu prestígio histórico. Mas essa acomodação tem um preço alto: a perda do espírito crítico ad extra e ad intra, ou seja, a corrosão lenta e silenciosa de seu espírito profético e a percepção da diferença entre ideal e realidade.
Espírito crítico significa ter consciência dessa diferença entre a ordem implantada e a proposta constitucional que precedeu à implantação dessa ordem. Na ordem implantada não se trata apenas da ordem representada pelos Estados e seus governos. Também as Igrejas fazem parte dessa ordem histórica implantada que necessita, sempre de novo, de um olhar crítico. Nos templos religiosos existe, igualmente, uma diferença entre leis em vigor por ordem divina e leis obedecidas através de práticas institucionais, uma diferença entre proposta evangélica e resposta institucional.
Muitos devem lembrar-se, ainda, da indignação desses setores face aos pedidos de perdão que o então papa João Paulo II pronunciou em diversas ocasiões a judeus, africanos e indígenas. Quando na IV Conferência do Episcopado Latino-Americano, de Santo Domingo (1992), surgiu a proposta de um pedido coletivo de perdão aos povos indígenas, o arcebispo de San Juan de Cuyo, Argentina, Italo Severino Di Stéfano, em sua resposta no dia 19 de outubro de 1992, declarou que um tal pedido seria inoportuno, porque poderia ser explorado por setores ideológicos e por refletir um complexo de culpa que diminui o ardor da nova evangelização.
Dois dias mais tarde, no dia 21, durante a Audiência Geral, em Roma, o Papa pronunciou-se sobre a oportunidade de um pedido de perdão: "A oração do Redentor se dirige ao Pai e ao mesmo tempo aos homens, aos quais se têm feito muitas injustiças. A estes homens não cessamos de perdir-lhes 'perdão'. Este pedido de perdão se dirige, sobretudo, aos primeiros habitantes da nova terra, aos 'índios', e também àqueles que, como escravos, foram deportados da África para trabalhos pesados. 'Perdoai-nos as nossas ofensas': também esta oração faz parte da evangelização (...)."
A diferença entre o insuficiente da realidade eclesial e sua promessa, entre a ordem reinante e a verdade eterna é legitimamente apontada por setores da sociedade secular e da própria Igreja que zelam com lealdade pela conformação, nunca plena, da instituição com seu fundador Jesus Messias. A precariedade da realidade eclesial, quando é acolhida com humildade e o desejo de perdão, poderia honrar a instituição que não negocia seus ideais na esquina do mal menor, mas que se lembra deles, pronunciando seu mea culpa.
Como vimos em Santo Domingo, nem sempre este zelo de profetas, teólogos e pastores foi bem recebido por setores que vivem em certa distância com o dia a dia do povo de Deus. Suas teologias são descontextualizadas e oferecem respostas a perguntas secundárias. Esta foi a razão porque, num determinado momento, a Teologia da Libertação e a Teologia Índia, entre outras, foram induzidas ao silêncio por setores que consideravam Medellín (1968) um acidente na história da Igreja. A Teologia Índia, por exemplo, não significa uma ruptura com a tradição da Igreja. Pelo contrário, trata-se da assunção de tradições milenares e do enraizamento do evangelho nessas culturas. A assunção, segundo o Santo Irineu, é a propedêutica da redenção (cf. Puebla 400). Ainda hoje, aproximadamente quarenta anos depois de Medellín, no “Documento de Aparecida” (2007), a simples menção dessas teologias, que representam a graça profética pós-conciliar da Igreja latino-americana, era vetada. Se os teólogos se tornam funcionários institucionais e não defensores dos aflitos, a teologia degenera em ideologia.
Mas o vinho novo da causa do Reino não cabe nem acaba nos odres velhos (cf. Mt 9,17) de uma funcionalidade sistêmica. A condenação oficial à clandestinidade gera traumas, mas também forja linguagens estratégicas in off. A profecia pode migrar para outros espaços e siglas, entre os quais, hoje, reconhecemos o sumak kawsay – o bem viver, do mundo quéchua. O que a Encíclica Pacem in terris, de João XXIII, o Vaticano II e Medellín designaram “sinais do tempo” – a emancipação dos operários, dos países colonizados e das mulheres -, na realidade foram lutas evangélicas abandonadas nas Igrejas. Reapareceram metamorfoseadas no mundo secular, porque em seu berço eclesial não encontraram espaços de moradia nem de hospedagem passageira. No horizonte da utopia do Reino, todos somos posseiros de esperança sem ter a posse da verdade. A sua posse seria o fim da história. A esperança continua como eterna migrante em busca da verdade no meio dos desesperados.
Felicidade, dignidade, ressurreição
Segundo Ernst Bloch, as utopias sociais do bem viver, com seu ponto de gravidade no sistema econômico, visam à felicidade ou ao menos à redução da fome e da miséria. As utopias do direito natural, com seu ponto de gravidade no campo cultural jurídico dos direitos humanos, visam à dignidade, à cabeça erguida e à proteção legal de liberdade e segurança. A vida concreta é ameaçada em ambos os campos: pela fome e pelo desprezo ou, como Marx diria, na base e na superestrutura. O primado da dignidade humana exige a prioridade dada à libertação econômica. Entre ambos, há uma relação de meios e fins.
O sofrimento dos pequenos – dos sobrecarregados que passam fome e dos desprezados que sofrem humilhação – aponta para os desafios éticos da humanidade, causados pela aceleração da destrutividade do capital. E é este sofrimento que pode mudar o rumo da história, o sofrimento autorreflexivo e organizado, que gera nos pobres discernimento e consciência sobre o sofrimento que pode ser evitado e aquele inerente à condição humana. Os nomes concretos desses desafios éticos são: esgotamento dos recursos humanos e naturais e manipulação genética e psicológica no interior e em função do mercado total. Daí, emergem tarefas urgentes de transformação: a redistribuição dos bens de acordo com as potencialidades do planeta Terra, o reconhecimento do ”Outro” no horizonte de uma harmonia universal e a participação democrática de todos, sem privilégios de classe.
Mas, para a utopia que articula felicidade e dignidade falta ainda algo para configurar o bem viver. Afastados fome e desprezo da vida humana, esta ainda está ameaçada pela apropriação privilegiada de alguns. Portanto, o bem viver precisa ser pensado para todos e, ao ser pensado para todos, necessita como terceiro elemento da justiça distributiva e redistributiva. O terceiro elemento utópico, a justiça, nos faz lembrar, concretamente, daqueles que morreram injustiçados. O horizonte utópico inclui, ao lado de felicidade e dignidade, não a justiça dos vencedores e sobreviventes, mas a justiça dos injustiçados, vivos ou mortos. O Messias virá quando houver para todos lugar na mesa. Mas ele virá também como memória daqueles que, castigados por fome e desprezo, caíram no túmulo do esquecimento. A justiça para todos é impensável sem a graça da ressurreição dos mortos e de um juízo final (cf. Spe salvi, n. 43s). A história da humanidade mostrou, que o anseio da ressurreição e a vitória sobre a morte reuniu médicos e xamãs, teólogos e filósofos numa batalha que, até hoje, não está vencida nem perdida. Ela está presente em quase todas as culturas e pode alocar-se em imaginários muito diferentes. A partir do tripé – felicidade, dignidade, continuidade da vida –, compreendemos que o sumak kawsay sempre será projeto, horizonte e esperança perigosa.
Paulo Suess

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