Tão logo a polêmica se mostrou "ruim para ambas as partes" - para usar o
bordão do candidato derrotado Celso Russomanno -, ninguém quis assumir a
iniciativa de tê-la posto em pauta. A discussão sobre materiais didáticos de
combate à homofobia, os enviesadamente chamados "kits gays", começou
a semana em altos decibéis na boca dos postulantes à Prefeitura de São Paulo
José Serra e Fernando Haddad. Depois minguou diante da descoberta de que ambos
os haviam produzido em suas respectivas gestões à frente do governo do Estado e
do Ministério da Educação.
Judith Butler recebeu recentement o Prêmio Adorno da cidade de Frankfurt e suscitou uma polêmica ao criticar o Estado de Israel. Na entrevista, Judith falou sobre a intromissão do tema da homofobia na sucessão paulistana, dos limites à liberdade de expressão quando ela se traveste do discurso do ódio e dos avanços e recuos na luta pelos direitos sexuais nos EUA, na Europa e na América Latina.
A
reportagem é de Ivan Marsiglia e publicada na íntegra pelo jornal O Estado de
S. Paulo, 21-10-2012.
Eis
a entrevista.
Quão inusitado é uma
discussão sobre material didático de combate à homofobia entrar na pauta de
eleições municipais?
Depende
de que parte do mundo se esteja falando. Vejo isso acontecendo em algumas
cidades americanas, na Rússia, na Turquia e em outros lugares. O que levanta a
questão sobre a necessidade de um compromisso político que considere
efetivamente a homofobia e a transfobia como formas inaceitáveis de
discriminação. Opor-se a políticas de combate ou à produção de material
didático contra a homofobia significa defender a homofobia. O que me parece um
tanto contraditório para qualquer partido político comprometido com a igualdade
e a justiça.
Representantes do
movimento LGBT integram ambos os partidos, PT e PSDB, que disputam o 2º turno
da eleição em São Paulo. O que esse ocultamento da 'agenda gay' revela sobre a
democracia de nossos dias?
Não
conheço em profundidade a situação no Brasil, mas está claro que diversos
partidos vivem a contradição de ostentar oficialmente políticas de combate à
homofobia, num quadro mais amplo de defesa dos direitos humanos, mas, ao mesmo
tempo, solapá-las na tentativa de manter o apelo a eleitores religiosos ou
conservadores. É uma forma de hipocrisia que acaba por minar as políticas
antidiscriminatórias, fazendo delas mero jogo de aparências.
Como superar essa
hipocrisia eleitoreira?
Se
há cristãos que enxergam a homossexualidade como pecado ou algo antinatural, há
também aqueles que enfatizam o fato de que todos são filhos de Deus, devem ser
amados e respeitados. Então, é politicamente importante que os defensores do
secularismo fortaleçam as alianças com grupos cristãos não homofóbicos para
combater abertamente a estigmatização de minorias sexuais e de gênero.
Uma comunidade religiosa
pode pregar contra a homossexualidade entre seus pares em nome da liberdade de
expressão?
Em
minha opinião, uma comunidade religiosa pode ter as visões mais tacanhas sobre
as mulheres, os gays, as lésbicas, os bissexuais e transexuais. Mas não pode
querer impor suas crenças na forma de políticas que contradigam princípios
básicos dos direitos humanos. Acreditar é uma coisa; impor discursos e
políticas públicas é outra. Claro que devemos combater esse tipo de crença,
apelando inclusive aos valores do amor e do respeito ao próximo na tradição
cristã - e reforçando os princípios universais que ditam que toda pessoa,
independentemente do gênero ou da orientação sexual, deva ser tratada com
dignidade.
Mas a partir de que
momento um julgamento moral deixa de ser uma opinião ou uma crença e torna-se
crime a ser punido?
Se
uma pessoa emite um julgamento moral contra a homossexualidade, essa pessoa
deve ser simplesmente confrontada com argumentos melhores. Mas, se ela pretende
instalar sua crença na legislação ou desencadeie uma campanha de ódio e
discriminação, entramos em outro território. Se essa propaganda homofóbica
contribui para a instalação de um ambiente político em que gays, lésbicas,
travestis ou transgêneros sintam-se moralmente depreciados ou fisicamente
ameaçados, isso jamais poderá ser considerado "liberdade de
expressão". Na maior parte dos países europeus, o discurso antissemita é
considerado racismo e contra a lei. E o discurso racista é mais facilmente
identificado com a injúria do que o homofóbico. Eis o problema. Nos EUA, a
liberdade de expressão tende a ser considerada um direito que se sobrepõe a
todos os outros e, por isso mesmo, o último a ser passível de restrição. Então,
mulheres, travestis e transexuais podem ser perturbados nas ruas sem que isso
seja considerado contra a lei, a não ser que fique explícita a intenção de
agredir. E o risco de se tolerar esse tipo de discurso é criar um ambiente
público intoxicado.
A corte de apelações
de Manhattan propôs essa semana a alteração do estatuto que define o casamento
como união entre um homem e uma mulher por considerar essa formulação
discriminatória. Acha que a Suprema Corte vai acatar a proposta?
A
Suprema Corte teria o poder de tomar a decisão de alterar a definição federal
de casamento para que essa não estipule o gênero das pessoas que desejem
estabelecer contrato de matrimônio. Mas tenho sérias dúvidas de que a atual
configuração da corte vá acatar essa modificação. Não porque regras coletivas
estariam se sobrepondo a direitos individuais, mas porque há aqui duas ideias
de bem social em competição.
O dado da pesquisa
divulgada na quinta-feira de que cresceu a aprovação ao casamento gay por parte
dos cidadãos de origem latina nos EUA a surpreendeu?
Sim,
mas não estou certa do que isso signifique realmente. Teríamos que analisar a
metodologia usada nas entrevistas para avaliar se está mesmo ocorrendo algo de
significativo. Entretanto, faz sentido que um grupo que sofre clara
discriminação nos EUA, como os latinos, desenvolvam certa sensibilidade em
relação a outros grupos alvo de preconceito. E também é preciso lembrar que há
uma significativa população lésbica, gay, bi ou trans entre os latinos. Mesmo o
mais conservador deles está sujeito a conviver na família com um primo
travesti, uma irmã lésbica ou um filho gay. É algo que faz muita diferença. [...]
A Constituição
brasileira de 1988 é tida como uma Carta essencialmente social, ao passo que a
americana dá bastante ênfase aos direitos individuais. Quanto isso influencia
na forma como essas questões são percebidas pela sociedade?
Tudo
depende de como se vê o coletivo. Se os direitos coletivos são descritos como
os que dizem respeito às comunidades e valores tradicionais, então se abre a
brecha para que aqueles não se estendam a grupos que não compartilhem esses
valores tradicionais. Mas, se entendermos que os direitos coletivos devam ser
generalizados a todos, uma vez que todos têm direito à representação na
sociedade democrática, vamos encontrar um discurso mais afinado: o de que os
grupos de gays, lésbicas, trans, etc. não briguem por direitos individuais, mas
por igualdade e justiça para todos, independentemente da sexualidade ou do
gênero. Aí, é conveniente o olhar universal. Parece claro, como disse, que a
forma como a liberdade de expressão é entendida nos EUA é diferente do
entendimento que há na Europa e na América do Sul. Mas, se nos EUA ela goza de
certa prioridade, isso tampouco significa que não haja debate sobre seus
limites, sobre em que momento o free speech se torna o discurso do ódio e da
injúria.[...]
A sra. definiu sua
famosa Queer Theory como uma argumentação contra 'o que a identidade de uma
lésbica ou de um gay devam ser'. Não é justamente a afirmação de sua identidade
que esses grupos buscam?
Apenas
quero dizer que, ainda que a afirmação da identidade sexual ou de gênero seja
importante, também temos que nos questionar sobre como tais termos são
definidos e a partir de que momento se transformam em outros tipos de rótulo.
Uma pessoa não quer se libertar da homofobia para se ver aprisionada de novo em
outra ideia restrita de identidade. Para mim, a Queer designa uma forma de
aliança em que a sexualidade não seja nem prescrita nem policiada - a menos que
machuque alguém.
Em outra ocasião, a
sra. escreveu que 'não nos tornamos humanos ainda' e que 'a categoria do humano
é um processo de vir a ser'. Diante do mundo hoje, diria que estamos a caminho
ou nos afastando desse objetivo?
Vivemos
tempos de risco, e não estou segura de que sequer saibamos o que é ser humano.
Parece-me claro que os humanos não são humanos fora de um mundo social mais
amplo, e também não o são quando se definem exageradamente em oposição à sua
natureza animal. Não podem ser humanos, ainda, se não reconhecem a dependência
do meio ambiente em que vivem, por comida, abrigo, sobrevivência. Temos muito a
aprender sobre todas essas relações que nos fazem humanos. São elas que ampliam
nossos limites, e são essenciais não só para a sobrevivência como para nosso
bem-estar.
A resposta à última questão é excelente, ensejando uma reflexão profunda sobre os temas abordados.
ResponderExcluirNão conhecia o entrevistador, nem a entrevistada, mas recomendo.