A morte de um líder carismático cria
sempre um vazio de incerteza, no qual os seus seguidores tentam garantir a
continuidade das suas políticas através da sua institucionalização. Max Weber
chamava isto de “rotinização do carisma”. Mas a partir do momento em que entram
na rotina, as políticas evoluem em direções que são sempre difíceis de prever.
Para estimar o que pode acontecer no futuro imediato, é preciso começar
evidentemente com uma apreciação das realizações de Chávez. É isso que Immanuel
Wallerstein faz neste artigo.
Immanuel
Wallerstein
Depois da morte do presidente Hugo
Chávez, a imprensa mundial e a Internet encheram-se de declarações sobre a sua
obra, que foram dos infindáveis elogios às infindáveis denúncias, com certo
número de pessoas fazendo elogios ou denúncias de forma mais cautelosa ou
limitada. A única coisa que todos parecem estar de acordo é que Hugo Chávez era
um líder carismático.
O que é um líder carismático? É
alguém que tem uma personalidade muito forte, uma visão política relativamente
clara e é capaz de grande energia e persistência na prossecução dos seus
objetivos. Líderes carismáticos atraem grande apoio, em primeiro lugar no seu
próprio país. Ao mesmo tempo, os vários aspetos da sua persona que atraem apoio
são os mesmos que mobilizam profunda oposição às suas políticas. Tudo isto foi
certamente verdadeiro no caso de Chávez.
A lista dos líderes carismáticos na
história do mundo moderno não é tão grande. Pense em Napoleão e De Gaulle na
França, Lincoln e F.D. Roosevelt nos Estados Unidos, Pedro o Grande e Lênin na
Rússia, Gandhi na Índia, Mao Zedong na China, Mandela na África do Sul. E,
evidentemente, Simon Bolívar. No próprio momento em que olhamos uma lista como
esta, compreendemos várias coisas. Todas estas pessoas foram líderes
controversos durante as suas vidas. A avaliação dos seus méritos e falhas
mudaram constantemente no tempo histórico. Nunca parecem desaparecer numa
perspectiva histórica. E, finalmente, as suas políticas não tinham qualquer
identidade entre eles.
A morte de um líder carismático cria
sempre um vazio de incerteza, no qual os seus seguidores tentam garantir a
continuidade das suas políticas através da sua institucionalização. Max Weber
chamava isto de “rotinização do carisma”. Mas a partir do momento em que entram
na rotina, as políticas evoluem em direções que são sempre difíceis de prever.
Para estimar o que pode acontecer no futuro imediato, é preciso começar
evidentemente com uma apreciação das realizações de Chávez. Mas é preciso
também avaliar as relações internacionais de forças e os contextos culturais da
geopolítica mais ampla nos quais a Venezuela e a América Latina se encontram
hoje.
As suas realizações parecem claras.
Ele usou a enorme riqueza petrolífera da Venezuela para melhorar
significativamente as condições de vida das camadas mais pobres, expandindo o
seu acesso às instalações de saúde e à educação, e assim reduzindo a brecha
entre os ricos e os pobres de forma bastante notável. Além disso, usou a enorme
riqueza do petróleo para subsidiar as exportações petrolíferas para um grande
número de países, especialmente nas Caraíabas, o que lhes permitiu sobreviver
minimamente.
Para além disso, contribuiu
substancialmente para construir instituições latino-americanas autônomas – não
só a Alba (a aliança dos países bolivarianos), mas também a Unasul (a
confederação de todos os estados na América do Sul), a Celac (todos os Estados
das Américas exceto os Estados Unidos e o Canadá), e o Mercosul (a estrutura
econômica confederal que inclui tanto o Brasil quanto a Argentina), ao qual ele
aderiu. Não estava sozinho nestes esforços, mas desempenhou um papel
particularmente dinâmico. Um papel pelo qual o ex-presidente Lula, do Brasil,
sempre o elogiou. O grande número de presidentes de outros países que foram ao
seu funeral (cerca de 34), especialmente da América Latina, comprovam a sua
popularidade. Ao procurar criar estruturas latino-americanas fortes, ele estava
evidentemente a desempenhar um papel anti-imperialista, essencialmente
anti-Estados Unidos, e por isso não era apreciado em Washington.
Deveríamos notar em particular a
apreciação positiva de Chávez pelo presidente conservador da vizinha Colômbia.
Isto por causa do papel importante e muito positivo de Chávez como mediador
entre o governo colombiano e a sua inimiga de longa data, a guerrilha das Farc.
Chávez era o único possível mediador, aceitável por ambos os lados, e estava à
procura de uma solução política para pôr fim ao estado de guerra.
Os seus detratores acusam-no de
promover um regime corrupto, um regime autoritário e um regime economicamente
incompetente. Não há dúvida de que houve corrupção. Sempre existe em qualquer
regime onde haja dinheiro abundante. Mas quando penso nos escândalos de
corrupção nos últimos 50 anos nos Estados Unidos ou em França ou na Alemanha,
onde há ainda mais dinheiro, não posso levar este argumento muito a sério.
O regime foi autoritário?
Certamente. É o que acontece com um líder carismático. Mas, mais uma vez,
comparado com outros líderes autoritários, Chávez foi bastante contido. Não
houve purgas sangrentas ou campos de concentração. Em vez disso, houve
eleições, que a maioria dos observadores internacionais considerou as melhores
possíveis (pensem de novo nos Estados Unidos, ou na Itália ou...), e Chávez
ganhou 14 ou 15. Nem deveríamos esquecer que ele teve de combater uma séria
tentativa de golpe apoiada pelos Estados Unidos, a qual superou com
dificuldades. Sobreviveu devido ao apoio popular e ao apoio dentro do Exército.
Quanto à incompetência econômica, é
verdade que ele cometeu erros. E é verdade que a atual receita do governo
venezuelano é menor do que já tinha sido. Mas lembrem-se de que estamos numa
depressão mundial. E quase todos os governos do mundo estão a enfrentar dilemas
financeiros e apelos à austeridade. Não é de todo óbvio que um governo nas mãos
da sua oposição tivesse feito melhor em termos de otimizar a receita econômica.
O que é certo é que um governo nas mãos da sua oposição teria feito menos para
redistribuir a riqueza internamente às camadas mais pobres.
A única área em que ele não brilhou
foi no seu constante apoio à política econômica extrativista, ignorando os
protestos dos povos indígenas pelos danos ecológicos e pelos seus direitos ao
controlo autônomo das suas localizações. Mas compartilha esta falta com todos
os governos nas Américas, sejam de esquerda ou de direita.
O que vai provavelmente acontecer
agora? De momento, tanto os chavistas quanto a oposição cerraram fileiras, pelo
menos para as próximas eleições presidenciais. A maioria dos analistas parecem
concordar que o sucessor escolhido por Chávez, Nicolás Maduro, vai vencer. A
questão interessante é saber o que acontecerá depois, acima de tudo em termos
de alinhamentos internos. Nenhum campo é isento de divisões internas. Suspeito
que haverá alguma redistribuição das cartas, com deserções em ambos os lados.
Em alguns anos, poderemos ver uma diferente relação de forças.
Que vai então acontecer ao
“socialismo do século 21” – a visão que Chávez tinha dos objetivos que é
necessário obter na Venezuela, na América Latina e em todo o mundo? Há duas
palavras nesta visão. Uma é “socialismo”. Chávez procurou resgatar este termo
do opróbio no qual tinha caído devido aos múltiplos fracassos tanto nos países
do Comunismo realmente existente quanto da social-democracia pós-marxista. O
outro termo é “século 21”. Tratava-se de um claro repúdio de Chávez em relação
ao socialismo da Terceira e da Segunda Internacionais, e um apelo a que a
estratégia fosse repensada.
Netas duas tarefas, Chávez estava
quase sozinho. Mas fez soar um toque de clarim. Para mim, este esforço é parte
da tarefa maior que todos enfrentaremos nesta crise estrutural do capitalismo
histórico e a bifurcação de duas possíveis resoluções do caos no qual caiu o
nosso sistema-mundo. Precisamos debater qual é a natureza do mundo melhor que
nós, ou alguns de nós, procuramos. Se não podemos ser mais claros sobre o que
queremos, não é provável que ganhemos a batalha com os que procuram criar um
sistema não capitalista que, no entanto, reproduz os piores aspetos do
capitalismo: hierarquia, exploração e polarização.
[Immanuel Wallerstein (1930) é um
sociólogo conhecido pela sua contribuição fundadora para a teoria do sistema-mundo.]
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