Dom Roque Paloschi: “Qual é o pão da vida, que hoje oferecemos aos povos indígenas?”


 
D. Roque Paloschi
O bispo de Roraima (RR), dom Roque Paloschi, celebrou a Santa Missa da 51ª Assembleia Geral, nesta terça-feira, 16 de abril. O tema da celebração foi a luta para assegurar os direitos dos povos indígenas. Durante a homilia dom Roque destacou três palavras em homenagem aos povos indígenas: gratidão, compromisso e memória. [fonte: www.cnbb.org.br ].

 Veja a íntegra da homilia:

 Estimados Irmãos no episcopado, Romeiros aqui presentes no Santuário, irmãos e irmãs que nos acompanham pelos meios de comunicação.

 Ao celebrar esta Eucaristia na Semana dos Povos Indígenas, como comemoração da causa indígena que é uma causa do Reino de Deus, destaco, brevemente, três palavras: gratidão, memória e compromisso.

1. Gratidão

Gratidão, aos povos indígenas pelas lições de vida que ainda hoje nos dão. No Texto-Base da CF 2002, cujo lema era “Por uma terra sem males”, descrevemos amplamente as lições de espiritualidade de uma sociedade alternativa que recebemos dos índios: “Os povos indígenas sabem que não podem sobreviver como povos reproduzindo estruturas individualistas, consumistas e competitivas” (CF 2002, n. 198). Por isso a terra é considerada dom de Deus para a comunidade. Em seus ritos e costumes de socialização, os povos indígenas dedicam muita atenção comunitária a cada criança que nasce na aldeia e que é educada para viver em comunidade.

Gratidão aos nossos catequistas, animadores de nossas Comunidades Indígenas, o grande amor a Palavra de Deus, vida de eucaristia, mesmo que muitas de nossas comunidades indígenas de Roraima recebem a visita do missionário uma ou duas vezes por ano. O amor e à Igreja, ao papa, aos missionários e o desejo de caminhar na comunhão.

Gratidão aos missionários e missionárias, em sua maioria articulados com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e seu trabalho profético. Ao CIMI coube, nos últimos 40 anos, a tarefa de conduzir a causa dos povos indígenas do labirinto colonial à planície pós-conciliar e da invisibilidade política e da tutela colonial ao confronto com o poder político.

Quero também aproveitar esse momento de gratidão para dizer o nosso muito obrigado ao querido dom Erwin Krautler, presidente do CIMI. Apesar de ser muito atacado e ignorado pelos governantes, recebeu, faz algumas semanas, da Universidade Federal do Pará (UFPA) o título de doutor honoris causa pelo seu trabalho profético em defesa da Justiça. Em defesa dos povos indígenas e de todos os prejudicados pela construção da barragem de Belo Monte. Para a população local, Belo Monte deixou de ser um “monte belo” para tornar-se um monte calvário.

Convivendo com as comunidades indígenas, a Igreja missionária tomou consciência dos valores e práticas vivas do Evangelho, presentes em cada cultura. E quanto mais engajados nas lutas, mais os missionários reconhecem as sementes do Verbo presentes na vida desses povos e em sua causa (cf. CF 2002, n. 36). Essa causa alimenta em cada um de nós uma grande esperança que outro mundo é possível, uma mística missionária militante que nos permite conservar nossa vida, como vinho jovem e rebelde, em odres novos. O que nós chamamos de “utopia do Reino”, os povos andinos chamam de bem viver. Os Guarani nos falam da “Terra sem males”.

2. Memória da realidade vivida pelos povos indígenas

Desde a história colonial até fins dos anos 60, ações de caráter integracionista marcaram a presença da Igreja. Mas a História está repleta de missionários que romperam os limites do seu tempo, assumiram a defesa dos Índios e sofreram perseguições. A sociedade brasileira nasceu sob a égide da violência contra os povos indígenas (cf. Plano Pastoral, CIMI, nº 2ss).

A causa indígena engloba a memória do nosso passado, de uma evangelização em condições estruturais de colonização, contudo, também uma causa de sobrevivência, causa de vida,  causa do Reino de Deus. Hoje vivemos num país que se diz cristão, mas é uma das sociedades mais desiguais do mundo.

Há muitas forças em nosso país que querem, a todo custo, ampliar o acesso, o controle e a exploração dos territórios indígenas,  dos quilombolas, dos pescadores artesanais, dos camponeses, de preservação ambiental, dentre outros.

Para tanto, declararam guerra e buscam desconstruir os direitos histórica e arduamente conquistados pelos povos indígenas. Esses grupos político-econômicos têm usado diversos instrumentos legislativos e administrativos no ataque que fazem aos povos e seus direitos.

A Portaria 303/2012, tem causado o aumento dos índices de violência contra os povos indígenas no Brasil. Chamamos a atenção, em especial, para o caso particular vivido pelos Guarani Kaiowá. Cerca de 45 mil Guarani Kaiowá vivem confinados em pequenas reservas de terra ou em acampamentos em beiras de estradas. Não bastasse isso, muitos desses acampamentos têm sido covarde e violentamente atacados à bala por jagunços de fazendeiros. Jesus continua sendo assassinado em tantos mártires anônimos dos pobres da terra. Este grito, que sobe aos céus, não pode passar por nós sem deixar sua marca e nos comprometer.

A solução imprescindível e urgente para esta triste realidade é de responsabilidade do governo brasileiro. E a solução passa, necessariamente, pelo reconhecimento, demarcação e retirada dos invasores das terras tradicionais Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul. E disso posso dar testemunho. No caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, a demarcação e a retirada dos invasores, embora não tenha resolvido automaticamente todos os problemas, sem sombra de dúvida, resolveu a situação mais grave de violências, tais como ataques armados e assassinatos, que eram frequentemente cometidos contra indígenas que lá vivem.

3. Compromisso à luz da Palavra de Deus

O Evangelho de hoje (Jo 6,30-35) nos fala dessa vida, do pão “que desce do céu e dá vida ao mundo”, do pão da vida que recebemos e que se multiplica na medida em que o distribuímos.

Qual é o pão que fizemos descer para os povos indígenas, descer do céu das promessas e dos princípios da manutenção das nossas boas relações com os governantes? Esses, por sua vez, nos tentam cooptar com “verbos” e “verbas”, com “prêmios” e “promessas” sem que tenhamos sempre uma clara percepção disso.

Onde está o pão que distribuímos aos povos indígenas, pão de justiça e verdade? Onde foi que derramamos lágrimas e sangue por sua causa? Não foi que, muitas vezes, “terceirizamos” ao presidente do CIMI e seu pessoal o grito profético de Estêvão: “Homens de cabeça dura, insensíveis e incircuncisos de coração e ouvido” (At 7,52).

Os povos indígenas fazem parte de um Brasil e de uma América Latina que têm um projeto de vida diferente do projeto político da maioria dos governantes deste continente. O índice do bem viver dos povos indígenas não depende da construção de hidrelétricas, mas da construção do bem-estar de todos; exige o reconhecimento do outro e a redistribuição de bens.

Como Igreja, temos uma longa caminhada com esses povos. Particularmente, da minha diocese posso testemunhar que também depois da conquista da terra (como em Israel!) os problemas continuam em torno de dois eixos: sobreviver com um modelo alternativo de agricultura em condições economicamente modestas ou copiar o agronegócio e perder o próprio das culturas indígenas. Perder seus valores que, muitas vezes, a nossa sociedade já perdeu: o espírito de partilha, a posse (e não a propriedade) da terra com um significado profundamente religioso, a terra como dom de Deus e não como objeto do mercado, o trabalho comunitário e o zelo pela natureza. O nosso modelo econômico que procura invadir os territórios indígenas ameaça todos esses valores.

Para nós, a questão indígena se coloca como uma questão da humanidade: seremos capazes de contentar-nos com uma nova modéstia material que permite a sobrevivência de todos com igualdade e dignidade ou continuaremos com o modelo de crescimento que cria grandes desigualdades e se torna cada vez mais inviável?

O Evangelho de hoje, que nos falou do “pão de Deus” que “desce do céu e dá vida ao mundo”, nos lembra da saída da escravidão dos que seguiram Moisés, do maná que os alimentou na caminhada pelo deserto e da passagem de Israel para a Terra Prometida. Nossa missão é ser presença em todas essas situações: na escravidão dos Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, na aridez da seca do Nordeste, na terra conquistada de Roraima e nas grandes cidades onde hoje vive quase a metade dos índios no Brasil que perderam seus territórios.

Em seu discurso final, na última sessão do Concílio (7.12.1965), o papa Paulo VI oferece uma chave de leitura para o Vaticano II que considero um indicativo para toda a nossa pastoral ao lado dos povos indígenas. Disse o papa ao despedir-se dos padres conciliares: “A ideia de serviço ocupou o lugar central” do Vaticano II. “Desejamos notar que a religião do nosso Concílio foi, antes de mais nada, a caridade”.

Acolhamos, novamente, como em Santo Domingo prometemos, a inculturação como “imperativo do seguimento de Jesus” (DSD 13), como “descida” e “entrega”, como “encarnação” e “oblação”. “caridade e justiça” através do serviço da nossa presença atenta junto aos povos indígenas. “Toda evangelização há de ser, portanto, inculturação do Evangelho”, nos diz o Documento de Santo Domingo (ibid.). E essa inculturação, que é seguimento de Jesus, “se realiza no projeto de cada povo, fortalecendo sua identidade e libertando-o dos poderes da morte” (DSD 13). Os poderes da morte rodeiam as aldeias indígenas.

Qual é o pão da vida, que hoje oferecemos aos povos indígenas?
 


Igreja Samaritana
Eu responderia: é gratuidade, coragem profética, lucidez e perseverança como diaconia pastoral! Na reciprocidade com os povos indígenas, no dar e receber, nos iniciamos numa “Igreja samaritana” (DAp 26), numa vida despojada e pascal. Como advogados da justiça dos povos indígenas defendemos não somente a causa dos outros, defendemos a nossa própria causa e o futuro do planeta Terra (cf. DAp 395).

O nosso papa Francisco nos convoca para irmos às periferias do mundo. Os povos indígenas esperam da nossa Igreja, a mesma firmeza de Estevão, sonham com uma Igreja pobre e servidora, defensora da vida e da justiça de todos e da obra da Criação.

Que Maria Santíssima, a mãe da esperança, venerada sob o título de Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira dos povos indígenas, e de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, nos recorde diariamente: Fazei tudo o que Ele vos disser. Amém.

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