Com
7 mil páginas, 'Relatório Figueiredo' relata mortes e maus-tratos. Material
será analisado pela Comissão Nacional da Verdade.
Sobrevivente Cinta-Larga |
Relatório
elaborado no fim da década de 1960 que apontava irregularidades existentes no
antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) – órgão que antecedeu a Fundação
Nacional do Índio (Funai) – e que denunciava atrocidades cometidas contra povos
indígenas em vários estados do país, foi encontrado no Rio de Janeiro, após
décadas desaparecido.
Conhecido
como “Relatório Figueiredo”, foi preparado pelo então procurador Jader de
Figueiredo Correia a pedido do extinto Ministério do Interior, a partir de
1967, e apresentado um ano depois. Sua divulgação causou grande repercussão
nacional e internacional devido ao seu conteúdo.
Com
quase 7 mil páginas, o documento denuncia atividades ilícitas praticadas por
funcionários do SPI, órgão federal fundado em 1910, como atos de corrupção, e
expõe casos de maus tratos a indígenas, prisões, assassinatos e escravidão.
Para
elaborá-lo, Figueiredo e sua equipe de técnicos percorreram estados como Mato
Grosso, Rondônia, Pará, Goiás, além de áreas das regiões Sudeste e Sul.
De
acordo com Carlos Augusto da Rocha Freire, doutor em antropologia pelo Museu
Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador da
história do indigenismo há 30 anos, o calhamaço histórico foi encontrado no
começo do ano, por acaso, pelo vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais de
São Paulo e coordenador do Projeto Armazém Memória, Marcelo Zelic.
Freire
conta que o material, que ele está estudando e ajudando a recuperar para
inserir no acervo do Museu do Índio, no Rio, ficou muito tempo perdido em
Brasília. Esquecido após sua divulgação, ocorrida no fim de 1968, que culminou
na demissão e abertura de investigações contra funcionários do SPI, o documento
ficou na capital federal até 2008.
Distribuição
de brindes aos índios kuikuro pela equipe do Serviço de Proteção ao Índio
(Foto: Divulgação/Museu do Índio). |
Naquele
ano, 150 caixas foram transferidas com este documento e outros para o arquivo
do Museu do Índio. Assim que descobertas, as páginas deterioradas pelo tempo
foram digitalizadas pela equipe da instituição.
Análise pela Comissão
da Verdade
Tortura do Índio |
“É
um relatório complexo, porque ao mesmo tempo em que ele relata muitas violações
aos povos indígenas, foi elaborado em plena ditadura militar. Ao mesmo tempo em
que ele tem muitos relatos importantes de violações contra indígenas, ele
também tem acusações contra funcionários que estavam protegendo indígenas, mas
que podiam estar contra o interesse, digamos, de garimpeiros ou latifundiários
que eram amigos do governo. É um relatório que vai nos dar muito trabalho”,
afirmou na terça-feira (23), a psicanalista Maria Rita Kehl, integrante da CNV.
Ela acrescentou que a comissão ainda não teve tempo para analisar
detalhadamente o conteúdo do documento.
Mortes no interior do
Brasil
O
antropólogo Freire aponta que o relatório resultou de investigações iniciadas
em 1963 contra o quadro de funcionários do SPI. A pedido do então ministro do
Interior, general Afonso Augusto de Albuquerque Lima, o procurador preparou o
texto com relatos de situações graves, em uma época considerada difícil para os
índios no país.
O
antropólogo explica que o avanço econômico entre as décadas de 1950 e 1960
sobre regiões como a Amazônia, com a construção de rodovias que cortavam terras
indígenas, levaram conflitos para o interior do Brasil. "Povos isolados
eram colonizados devido ao interesse econômico. Interesses privados financiavam
formas de afastar os índios", afirmou.
Como
consequência disso, ele cita, por exemplo, mortes em massa de índios
cintas-largas em Mato Grosso, no ano de 1963, que foram apontadas no relatório
e chamadas de "Massacre do Paralelo 11". De acordo com o documento,
na época, fazendeiros invadiram aldeias, mataram índios com comida envenenada,
dinamites, espalharam doenças ou roupas contaminadas para afetar a população
que vivia em diversas aldeias.
Nos anos 1960, os cintas-largas, assim como
vários outros grupos indígenas, foram vítimas da abertura da fronteira agrícola
e das políticas de incentivo à exploração dos recursos naturais, que visavam
principalmente a ocupação da região Norte do país. Nessa época, esses povos
eram tidos como empecilhos ao desenvolvimento, o que motivou o extermínio de
comunidades indígenas inteiras. Após o Massacre do Paralelo 11 (1963), como ficou conhecida a destruição de aldeias cinta-largas em Mato Grosso, a mando do seringalista Antônio Junqueira, o estado brasileiro foi, pela primeira vez, denunciado internacionalmente por genocídio.
Em
um dos casos mais emblemáticos, segundo Freire, uma índia foi amarrada em uma
árvore de cabeça para baixo e seu corpo foi partido ao meio. “Centenas morreram
no massacre. O trabalho de Figueiredo recuperou os fatos da época para mostrar
o que ocorria com os índios”, explica Freire.
Cadeias indígenas
O
antropólogo afirma também que o relatório narra invasões a aldeias no Pantanal
por fazendeiros, más-condições sanitárias de crianças índigenas que viviam no
Rio Grande do Sul e uma “explosão” de cadeias clandestinas voltadas a esta
população.
Segundo
ele, o documento aponta que muitos dos postos indígenas do SPI foram adaptados
e transformados em cadeias para índios que, para os administradores locais,
mereciam ser punidos. “Eles faziam com que os índios ficassem aprisionados em
celas montadas nos escritórios”, afirma.
Cinta-Larga expulsam garimpeiros |
Havia,
inclusive, “centrais” implantadas nas cidades paulistas de Tupã e Braúna,
chamadas respectivamente de Vanuíre e Icatú, que recebiam “índios infratores”
de diversas partes do país. “Isso existia desde a década de 1930. Os indígenas
eram recolhidos por terem praticado algum delito. Mas a consequência desse
aprisionamento deve ter sido muito pouco documentada”, explica.
"Tudo
que se escrevia sobre os índios naquele momento demonstrava que essa população
se encaminhava para a extinção. Isso só é revertido na década de 1990, depois
de um longo processo, com aumento demográfico pelo país de indígenas. Há uma
recuperação", finaliza Freire.
[fonte: G1, São Paulo, 27.04.2013]
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