O
filme Elefante Branco traz um enredo atual, chocante e com cenas
desconcertantes, embora plausíveis no ambiente urbano, carcomido pela fome, os
ditames da religião, o poder das elites — que julgam poder comprar tudo — e a
afetividade explosiva.
O
comentário é de Antonio Carlos Ribeiro, jornalista,
e publicada pelo sítios Novos Diálogos e UNISINOS.
O
enredo do filme começa com o padre Julián (Ricardo Darín) sendo submetido a uma
tomografia. Depois, o público é levado à Amazônia sem lei, especialmente às
populações ribeirinhas, que vivem tão desprotegidas quanto os pobres na Idade
Média — entregues a toda sorte de riscos — e na qual o padre Nicolás (Jérémie
Renier) escapa de um massacre, ao ver uma família ser exterminada por não
apontar para que lado ele fugiu. Neste lugar, Julián vem buscar o egresso do
seminário para outra tarefa, igualmente perigosa.
Julián
e Nicolás voltam a trabalhar juntos, agora na Villa Virgen, uma favela da periferia
de Buenos Aires. O perfil é o comum da América Latina: pobreza econômica
transformada em miséria moral, refino-preparo-tráfico de drogas, sacerdotes que
se dedicam ao atendimento dos esquecidos de todos, bispo distante, insensível
ao sofrimento humano e agarrado às futilidades eclesiásticas e com autoridade
formal sobre quem vive a experiência cotidiana de estar entre Deus e o diabo. E
a polícia, o braço armado do Estado para manter a ordem.
Em
Elefante Blanco, o lado mais cruel da tragédia é também destes bons moços, de
uniformes garbosos à tarefa cotidiana de serviçais do Estado, mediada pelos
gritos dos comandantes. Com código rígido, formação militar e sem margem para
lidar sequer com os conflitos familiares e os pessoais, sem falar dos esquemas
de corrupção da corporação e da relação de dependência do poder estatal e suas
políticas para a sociedade.
O
trabalho com altos níveis de estresse é o que sobra para os dois clérigos e a
assistente social que põem suas vidas em risco, para continuar do lado dos
miseráveis, agarrados a uma mística forte que lhes permite conviver com os
poderes do Estado, da Igreja, da Polícia e do tráfico — que nas ‘villas’ tem
uma lógica clara e letal — apenas para proteger e minorar o sofrimento dos
pobres, em meio às contradições.
A
atuação de Ricardo Darín encarna este perfil de sacerdote, da mística nascida
da ortopráxis à pureza ética que resguarda o rosto humano da religião nos
espaços limítrofes. Ele está impecável, das tarefas cotidianas ao modo como
lida com a saúde, da capacidade de lidar com o bispo, o governo e os
narcotraficantes, o mesmo lugar existencial de onde vem sua autoridade para
posicionar-se frente a eles. A cena em que ‘absolve’ o irmão de sacerdócio e a
que revela a vontade de mandar todos ‘a la mierda’, são paradigmáticas do
perfil da missão.
A
relação afetiva entre o sacerdote e a assistente social é outro marco do
momento. A paixão romântica irrompe em meio ao caos político, econômico e
religioso. É um grito de desespero e a luta para respirar, em meio à asfixia
existencial. Assim como em O amor nos tempos do cólera, de García Márquez, é
avassaladora, transgressiva, corajosa, como só acontecem em tempos de
calamidades e crise civilizacional agudas. O número de sacerdotes e militantes
de todas as frentes de luta que a ela chegaram é incontável, entre os que
voltaram ao redil, os que fugiram para salvar vidas e os que se ‘perderam’ ao
perder seu grande amor.
Villa
Virgen é uma ‘comunidade’, de cerca de 30 mil pessoas, próxima ao projeto do
maior hospital da América Latina, lançado por um governo socialista e
abandonado desde 1937. O fato em si dá o retrato das elites latino-americanas:
endinheiradas pelo controle do Estado, com pouca formação intelectual, muito
autoritarismo e o recurso fácil à violência, regados à vaidade tola. O espaço
em que os padres trabalham para transformar o prédio abandonado em moradias
dignas é o mesmo que lembra o ‘deserto do real’, de Zizek.
As
partes complementares do enredo são os demais padres e voluntários que atuam com
e a partir dessa tríade, a célula mais comum dos trabalhos pastorais
desenvolvidos nas grandes cidades da América Sul, surgida nos anos 1970 a
partir da mística dos pobres como os amados preferenciais de Deus, a repressão
do consórcio elites-ditaduras, e da Igreja, pendente para o lado conservador
nos centros de maior poder político e econômico, a partir da lógica atemporal
que assegura a sobrevivência histórica. Ou de confronto, onde o bispo era
pastor.
A
capital argentina agrega ao enredo comum das grandes cidades da América do Sul,
a pecha dos assassinatos de massa, legitimados por leis humanas e divinas, ‘de
exceção’, sem disposição de poupar sequer os ‘seus’, já que as vantagens do
atrelamento ao Estado superavam em muito o pecuniário e o institucional. Os
feriados religiosos e as bênçãos episcopais à repressão mais brutal, já
enfrentadas por todos os países da região, exceto o Brasil, testemunham o
dilema teológico de defender o rebanho ou assegurar a presença da instituição
religiosa.
A
película dirigida por Trapero é como os vitrais das Catedrais, projetados para
narrar a história da salvação, ocultando o conflito das relações nem sempre
claras, entre as paixões da fé popular, da instituição eclesial e do Estado
dominado pelas elites. Nestas, destacam-se homens e mulheres que deram à sua
vida o sentido das causas que abraçaram, pelas quais viveram e morreram. Ao
serem guindados de líderes a mártires, enriqueceram a mística combativa deste
‘continente sofrido e maravilhoso’, como escreveu Gutiérrez.
Nenhum comentário:
Postar um comentário