O FIM E A VOLTA. Fernando Lugo três em um: Bispo, Presidente paraguaio, Senador


 
Roberto Simon

Pouco após o Congresso paraguaio lhe cassar o mandato, na noite de 22 de junho de 2012, Fernando Lugo irrompeu salão adentro no Palácio de los López, a colonial sede da presidência em Assunção, afoito, quase amassando o discurso que trazia entre os dedos. A sua espera, havia uma fileira de jornalistas desesperados por respostas. Aceitaria ele o impeachment relâmpago, decidido em 24 horas (seus assessores falavam em "golpe parlamentar")? Se curvaria o presidente ante de uma decisão que já havia qualificado de ilegítima e inaceitável? De um lado da sala, câmeras e gravadores em riste, empurra-empurra entre repórteres; de outro, um Lugo irrequieto, cercado pelos aliados que lhe restaram e de costas para um enorme quadro de Solano López. Segundos de silêncio e o ex-bispo começa o sermão, agora com um tom inesperadamente calmo.
 

"Eu, na condição de ex-presidente…", soltou, em uma de suas primeiras frases, enquanto tirava os olhos do papel e erguia a cabeça. A tolha estava jogada. Jornalistas que se preparavam para um discurso grandiloquente de resistência , algo como "quero ver quem me tira daqui", ou "peço apoio dos militares legalistas", ou então um clássico brado de "patria o muerte!" deixaram os ombros caírem. Terminado o discurso, Lugo saiu pisando firme. Seu vulto desapareceu do palácio presidencial para nunca mais voltar. Passaria a viver trancado em sua casa, em uma rua calma de Lambaré, ao lado de Assunção.
 
Um de seus assessores mais próximos desabafou naquela noite fria: "Lugo não tem vocação para Salvador Allende" (continua a atormentar a pergunta, não feita, sobre quem seria, no caso, o Pinochet paraguaio). Mas é essa característica, estar sempre um passo atrás das disputas político-partidárias na hora das grandes decisões, o traço mais marcante da personalidade do teólogo da libertação, nascido há 61 anos na pobre San Solano. Para os que o admiram, Lugo, na Igreja e na política, sempre foi um conciliador, avesso à voracidade e ao jogo sujo e corrupto que travam os políticos do Paraguai. Para os que o detestam, ele é omisso, incompetente, um lobo chavista em pele de cordeiro paraguaio.

Na eleição da semana passada, dez meses após o impeachment, pouco se ouviu falar de Lugo no Paraguai, embora ele fosse candidato ao Senado. Antes aberto aos jornalistas, o ex-bispo silenciou a pregação na reta final da campanha (por duas vezes, deu o cano neste repórter). No entanto, as duas maiores novidades trazidas pela votação do último domingo tocam diretamente o ex-presidente.

A primeira: ficou claro que sua vitória em 2008 jamais representou o fim da hegemonia de colorados e liberais, que desde o fim do século 19 se revezam no poder entre eleições e golpes. Venceu Horacio Cartes, que, apesar de não ser um novato na política e no Partido Colorado, ganhou por estar amparado na imagem e no sistema de uma legenda que, por 61 anos, até 2008, foi dona do Paraguai. A segunda mudança: Lugo está de volta, não no colonial Palácio de los López, mas no Senado, um prédio bolo de noiva cinza e vinho, de gosto altamente duvidoso, doado por Taiwan. Cabeça de chapa, ele conseguiu fazer a esquerda se tornar a terceira força no Congresso, com nove assentos no Senado, quatro a menos que os liberais, segundo resultados preliminares.

"Nem mesmo quando Lugo foi presidente tivemos uma bancada progressista desse tamanho", lembra Mario Ferreiro, candidato de esquerda que terminou em terceiro nas eleições presidenciais. Em uma entrevista ao Estado um mês após sua destituição, Lugo admitira: "Nunca tive nenhum apoio no Congresso".

Como será o ex-bispo e ex-presidente na versão Senado é uma incógnita. O Poder Legislativo de Assunção é, digamos, peculiar. Do narcotráfico aos casos de execuções, cinco minutos de conversa com um insider da política paraguaia sobre o Congresso do país equivale a toda a trilogia da família Corleone. Conciliador radical ou lobo chavista, Lugo estará imerso em um novo e inóspito ecossistema. Um outro colaborador do ex-presidente afirma ser falsa a ideia de que ele não sabe tomar decisões. O principal exemplo, argumenta, ocorreu no dia 4 de maio de 2009 em Brasília, em um encontro com o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em meio a uma intensa campanha paraguaia para renegociar o preço da energia de Itaipu vendida ao Brasil. Técnicos dos dois lados não se entendiam, o clima pesava. Lugo e Lula se trancaram por uma hora em uma sala e concordaram em resolver no gogó, entre eles, o enrosco. O ex-bispo pararia de fazer campanha na imprensa, o ex-sindicalista reveria a posição brasileira. Dois meses depois, Lugo anunciava que o Brasil triplicaria as compensações ao Paraguai em Itaipu, seu maior triunfo no poder.

Na presidência, Lugo também decidiu reconhecer três filhos após exames de DNA atestarem sua pouca castidade enquanto ainda era da Igreja - algo que, no conservador Paraguai, custou-lhe caro. Na semana das eleições, a Justiça paraguaia anunciou os resultados do exame de uma outra mulher que dizia ter engravidado do ex-bispo. Deu negativo. "O problema não é tomar decisões, mas tentar mudar o imutável", afirma o ex-assessor. "O Senado paraguaio é uma arena romana com leões que devoram cristãos", completa, com o sorriso de ironia nos lábios. No Palácio de los López, Lugo fracassou. Agora, de Lambaré, lutará novamente contra o imutável Paraguai, à frente da maior bancada de esquerda na história.
[fonte: Suplemento Aliás do Estadão, 27 de abril de 2013]

 

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