Como Helder Câmara realizou o Pacto das Catacumbas em Recife no ano 1968
Eduardo
Hoornaert
Desde
antes do Concílio, Helder Câmara, naquele tempo bispo auxiliar do Rio de
Janeiro, se destaca como homem de visão. Num questionário enviado a todos os
bispos pelo Vaticano, a maioria dos bispos afirmam que os grandes problemas do
mundo são: comunismo, ateísmo, secularismo, protestantismo, espiritismo etc.
Helder pensa de forma totalmente diferente: o grande problema e que dois terços
da humanidade vivem na pobreza, tem problemas endêmicos de fome, doença,
habitação. É preciso dizer com todas as palavras que Helder Câmara é um dos
pouquíssimos homens do Concílio que têm ‘visão’, como escreveu o teólogo
Congar. As Cartas Circulares de Helder começam com as seguintes palavras: ‘O
Concílio vai ser dificílimo’. Isso diz tudo.
O que
fica muito claro, para quem lê as Cartas que Helder escreve a cada dia, ao
longo do Concílio, é que ele mostra aversão às pompas romanas. Para ele, o
Vaticano é uma corte papal, a mais impressionante corte existente em todo o
mundo ocidental. Há imagens alucinantes espalhadas pelas páginas das Cartas
Circulares. O bispo vê o Imperador Constantino (do século IV) atravessar a
Basílica de São Pedro num cavalo em pleno galope. Numa outra visão, o papa joga
a Tiara no Tibre e anda enlouquecido pelas ruas de Roma, onde se encontra com prostitutas
e ladrões. Ele se imagina que o papa cede o Vaticano a uma instituição (da
UNESCO?), especializada em administrar museus e vai morar num apartamento em
Roma. Dispensa embaixadores no Vaticano e núncios do Vaticano. Dispensa o
Vaticano. Assim ele pode empreender com rapidez a reforma da Cúria papal romana
(a corte papal).
Aconselho
vivamente a leitura dessas Circulares, pois cada uma traz alguma surpresa.
Quando menos se espera aparece uma frase absolutamente genial, nos mais
diversos sentidos. Assim, ele escreve: com cardeais é ‘humanamente impossível’
trabalhar (I, 3, 268). Num outro tópico, escreve que citar textos de Isaías é
muito bonito, mas que o povo não entende palavras como Sião, Israel etc. e que
é preciso dizer as coisas com palavras que as pessoas entendem. Faíscas de um
espírito excepcional que aparecem aqui e acolá nas Cartas.
Depois de
voltar de Roma em final de 1965, Helder ainda reside no Palácio Episcopal São
José dos Manguinhos, na Avenida Rui Barbosa, durante mais de dois anos.
Trata-se de um solar construído pelo Visconde de Loyo, comerciante recifense de
sucesso, no século XIX (Dom Pedro II distribuía à torta e direita títulos de
Condes, Barões, Viscondes, para melhor controlar seu imenso império), com
muitas mangueiras. Há, ao lado, a Igreja São José dos Manguinhos, como costuma
haver em solares de gente rica. No início do século XX, a Arquidiocese adquire
o solar e o transforma em residência episcopal. Tudo no tradicional estilo
eclesiástico.
Helder
foi descobrindo que a Arquidiocese possuía, mais em direção ao centro histórico
da cidade, a Igreja de Nossa Senhora da Assunção das Fronteiras, no limite de
uma estância concedida pelo rei de Portugal em 1656 ao militar mestiço Henrique
Dias, combatente ao lado dos portugueses na guerra contra os holandeses que
resultou na Restauração Pernambucana. O imperador Pedro II visitou o local em
1859 e lhe deu o título de Imperial Capela. A Arquidiocese de Olinda e Recife
recuperou essa capela depois da guerra das confrarias. Mas, em 1968, tudo isso
é passado. A Igreja das Fronteiras serve de capela para uma casa de religiosas
e tem, como todas as capelas, uma sacristia e um ponto de apoio para o capelão.
O cenário
contraste entre Manguinhos e Fronteiras lembra a oposição entre o Vaticano e as
Catacumbas. Helder não hesita: é preciso deixar o ‘latifúndio’ Manguinhos par
ir morar ‘na minha casa’, nas Fronteiras.
A leitura
da Cartas Circulares do ano 1968 foi uma surpresa para mim. Que riqueza, quanta
novidade!
As
Circulares do ano 1968 se encontram nos Tomos 1 e 2 do Volume IV. É o ano da
mudança do Palácio dos Manguinhos à sacristia das Fronteiras. Uma mudança que
não só tem consequências para a vida pessoal do bispo, mas também para a vida
da Arquidiocese.
Em termos
pessoais, Helder dispensa o carro particular, o secretário particular, a comida
pronta na hora certa, a cozinheira de Manguinhos. Doravante, seu cardápio é
precário. De manhã, as Irmãs das Fronteiras lhe preparam um café. Ao meio dia,
ele almoça no Colégio das Damas, na Avenida Rui Barbosa, e de noite ele se vira
sozinho. Seu quarto de dormir comporta uma cama e uma cadeira. Ele comenta:
‘moro com dois mortos e um Vivo (Jesus no sacrário) ’. Há uma salinha que para
receber as pessoas e escrever suas Circulares pela noite. Ela comporta uma mesa
redonda, três cadeiras e, no fundo, uma rede cearense estendida. Nas paredes
algumas lembranças de viagens e alguns textos lapidares.
1. Na
Circular de 5 a 6 de janeiro 1968 (n. 344, Helder se mostra entusiasta com a
mudança (p. 295), planejada para o dia de São Sebastião (21/1), o que não
acontece por falta da remoção de dois sepulcros e arranjos atrás do altar (p.
317). Ele sabe que essa mudança acarreta uma remodelação das funções de alguns
prédios da Arquidiocese. O sonho do bispo é que tanto Manguinhos (que ele chama
‘latifúndio’, ‘casa demais para um bispinho só’, veja p. 383) como o antigo
Palácio episcopal de Olinda sejam doravante ‘Casas do Povo’. Camaragibe, ‘o
porta-aviões’ (p. 312), seria vendido fundo financeiro, assim criado, serviria
‘em boa parte para um esquema de casas populares’.
Mas seus
auxiliares não têm voos tão altos. Na realidade, os planos de mudança do bispo
acarretam uma complexa acomodação de prédios. Há também, ao mesmo tempo, a
decisão que toca a vida dos seminaristas. Doravante, o programa é que eles
vivam em ‘pequenas comunidades no meio do povo’. Tudo isso mexe com Manguinhos,
Palácio episcopal colonial em Olinda, Seminário de Olinda, o prédio na Rua do
Jiriquiti, Camaragibe. Enquanto os auxiliares ponderam as reais possibilidades,
Helder continua falando em Casas do Povo. Ele sonha em doar casas para abrigar
pessoas sem teto. Por que manter duas salas de trono no ‘latifúndio’
Manguinhos, enquanto na varanda dormem pessoas sem teto? O bispo fica triste
quanto seus auxiliares se veem na obrigação de arranjar um vigia para controlar
a vida dos que dormem na varanda, ele tem medo que esse vigia chegue a usar
violência e talvez chegue a atirar contra alguém.
2. Dez
dias depois, na Circular 348 (16-17/1/68) se escreve que a equipe central do
seminário já mora ‘nos altos’ (primeiro andar) da Casa do Povo, com alguns
professores, enquanto o Seminário colonial de Olinda vira Centro de Treinamento
de Líderes para o Nordeste II (modelo Eugênio Sales). O que complica tudo é que
Roma não gosta da ideia de seminaristas vivendo ‘no meio do povo’. O Cardeal
Garrone escreve uma carta nesse sentido e manda Monsenhor Pavarello para
Recife, para verificar a situação ‘in loco’. Esse Monsenhor fica bastante tempo
e colhe muitas informações.
3. Na
noite do 13 a 14 de março (Circular 375) vem a notícia definitiva: quando o dia
amanhecer, vou me mudar para as Fronteiras. Isso é um ‘sinal completo’: ‘vender
Manguinhos e investir o dinheiro em favor da promoção de filhos de Deus
subhumanizados pela miséria’. Na mesma Carta aparece uma primeira descrição da
nova morada com avaliação daquilo que o bispo gosta mais: portas sem trancas;
janelas sem grades; entradinha pelo jardim; ‘em obras’; a cama de madeira (a de
Manguinhos era em bronze dourado); a companhia, na hora de dormir, de dois
mortos (sepulcros) e um Vivo (sacrário).
4. No dia
14 de março de 1968, às 19 horas, Helder entra na nova casa (p.40). Daqui por
diante, seus percursos diários mudam: de Fronteiras a Manguinhos, de Manguinhos
às Damas (na mesma Avenida, para o almoço), das Damas retorno aos Manguinhos e
no final do expediente de Manguinhos às Fronteiras. Se transporte depende de
táxis, mas na realidade não há taxista que queira cobrar a corrida (p. 52).
Essa informação se repete em 22-23/5/68.
5. Quinze
dias depois, na Circular de 27-28/3/ 68 (IV, 1, 59) vem uma nova prova de que o
bispo gosta na nova casa: no quarto de dormir, a janelinha com ferrolho, que
indica onde fica o Sacrário (onde mora o Vivo), a seteira em cima, que ‘deixa à
vista uma nesga do céu, como uma estrelinha linda’ (mais tarde, ele me aponta
essa seteira e diz: ‘como é fácil lançar uma bomba por aí’), a janela sem
grades que dá para outro jardim, por trás da sala de estar, a mesa redonda,
onde ele pode escrever suas circulares durante as vigílias, as rosas no jardim,
as três garrafas térmicas (chá quente, refresco gelado, água) que as irmãs
deixam prontas, assim como potes de vidro como com biscoitos etc. Enfim, Helder
gosta da nova morada. Isso fica muito claro.
Em tudo
isso, o bispo segue à risca o primeiro compromisso do Pacto das Catacumbas: ‘procuraremos
viver segundo o modo ordinário de nosso povo no que toca a casa, comida, meios
de locomoção, e a tudo que disso se desprende (Mt 5, 3; 6, 33s; 8-20)’. Tenho
por mim que ele é um dos que seguem com maior fidelidade dos compromissos
assumidos no Pacto das Catacumbas, embora faltem dados comparativos para
comprovar essa opinião. Só possuímos informações parciais (de Antônio Fragoso,
José Maria Pires, Valdir Calheiros, etc.).
1
50 ANOS DO PACTO DAS CATACUMBAS DA IGREJA SERVA E POBRE
I.
Basílica subterrânea da Catacumba de Domitila |
1) Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue. Cf. Mt 5,3; 6,33s; 8,20.
2) Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6. Nem ouro nem prata.
O assinante: D. Antônio Fragoso |
4) Cada vez que for possível, confiaremos a gestão financeira e material em nossa diocese a uma comissão de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico, em mira a sermos menos administradores do que pastores e apóstolos. Cf. Mt 10,8; At. 6,1-7.
5) Recusamos ser chamados, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor...). Preferimos ser chamados com o nome evangélico de Padre. Cf. Mt 20,25-28; 23,6-11; Jo 13,12-15.
6) No nosso comportamento, nas nossas relações sociais, evitaremos aquilo que pode parecer conferir privilégios, prioridades ou mesmo uma preferência qualquer aos ricos e aos poderosos (ex.: banquetes oferecidos ou aceitos, classes nos serviços religiosos). Cf. Lc 13,12-14; 1Cor 9,14-19.
7) Do mesmo modo, evitaremos incentivar ou lisonjear a vaidade de quem quer que seja, com vistas a recompensar ou a solicitar dádivas, ou por qualquer outra razão. Convidaremos nossos fiéis a considerarem as suas dádivas como uma participação normal no culto, no apostolado e na ação social. Cf. Mt 6,2-4; Lc 15,9-13; 2Cor 12,4.
O inspirador: Paul Gauthier |
8) Daremos tudo o que for necessário de nosso tempo, reflexão, coração, meios, etc., ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos, sem que isso prejudique as outras pessoas e grupos da diocese. Ampararemos os leigos, religiosos, diáconos ou sacerdotes que o Senhor chama a evangelizarem os pobres e os operários compartilhando a vida operária e o trabalho. Cf. Lc 4,18s; Mc 6,4; Mt 11,4s; At 18,3s; 20,33-35; 1Cor 4,12 e 9,1-27.
9) Cônscios das exigências da justiça e da caridade, e das suas relações mútuas, procuraremos transformar as obras de "beneficência" em obras sociais baseadas na caridade e na justiça, que levam em conta todos e todas as exigências, como um humilde serviço dos organismos públicos competentes. Cf. Mt 25,31-46; Lc 13,12-14 e 33s.
10) Poremos tudo em obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos nossos serviços públicos decidam e ponham em prática as leis, as estruturas e as instituições sociais necessárias à justiça, à igualdade e ao desenvolvimento harmônico e total do homem todo em todos os homens, e, por aí, ao advento de uma outra ordem social, nova, digna dos filhos do homem e dos filhos de Deus. Cf. At. 2,44s; 4,32-35; 5,4; 2Cor 8 e 9 inteiros; 1Tim 5, 16.
11) Achando a colegialidade dos bispos sua realização a mais evangélica na assunção do encargo comum das massas humanas em estado de miséria física, cultural e moral - dois terços da humanidade - comprometemo-nos: - a participarmos, conforme nossos meios, dos investimentos urgentes dos episcopados das nações pobres; - a requerermos juntos ao plano dos organismos internacionais, mas testemunhando o Evangelho, como o fez o Papa Paulo VI na ONU, a adoção de estruturas econômicas e culturais que não mais fabriquem nações proletárias num mundo cada vez mais rico, mas sim permitam às massas pobres saírem de sua miséria.
12) Comprometemo-nos a partilhar, na caridade pastoral, nossa vida com nossos irmãos em Cristo, sacerdotes, religiosos e leigos, para que nosso ministério constitua um verdadeiro serviço; assim: - esforçar-nos-emos para "revisar nossa vida" com eles; - suscitaremos colaboradores para serem mais uns animadores segundo o espírito, do que uns chefes segundo o mundo; - procuraremos ser o mais humanamente presentes, acolhedores...; - mostrar-nos-emos abertos a todos, seja qual for a sua religião. Cf. Mc 8,34s; At 6,1-7; 1Tim 3,8-10.
O realizador: D. Helder Câmara |
13) Tornados às nossas dioceses respectivas, daremos a conhecer aos nossos diocesanos a nossa resolução, rogando-lhes ajudar-nos por sua compreensão, seu concurso e suas preces.
AJUDE-NOS DEUS A SERMOS FIÉIS.
[No dia 16.11.1965 cerca de 40 Padres Conciliares celebraram nas catacumbas de Domitila uma Eucaristia pedindo fidelidade ao Espírito de Jesus. Após essa celebração alguns deles firmaram o "Pacto das Catacumbas". Ver in: KLOPPENBURG, Boaventura (org.). Concílio Vaticano II. Vol. V, Quarta Sessão. Petrópolis: Vozes, 1966, 526-528.]
II.
Pacto sem impacto?
Do Pacto das Catacumbas ao Pacto dos Areópagos
Foram figuras marginais do episcopado que deram vida e sobrevida ao Pacto das Catacumbas. Poucos dos 13 compromissos marcaram a vida da Igreja pós-conciliar com profundidade.
Vejamos o que os assinantes prometeram:
- “Não possuiremos nem imóveis, nem móveis, nem conta em banco (...).
Catacumba de Domitila |
- Daremos tudo o que for necessário de nosso tempo, reflexão, coração, meios, etc. ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos (...).
- Ampararemos os leigos, religiosos, diáconos ou sacerdotes que o Senhor chama a evangelizarem os pobres e os operários compartilhando a vida operária e o trabalho”.
- Comprometemo-nos a partilhar, na caridade pastoral, nossa vida com nossos irmãos em Cristo, sacerdotes, religiosos e leigos (...) e nos esforçaremos para `revisar nossa vida´ com eles, e procuraremos ser o mais humanamente presentes, acolhedores (...)”.
Tivemos e temos bons bispos nas margens da Igreja, às vezes, porque o Espírito Santo provocou um cochilo na hora da escolha pelos respectivos Núncios Apostólicos. No conjunto, o Pacto das Catacumbas ficou sem impacto na vida eclesial. Permanece horizonte até hoje, horizonte válido que pode ser retomado.
O “Pacto” não era um pacto das Igrejas locais, mas um pacto solitário de alguns bispos que não conseguiram socializar suas propostas entre seus colegas. A Igreja de Roma fez tudo para impedir essa socialização e assunção nas Igrejas locais.
O “Pacto” era um pacto intra eclesial. O mundo não se interessa pelas discussões identitárias da Igreja católica. Hoje, o mundo globalizado precisa consensos mais amplos sobre questões da ecologia, da energia, do transporte, da comunicação e da “economia de compartilhamento” (Rifkin). A “Encíclica Laudato Si”, do Papa Francisco, “sobre o cuidado da casa comum”, aponta na direção certa.
Sociedade do "Bem Viver" |
O Sínodo: Amor nos Tempos da Transição
Missão
na construção da Família
O tema da 14ª Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos versava sobre “A vocação
e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo”. Quem não se lembra
do lema da CF/1994: “A família como vai” e o seu objetivo geral: “Redescobrir os valores da família:
Lugar de encontro, espaço de vivência humana, ponto de partida de um mundo mais
humano e de acordo com o Plano de Deus. E a mesma CF se propôs “colaborar na
criação de condições sociais e políticas objetivas para que a família possa
realizar sua missão. Finalmente, pondo em prática o mandamento do amor
fraterno, a CF quer nos ajudar a olhar com confiança para um amanhã novo da
família, que já pode ser descortinado”.
Como
mudou o espírito da época nesses 20 anos! A vulnerabilidade da família está
muito mais exposta, as respostas são mescladas com maiores incertezas e ninguém
diria que “a nova família já pode ser descortinada”. A tentativa de conseguir
através do Sínodo uma ligação realista com o mundo, como ele é, parece ter
fracassada. Escuta-se vozes resignadas das bases eclesiais: “Está
tudo como dantes no quartel d’Abrantes”.
Contudo, não faltam elementos positivos no
conjunto do evento sinodal. As discussões na aula sinodal, de 4 a 25 de outubro
de 2015, eram consequência de uma nova metodologia de total liberdade no uso da
palavra. Liberdade exige responsabilidade a serviço da causa maior e não para
enfraquecer pessoas ou setores. Nem sempre a liberdade se apresentou com sua
irmã gêmea, a responsabilidade, como mostrou o vazamento da “Carta dos 13 cardeais”
ao papa, insatisfeitos com os encaminhamentos pré-sinodais, a invenção de um
tumor cerebral de Francisco, e a publicação de documentos secretos sobre a
administração financeira do Vaticano – tudo arrolado com a clara intenção de
enfraquecer a autoridade do papa. A Santa Sé mostrou a improcedência das
reclamações metodológicas, desmentiu o suposto “tumor” e investigou a
deslealdade dos “dignitários” indignos.
O
desafio do sínodo foi a desconexão entre a realidade sociocultural, na qual o
matrimônio hoje é vivido, e a doutrina definida no decorrer de uma história de
dois milênios. Até há pouco tempo, o esforço da Igreja concentrou-se, sem
sucesso, na mudança dessa realidade. Hoje sabe-se, que essa mudança necessita
também a reconstrução da doutrina que emergiu para responder a desafios de
outros tempos. Nesse ponto havia grandes divergências entre os 265
participantes sinodais. Diante das questões trazidas das bases através de um
questionário e o resultado contido no Documento Final, as aproximações entre
pastoralistas e canonistas foram pequenas. Mudanças doutrinárias, por muito
tempo cristalizadas, são mudanças culturais de longo prazo. Sob a liderança
firme do Papa Francisco, o sínodo mostrou o horizonte de um caminho que a
Igreja tem pela frente para um reencontro com a realidade vivida pelos casais
de hoje.
Discernimento,
sinodalidade e descentralização
O papa saiu dessas tribulações de cabeça
erguida e o avanço nas discussões sinodais pode ser resumido com três fios
condutores entrelaçados: discernimento, sinodalidade e descentralização. O
discernimento é uma herança da espiritualidade inaciana, que o papa trouxe de
sua formação jesuítica. A sinodalidade representa uma retomada da proposta
original do Vaticano II que queria o sínodo como uma espécie de concílio
permanente e como complementação do poder solitário do primado. A
descentralização é uma consequência de ambos, do discernimento e da
sinodalidade, e corresponde ao princípio da subsidiariedade que valoriza os
conhecimentos e respeita as decisões da Igreja local através das diferentes
Conferências Episcopais e das comunidades que estruturam o povo de Deus.
Vaticano II em chave de
misericórdia
Para fundamentar o andamento do sínodo nos
tempos de transição, o Papa Francisco proclamou, no dia 11 de abril de 2015, um
Ano Santo da Misericórdia (cf. Misericordiae
vultus/MV), 3), que se inicia no dia 8 de dezembro, na solenidade da
Imaculada Conceição, festa da misericórdia divina. Na data se comemora o
cinquentenário da conclusão do Vaticano II: “Derrubadas as muralhas que, por
demasiado tempo tinham encerrado a Igreja numa cidadela privilegiada, chegara o
tempo de anunciar o Evangelho de maneira nova” (MV 4). Quem não escutaria nesta
memória da vocação do Concílio um suspiro de Francisco e um imperativo para que
o Sínodo sobre a Família derrube também as muralhas que impedem avanços na
pastoral familiar! O Ano Jubilar terminará na festa de Cristo Rei do Universo,
em 20 de novembro de 2016. E o papa resume: “Quanto desejo que os anos futuros
sejam permeados de misericórdia para ir ao encontro de todas as pessoas” (MV
5). E Francisco acrescenta: a misericórdia divina é “de modo algum, um sinal de
fraqueza, mas antes a qualidade da onipotência de Deus” (MV 6).
O
significado do Sínodo
Por ocasião do cinquentenário da instituição
do Sínodo dos Bispos, no dia 17 de outubro, o Papa Francisco sublinhou a
importância do sínodo “que constitui um dos legados mais preciosos da última
sessão conciliar” (Discurso,
17.10.2015). O sínodo devia refletir o espírito e o método do Vaticano II que
consiste em caminhar juntos – “leigos, pastores, Bispo de Roma” (ibid.). O papa confirma a infalibilidade
do Povo de Deus no ato da fé (cf; LG 10 e 12; EG 119): “Cada um dos batizados,
independente da própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé, é um
sujeito ativo de evangelização, e seria inapropriado pensar num esquema de
evangelização realizado por agentes qualificados enquanto o resto do povo fiel
seria apenas receptor das suas ações” (EG 120). O faro da fé (sensus fidei) “impede uma rígida
separação entre ecclesia docens e ecclesia discens, já que também o
rebanho possui a sua `intuição´ para discernir as novas estradas que o Senhor
revela à Igreja” (Discurso, 17.10.).
“Uma Igreja sinodal é uma Igreja da escuta
[...], onde cada um tem algo a aprender [...]; e todos à escuta do Espírito
Santo” (ibid.). E Francisco menciona
um princípio da Igreja do primeiro milênio: “O que se refere a todos, de todos
deve ser tratado” (ibid.). A
sinodalidade é uma dimensão constitutiva da Igreja que oferece a chave de
interpretação para a compreensão do próprio ministério hierárquico: “Ninguém
pode ser elevado acima dos outros. Pelo contrário, [...] como numa pirâmide
invertida, o vértice encontra-se abaixo da base”. Autoridade é “autoridade do
serviço, o único poder é o poder da cruz” (ibid.).
O Documento Final
Depois de três semanas de reuniões, no último
dia do Sínodo, 24 de outubro, foi apresentado o Documento final do evento que
tem 94 parágrafos, todos aprovados, pela maioria necessária de dois terços. No
caso dos divorciados recasados, o documento propõe que cada bispo analise
individualmente, caso a caso, para decidir se autoriza a comunhão integral a um
católico divorciado que voltou a se casar e dá sinais de conversão (cf. § 84).
O texto insiste que os divorciados “deveriam evitar toda e qualquer ocasião de
escândalo”, o que é pastoralmente plausível. Em todas essas questões,
“discernimento” e “consciência” adulta se tornaram palavras-chave. A Igreja tem
o dever de acompanhar a família ferida.
A partir de uma tradição do Direito Canônico,
focada na procriação e não no amor, a homossexualidade continua como tabu. O
texto afirma a posição de que os homossexuais não podem ser discriminados, mas
que não há qualquer fundamento para o casamento de pessoas do mesmo sexo. O
Sínodo não chamou de amor a afetividade vivida entre pessoas do mesmo sexo, mas
admite que, entre as pessoas unidas pelo casamento civil e nas coabitações não
sacramentais, pode haver "aqueles sinais de amor que propriamente
correspondem ao reflexo do amor de Deus". Pastoralmente precisaria se
pensar em formas, ritos e bênçãos com o valor de um sacramental sem serem
sacramento para que a afirmação da não discriminação seja não apenas uma
palavra vazia. O sínodo não dá esse passo. Na rejeição da “ideologia do
gênero”, que é uma filosofia que considera os dois sexos, o masculino e o
feminino, construções culturais e sociais, havia um consenso geral na aula do
Sínodo.
Discurso programático no
final do Sínodo
Em seu discurso final, no dia 24 de outubro,
o papa agradeceu os trabalhos feitos, criticou a “hermenêutica conspiradora” e
“ a perspectiva fechada”, e lembrou princípios que ele considera importantes
para o futuro da Igreja:
- não repetir o que é indiscutível ou que já
foi dito;
- abordar os desafios da família sob a luz da
fé, sem esconder a cabeça na areia;
- compreender a família e o matrimônio entre
homem e mulher, fundado sobre a unidade e a indissolubilidade;
- afirmar que a Igreja é Igreja dos pobres em
espírito e dos pecadores à procura do perdão e não apenas dos justos e dos
santos;
- evitar uma linguagem arcaica ou
simplesmente incompreensível;
- não defender a letra, mas as pessoas, nem
as fórmulas, mas a gratuidade do amor de Deus e do seu perdão;
- não aplicar condenações, mas proclamar a
misericórdia de Deus.
Enfim, conclui o papa, experimentamos “a ação
do Espírito Santo, que é o verdadeiro protagonista do Sínodo”. Assumir a
sinodalidade significa “caminhar juntos” com toda a humanidade (namorados,
noivos, casados, divorciados e homoafetivos – com santos e pecadores), porque
todos os seres humanos são amados por Deus, todos são resgatados por Jesus
Cristo e iluminados pelo Espírito.
Paulo
Suess,
[versão
abreviada do texto apresentado no Comina – 30.10.2015]
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