Em seu gabinete, Ayres Britto
explica os princípios que regem a vida meditativa: "Quando você é
contemplativo, você contempla essa água, o copo antes de beber. O toque da sua
mão no cristal. Estou acordado, como quem está atento. Mas estou descontraído,
como quem está dormindo"
VALDO
CRUZ FELIPE SELIGMAN/F.d.S.P.
Eis a entrevista:
Folha - Quando foi sua iniciação no campo da meditação?
Carlos Ayres Britto - De uns 20
anos para cá, tanto a meditação quanto o cardápio vegetariano. Eu tinha em
torno de 50 anos, um pouco antes, até.
Como o sr. se converteu?
Eu recebi influências positivas,
de, por exemplo, [Jiddu] Krishnamurti [1895-1986, guru indiano], Osho
[Rajneesh, 1931-90, místico indiano], Eva Pierrakos [1915-79, médium
austríaca], Eckhart Tolle [pseudônimo de Urich Leonard Tolle, escritor
espiritualista nascido em 1948], autor do livro "O Poder do Agora", e
a pessoa que mais me influenciou, Heráclito [de Éfeso, c. 540-c. 480 a.C.,
pré-socrático que elegeu o fogo e a permanente transformação como princípio da
ordem universal].
Depois, de uns 12 anos para cá,
comecei a me interessar por física quântica, e ela me pareceu uma confirmação
de tudo o que os espiritualistas afirmam. A física quântica, sobretudo os
escritos de Dannah Zohar [especializada em aconselhamento espiritual e
profissional]. Venho lendo os livros dessa mulher, uma americana que escreveu
uma trilogia maravilhosa: "O Ser Quântico", "A Sociedade
Quântica" e "QS - Inteligência Espiritual". Também passei a me
interessar muito por neurociência.
O sr. tinha religião?
Católica, só que, de 20 anos para
cá, me tornei um espiritualista.
Houve um momento de transformação?
Foi meio gradativo. Fui abolindo
carne, depois abolindo frango, depois aboli peixe.
Há países que reconhecem em suas leis os direitos dos animais de forma
mais abrangente. Podemos chegar a isso?
É possível que haja uma
consciência maior. Pelo menos nas técnicas de abate, mais humanizadas, isso já
se observa hoje em dia. Por exemplo, vocês sabem que os frangos são criados
sobre um tratamento hormonal intenso e sem possibilidade de dormir? Uma luz
acesa em cima dele para ele ficar acordado, o frango de granja? Isso é de uma
violência...
O sr. condena a forma como o gado é abatido?
Condeno. Tudo. Vou dizer uma
coisa, é uma observação minha, não falei em lugar nenhum. Sou contemplativo.
Não confundir atenção com contemplação. Atenção é um foco, uma centralização do
sentido tão intensa, que o mais das vezes resvala para a tensão. A tensão está
muito próxima da atenção. Eu sou um contemplativo, porque na contemplação você
concilia atenção e descontração. Isso é fato. Quando você é contemplativo, você
contempla essa água, o copo antes de beber. O toque da sua mão no cristal. Eu
estou acordado, como quem está atento. Mas estou descontraído, como quem está
dormindo.
Então, contemplação é isso, é a
conciliação entre a atenção e a distração. É impressionante. É um descarrego,
um êxtase. Como vivo em estado contemplativo, eu observo coisas interessantíssimas.
Uma dessas coisas é que nenhum pássaro carnívoro canta. Nunca vi ninguém dizer
isso.
Os pássaros carnívoros, corujas,
águias, falcões, ou crocitam ou piam, ou grasnam, nenhum canta, como se a
natureza dissesse: só tem direito de cantar se for herbívoro. E todos os
animais herbívoros, mesmo os mastodontes, elefantes, por exemplo, nenhum
agride. Eles não são ativos nem pró-ativos na agressão, são reativos. No olhar
de um herbívoro não tem chispa, não tem estresse. Todos os carnívoros são estressados
no olhar, todos.
Assim se dá com o ser humano?
Assim se dá com o ser humano.
Por que houve tamanha tensão entre o relator Joaquim Barbosa e o
revisor Ricardo Lewandowski?
[Se responder] eu vou dar uma de
psicólogo, prefiro ficar na objetividade. Eu quero deixar claro: fui
presidente, mantive a taxa de cordialidade.
O ego prevaleceu no julgamento?
Não subscrevo suas palavras, de
que foi o ego que deu as cartas.
Não digo que pautou, mas que se manifestou em vários momentos.
Os ministros do Supremo são seres
humanos, suscetíveis a influências, a percalços existenciais. Ora sabemos
administrar esses percalços com o consciente emocional no ponto, ora ele baixa
um pouco de patamar.
Mas não houve impasse, não houve
pane. Tudo foi administrável. E não precisei, em nenhum momento, suspender a
sessão para ver os ânimos refluírem. Quanto à questão de ego, ele prejudica a
atuação não só de ministros do Supremo, mas de todo ser humano.
Quando Sartre disse que o inferno
é o outro, ele quis dizer que o outro, com sua diversidade, a sua
mundividência, seu peculiar modo de conceber e praticar a vida, afeta o nosso
ego. Então, podemos traduzir as palavras dele como "o inferno é
outro" ou como "o inferno é o ego". Tenho dito para mim mesmo
que, sem o eclipse do ego, ninguém se ilumina.
Como o sr. definiria a atuação do Ministério Público e a do relator
Joaquim Barbosa no julgamento?
Acho que a história vai registrar
que [Roberto] Gurgel e Joaquim Barbosa foram médicos-legistas na autópsia dos
fatos delituosos. Eles tiveram merecimento extraordinário para reconstituir com
fidedignidade os fatos em sua materialidade. E o "link" entre esses
fatos e respectivos autores e partícipes.
Eu só vejo por esse prisma
técnico. Joaquim Barbosa, transido de dor [nas costas], um homem
"baleado", em linguagem coloquial, a tantos meses, conseguiu levar a
termo um processo com quase 600 mil páginas, 600 testemunhas, 40 réus no ponto
de partida, sete crimes teoricamente graves e imbricados no mais das vezes.
O sr. chegou a pensar em suspender as sessões?
Pensei, houve um momento em que
pensei.
Chegamos a ter ofensas pessoais.
Mas no limite palatável.
Mas nunca houve um julgamento com clima tão tenso, às vezes com atritos
tão fortes.
É que esse julgamento é
peculiaríssimo. Quando dizem que o Supremo está tomando decisões novas, eu digo
que os fatos é que são novos, o imbricamento é que novo, o gigantismo da causa
é que é novo, é inédito. O Supremo Tribunal Federal está produzindo decisões
afeiçoadas ao ineditismo da causa.
Advogados reclamam da introdução
de novos conceitos como a teoria do domínio do fato [segundo a qual autor de um
crime não é só quem o executa, mas também quem detém o poder de decidir e
planejar a sua realização].
Assim como o dançarino, que se
disponibiliza de corpo e alma para a dança -chega o momento em que se funde com
ela, e você já não sabe quem é o dançarino e quem é a dança, é uma coisa só-, o
intérprete do dispositivo jurídico pode, também, numa relação de profunda
identidade e empatia, se fundir com esse dispositivo. Aí você compõe uma
unidade. Você é um com o dispositivo, e o dispositivo é um com você.
E isso não é invencionice, decola
de um juízo de Einstein, que em 1905, físico quântico que era, cunhou uma
expressão célebre: "efeito do observador". Ele percebeu que o
observador desencadeava reações no objeto observado.
Ele disse que o sujeito
cognoscente, em alguma medida, faz o objeto cognoscível, a depender do grau da
intensidade interacional entre eles. Claro que quando você joga teoria quântica
para a teoria jurídica, se expõe a uma crítica mordaz. O sujeito diz: "Mas
isso não é ciência jurídica".
O julgamento também é inédito pelo desfecho, com políticos condenados à
prisão em regime fechado?
Sabe por que está sendo inédito?
Porque vocês esquecem, a sociedade esquece, [mas] nós, ministros, não
esquecemos. Isso vem num crescendo, só que agora é no campo penal. No campo
científico, liberamos o uso das células tronco embrionárias. No dos costumes, decidimos
em prol da homoafetividade, da interrupção da gravidez de feto anencéfalo, no
ético cortamos na própria carne proibindo o nepotismo no Judiciário.
No campo político, afirmamos a
Lei da Ficha Limpa. Isso é um crescendo, o Supremo vem tomando decisões que
infletem sobre a cultura do povo brasileiro. E agora chegou o campo penal.
O Brasil muda?
Não se pode dizer que muda,
sinaliza mudanças. Há um vislumbre de mudanças. Ninguém pode garantir nada.
Agora, há uma sinalização. Mas a decisão não tem nada a ver com reverência à
opinião pública, com submissão à opinião pública, com uma postura de
cortejamento à opinião pública.
Os políticos terão mais cuidado, com o risco de irem para a prisão?
Se respondesse sim, estaria
fazendo um corte abrupto, radical, de que essa decisão é, sim, um divisor de
águas. Não quero ser categórico. Eu digo que essa decisão do Supremo vem num
crescendo, que agora alcança o plano criminal. Sinaliza uma nova época, de mais
qualidade na vida política.
Eu não posso dizer que a impunidade
está com os dias contados, eu estaria dourando a pílula, sendo ufanista, não
posso dizer isso. Agora, eu diria que a impunidade sofreu um duro revés, um
tranco, por efeito dessa decisão.
Este é o julgamento de um partido?
Na minha opinião, não tem nada a
ver com julgamento de um partido. Não é o julgamento do PT, são réus, que
alguns ocuparam cargos de direção no PT.
O sr. foi um dos fundadores do PT?
Sabe que não fui? Fazia
conferências em aulas e congressos, em seminários, e advogava para coletividades.
Só entrei mesmo no PT acho que em 1988, não fui fundador. Passei lá quase 18
anos.
O sr. costuma dizer que é página virada, mas, olhando no que o PT se
transformou ao chegar ao poder, isso de certa forma o entristece?
É interessante. A resposta não
seria "me entristece". Vou dizer por quê. Eu vejo a vida por um
prisma muito do dinamismo, heracliticamente, meu filósofo preferido.
Veja o que aconteceu: qual dos
dois partidos que encarnaram a resistência ao regime de exceção [1964-85]? São,
hoje, o PSDB e o PT. Esses dois, que encarnaram a resistência, foram premiados,
chegaram ao poder. O primeiro, por intermédio de Fernando Henrique. O que
aconteceu com esse partido, que teve origem no MDB, no PMDB? Foi perdendo um
pouquinho do elã, do entusiasmo na sua militância de esquerda.
Aí, a sociedade disse: está na
hora do outro. Qual foi o outro que encarnou a resistência? O PT. Então, vejo
por um prisma do exaurimento de fases. A fase ideológica do PSDB se exauriu, a
do PT também se exauriu. Não de todo, não podemos ser injustos, porque o PT
continua com quadros muito bons. Um desses quadros chegou a escrever um artigo
a favor do Supremo, o Tarso Genro [governador do RS]. Vejo isso como parte de
um processo histórico previsível.
Os dois partidos se contaminaram?
Não vejo por esse prisma
negativista. Eles perderam o que os gregos chamam de "Deus dentro da
gente", entusiasmo. Aquele ímpeto depurador das instituições, aquela ânsia
de voltar à democracia. Com o retorno à democracia, você chega à conclusão: foi
mais fácil alcançar o objetivo do que preservá-lo. Às vezes você conquista uma
mulher dos seus sonhos e não sabe manter o amor dela. Isso é um processo
histórico.
Alguns ministros me disseram, reservadamente, terem recebido
reclamações, cobranças, de que, indicados pelo ex-presidente Lula, acabaram
traindo-o. O sr. acha que traiu Lula, que o indicou?
Em nenhum momento me senti assim.
Ninguém nunca me cobrou, menos ainda o presidente Lula, ele nunca se acercou de
mim, se aproximou de mim para cobrar, fazer queixa. Até porque, vamos convir,
cargo de ministro não é cargo de confiança. Não é.
Você não pode ser grato a quem
nomeia com a toga. O modo de você, pelo contrário, de honrar a indicação é
sendo independente, é transformar os pré-requisitos de investidura no cargo em
requisitos de desempenho no cargo. Fui nomeado a partir de dois pré-requisitos,
reputação ilibada e notável saber jurídico. Eu transformei isso, como me cabia,
em requisitos de desempenho. Então, eu honrei minha nomeação.
Dos dez ministros no julgamento, sete foram nomeados por Lula ou por
Dilma. Essa independência conta a favor deles? Os presidentes petistas erraram
nas nomeações?
Isso honra os nomeantes. A nossa
postura técnica, independente, isenta, desassombrada, é uma postura que honra
os nomeantes. Não só os nomeados.
Apesar de membros do PT afirmarem que o julgamento foi político?
Sim, a despeito disso. Isso faz
parte da liberdade de expressão. Esse tipo de queixa eu recebo como pura
liberdade de expressão, aceito sem maiores queixas.
Como foram os três meses de julgamento? Sua rotina mudou?
Não mudou em nada. Continuei
meditando todos os dias, tocando violão quase todos os dias. Eu apenas diminuí
muito, o que foi ruim para mim, minhas saídas de casa para me deleitar com
espetáculos públicos, teatro, música.
O vegetarianismo é um passo para a iluminação?
Não chegaria a isso, não. Agora,
tudo tem uma lógica elementar. É claro que não vou explicar tudo pela lógica,
porque o mundo do mistério existe e o mistério está fora da lógica
convencional. Quando você olha para você e diz: "Não há ninguém dentro de
mim, o meu corpo não está abrigando ninguém", quando você diz "eu sou
um vazio", você enxota o ego.
Mas não há vácuo na natureza. O
que acontece? O vácuo vai ser preenchido pelo universo, pelo Cosmos, pela
existência, outros preferem dizer por Deus. Expulse de si o ego que o espaço
deixado por ele vai ser instantaneamente ocupado pela existência. Aí você
dialoga com a existência, isso é elementar. Aí você tem um vislumbre do eterno,
do definitivo, mais clarividente, você abre os poros da lógica, do seu
cartesianismo, você vê o direito por um prisma novo.
Agora, você paga um preço por
isso. Qual é? Quando vê as coisas por um prisma totalmente novo, a sociedade
não tem parâmetro para avaliar seu prisma diante do inédito para ela. Você é um
antecipado, viu antes dela. O que ela faz lhe desanca, lhe derruba, se não ela
vai se sentir menor, inferiorizada, aturdida. O que ela faz, ela lhe desanca,
você está errado, ou então você não é um cientista, você é um mistificador.
A sociedade não tem parâmetro
para analisar os antecipados no tempo. Veja a lógica das coisas, o tempo só
pode se guiar por quem anda adiante dele. São os espiritualistas, os artistas,
porque eles não têm preconceitos, pré-interpretações, pré-compreensões.
Como definiria os sete meses no comando do Supremo?
Uma honra muito grande, pela
oportunidade de, a partir do Supremo, servir à sociedade brasileira. Só faz
sentido exaltar a figura da presidência nessa perspectiva, do serviço da
coletividade. Fora disso, não é viagem de alma, é viagem de ego.
E como resumiria os nove anos que passou no Supremo?
Diria o seguinte: Em tudo o que
faço, já não faço questão de ser reconhecido. O que faço questão é de me reconhecer.
Fui eu mesmo nessas questões. Não perdi minha essência, minha mundividência.
Eu gravitei em torno dos valores
que dão sentido, dão grandeza, dão propósito à existência individual e
coletiva. Eu não perdi a viagem. A frase é essa.
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