Dom Roque Paloschi: “Qual é o pão da vida, que hoje oferecemos aos povos indígenas?”


 
D. Roque Paloschi
O bispo de Roraima (RR), dom Roque Paloschi, celebrou a Santa Missa da 51ª Assembleia Geral, nesta terça-feira, 16 de abril. O tema da celebração foi a luta para assegurar os direitos dos povos indígenas. Durante a homilia dom Roque destacou três palavras em homenagem aos povos indígenas: gratidão, compromisso e memória. [fonte: www.cnbb.org.br ].

 Veja a íntegra da homilia:

 Estimados Irmãos no episcopado, Romeiros aqui presentes no Santuário, irmãos e irmãs que nos acompanham pelos meios de comunicação.

 Ao celebrar esta Eucaristia na Semana dos Povos Indígenas, como comemoração da causa indígena que é uma causa do Reino de Deus, destaco, brevemente, três palavras: gratidão, memória e compromisso.

1. Gratidão

Gratidão, aos povos indígenas pelas lições de vida que ainda hoje nos dão. No Texto-Base da CF 2002, cujo lema era “Por uma terra sem males”, descrevemos amplamente as lições de espiritualidade de uma sociedade alternativa que recebemos dos índios: “Os povos indígenas sabem que não podem sobreviver como povos reproduzindo estruturas individualistas, consumistas e competitivas” (CF 2002, n. 198). Por isso a terra é considerada dom de Deus para a comunidade. Em seus ritos e costumes de socialização, os povos indígenas dedicam muita atenção comunitária a cada criança que nasce na aldeia e que é educada para viver em comunidade.

Gratidão aos nossos catequistas, animadores de nossas Comunidades Indígenas, o grande amor a Palavra de Deus, vida de eucaristia, mesmo que muitas de nossas comunidades indígenas de Roraima recebem a visita do missionário uma ou duas vezes por ano. O amor e à Igreja, ao papa, aos missionários e o desejo de caminhar na comunhão.

Gratidão aos missionários e missionárias, em sua maioria articulados com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e seu trabalho profético. Ao CIMI coube, nos últimos 40 anos, a tarefa de conduzir a causa dos povos indígenas do labirinto colonial à planície pós-conciliar e da invisibilidade política e da tutela colonial ao confronto com o poder político.

Quero também aproveitar esse momento de gratidão para dizer o nosso muito obrigado ao querido dom Erwin Krautler, presidente do CIMI. Apesar de ser muito atacado e ignorado pelos governantes, recebeu, faz algumas semanas, da Universidade Federal do Pará (UFPA) o título de doutor honoris causa pelo seu trabalho profético em defesa da Justiça. Em defesa dos povos indígenas e de todos os prejudicados pela construção da barragem de Belo Monte. Para a população local, Belo Monte deixou de ser um “monte belo” para tornar-se um monte calvário.

Convivendo com as comunidades indígenas, a Igreja missionária tomou consciência dos valores e práticas vivas do Evangelho, presentes em cada cultura. E quanto mais engajados nas lutas, mais os missionários reconhecem as sementes do Verbo presentes na vida desses povos e em sua causa (cf. CF 2002, n. 36). Essa causa alimenta em cada um de nós uma grande esperança que outro mundo é possível, uma mística missionária militante que nos permite conservar nossa vida, como vinho jovem e rebelde, em odres novos. O que nós chamamos de “utopia do Reino”, os povos andinos chamam de bem viver. Os Guarani nos falam da “Terra sem males”.

2. Memória da realidade vivida pelos povos indígenas

Desde a história colonial até fins dos anos 60, ações de caráter integracionista marcaram a presença da Igreja. Mas a História está repleta de missionários que romperam os limites do seu tempo, assumiram a defesa dos Índios e sofreram perseguições. A sociedade brasileira nasceu sob a égide da violência contra os povos indígenas (cf. Plano Pastoral, CIMI, nº 2ss).

A causa indígena engloba a memória do nosso passado, de uma evangelização em condições estruturais de colonização, contudo, também uma causa de sobrevivência, causa de vida,  causa do Reino de Deus. Hoje vivemos num país que se diz cristão, mas é uma das sociedades mais desiguais do mundo.

Há muitas forças em nosso país que querem, a todo custo, ampliar o acesso, o controle e a exploração dos territórios indígenas,  dos quilombolas, dos pescadores artesanais, dos camponeses, de preservação ambiental, dentre outros.

Para tanto, declararam guerra e buscam desconstruir os direitos histórica e arduamente conquistados pelos povos indígenas. Esses grupos político-econômicos têm usado diversos instrumentos legislativos e administrativos no ataque que fazem aos povos e seus direitos.

A Portaria 303/2012, tem causado o aumento dos índices de violência contra os povos indígenas no Brasil. Chamamos a atenção, em especial, para o caso particular vivido pelos Guarani Kaiowá. Cerca de 45 mil Guarani Kaiowá vivem confinados em pequenas reservas de terra ou em acampamentos em beiras de estradas. Não bastasse isso, muitos desses acampamentos têm sido covarde e violentamente atacados à bala por jagunços de fazendeiros. Jesus continua sendo assassinado em tantos mártires anônimos dos pobres da terra. Este grito, que sobe aos céus, não pode passar por nós sem deixar sua marca e nos comprometer.

A solução imprescindível e urgente para esta triste realidade é de responsabilidade do governo brasileiro. E a solução passa, necessariamente, pelo reconhecimento, demarcação e retirada dos invasores das terras tradicionais Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul. E disso posso dar testemunho. No caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, a demarcação e a retirada dos invasores, embora não tenha resolvido automaticamente todos os problemas, sem sombra de dúvida, resolveu a situação mais grave de violências, tais como ataques armados e assassinatos, que eram frequentemente cometidos contra indígenas que lá vivem.

3. Compromisso à luz da Palavra de Deus

O Evangelho de hoje (Jo 6,30-35) nos fala dessa vida, do pão “que desce do céu e dá vida ao mundo”, do pão da vida que recebemos e que se multiplica na medida em que o distribuímos.

Qual é o pão que fizemos descer para os povos indígenas, descer do céu das promessas e dos princípios da manutenção das nossas boas relações com os governantes? Esses, por sua vez, nos tentam cooptar com “verbos” e “verbas”, com “prêmios” e “promessas” sem que tenhamos sempre uma clara percepção disso.

Onde está o pão que distribuímos aos povos indígenas, pão de justiça e verdade? Onde foi que derramamos lágrimas e sangue por sua causa? Não foi que, muitas vezes, “terceirizamos” ao presidente do CIMI e seu pessoal o grito profético de Estêvão: “Homens de cabeça dura, insensíveis e incircuncisos de coração e ouvido” (At 7,52).

Os povos indígenas fazem parte de um Brasil e de uma América Latina que têm um projeto de vida diferente do projeto político da maioria dos governantes deste continente. O índice do bem viver dos povos indígenas não depende da construção de hidrelétricas, mas da construção do bem-estar de todos; exige o reconhecimento do outro e a redistribuição de bens.

Como Igreja, temos uma longa caminhada com esses povos. Particularmente, da minha diocese posso testemunhar que também depois da conquista da terra (como em Israel!) os problemas continuam em torno de dois eixos: sobreviver com um modelo alternativo de agricultura em condições economicamente modestas ou copiar o agronegócio e perder o próprio das culturas indígenas. Perder seus valores que, muitas vezes, a nossa sociedade já perdeu: o espírito de partilha, a posse (e não a propriedade) da terra com um significado profundamente religioso, a terra como dom de Deus e não como objeto do mercado, o trabalho comunitário e o zelo pela natureza. O nosso modelo econômico que procura invadir os territórios indígenas ameaça todos esses valores.

Para nós, a questão indígena se coloca como uma questão da humanidade: seremos capazes de contentar-nos com uma nova modéstia material que permite a sobrevivência de todos com igualdade e dignidade ou continuaremos com o modelo de crescimento que cria grandes desigualdades e se torna cada vez mais inviável?

O Evangelho de hoje, que nos falou do “pão de Deus” que “desce do céu e dá vida ao mundo”, nos lembra da saída da escravidão dos que seguiram Moisés, do maná que os alimentou na caminhada pelo deserto e da passagem de Israel para a Terra Prometida. Nossa missão é ser presença em todas essas situações: na escravidão dos Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, na aridez da seca do Nordeste, na terra conquistada de Roraima e nas grandes cidades onde hoje vive quase a metade dos índios no Brasil que perderam seus territórios.

Em seu discurso final, na última sessão do Concílio (7.12.1965), o papa Paulo VI oferece uma chave de leitura para o Vaticano II que considero um indicativo para toda a nossa pastoral ao lado dos povos indígenas. Disse o papa ao despedir-se dos padres conciliares: “A ideia de serviço ocupou o lugar central” do Vaticano II. “Desejamos notar que a religião do nosso Concílio foi, antes de mais nada, a caridade”.

Acolhamos, novamente, como em Santo Domingo prometemos, a inculturação como “imperativo do seguimento de Jesus” (DSD 13), como “descida” e “entrega”, como “encarnação” e “oblação”. “caridade e justiça” através do serviço da nossa presença atenta junto aos povos indígenas. “Toda evangelização há de ser, portanto, inculturação do Evangelho”, nos diz o Documento de Santo Domingo (ibid.). E essa inculturação, que é seguimento de Jesus, “se realiza no projeto de cada povo, fortalecendo sua identidade e libertando-o dos poderes da morte” (DSD 13). Os poderes da morte rodeiam as aldeias indígenas.

Qual é o pão da vida, que hoje oferecemos aos povos indígenas?
 


Igreja Samaritana
Eu responderia: é gratuidade, coragem profética, lucidez e perseverança como diaconia pastoral! Na reciprocidade com os povos indígenas, no dar e receber, nos iniciamos numa “Igreja samaritana” (DAp 26), numa vida despojada e pascal. Como advogados da justiça dos povos indígenas defendemos não somente a causa dos outros, defendemos a nossa própria causa e o futuro do planeta Terra (cf. DAp 395).

O nosso papa Francisco nos convoca para irmos às periferias do mundo. Os povos indígenas esperam da nossa Igreja, a mesma firmeza de Estevão, sonham com uma Igreja pobre e servidora, defensora da vida e da justiça de todos e da obra da Criação.

Que Maria Santíssima, a mãe da esperança, venerada sob o título de Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira dos povos indígenas, e de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, nos recorde diariamente: Fazei tudo o que Ele vos disser. Amém.

Índios ocupam plenário e levam à suspensão de sessão da Câmara



Indígenas protestam contra PEC 215.
Fabiano Costa e Nathalia Passarinho
Do G1, em Brasília
 
 
 

Indígenas durante manifestação de protesto no plenário
 da Câmara (Foto: Fabiano Costa / G1)

 

Dezenas de indígenas de várias etnias tomaram o plenário e provocaram a interrupção por mais de duas horas da sessão desta terça-feira (16) da Câmara dos Deputados. Os índios querem impedir a instalação de uma comissão especial destinada a analisar Proposta de Emenda à Constituição (PEC 215) que modifica as regras da demarcação de reservas indígenas.
Inicialmente, os índios forçaram a entrada, mas foram impedidos por seguranças, que formaram um cordão humano diante do acesso ao plenário. Diante da insistência, o acesso acabou sendo liberado. Muitos índios sentaram-se nos lugares reservados aos deputados.
A ex-senadora Marina Silva assumiu a liderança das negociações com os indígenas, na tentativa de convencê-los a se retirar do plenário. Da mesa da Câmara, o presidente da Casa, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), fez um apelo aos índios para que se retirassem do plenário e, em troca, ele receberia as lideranças no gabinete da presidência para uma negociação. 
A proposta
A proposta que é alvo de críticas dos índios retira do Executivo a autonomia para demarcar terras indígenas, de quilombolas e zonas de conservação ambiental. Pelo texto, caberá ao Congresso Nacional aprovar proposta de demarcação enviada pela Fundação Nacional do Índio (Funai). "Se a PEC for aprovada, vai matar todos nós. Temos que ter a nossa terra para sobreviver. Não pode tirar a responsabilidade do Executivo", disse o líder indígena Baitxana da tribo Hunikui. A PEC já foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e será apreciada por uma comissão especial antes de ir à votação no plenário da Casa. Atualmente, o Ministério da Justiça edita decretos de demarcação a partir de estudos feitos pela Funai. “Compreendo perfeitamente o desespero dos índios. Acho que eles chegaram a um limite. Essa PEC que retira do Executivo a prerrogativa de criar áreas indígenas é uma proposta que vai impedir qualquer política indigenista e permite a redução das áreas de reservas indígenas já existentes. É legítima essa reação”, disse Sarney Filho.
Comissão
Antes, no início da tarde, os índios já tinham feito uma manifestação no plenário da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), em protesto contra a criação da comissão especial. Depois do protesto na CCJ, o presidente da Câmara, decidiu solicitar aos líderes partidários, a pedido dos índios, que adiassem as indicações de membros para a comissão especial.
 
 
 
 

O que está em jogo na sucessão de Chaves?




A morte de um líder carismático cria sempre um vazio de incerteza, no qual os seus seguidores tentam garantir a continuidade das suas políticas através da sua institucionalização. Max Weber chamava isto de “rotinização do carisma”. Mas a partir do momento em que entram na rotina, as políticas evoluem em direções que são sempre difíceis de prever. Para estimar o que pode acontecer no futuro imediato, é preciso começar evidentemente com uma apreciação das realizações de Chávez. É isso que Immanuel Wallerstein faz neste artigo.

Immanuel Wallerstein

Depois da morte do presidente Hugo Chávez, a imprensa mundial e a Internet encheram-se de declarações sobre a sua obra, que foram dos infindáveis elogios às infindáveis denúncias, com certo número de pessoas fazendo elogios ou denúncias de forma mais cautelosa ou limitada. A única coisa que todos parecem estar de acordo é que Hugo Chávez era um líder carismático.

O que é um líder carismático? É alguém que tem uma personalidade muito forte, uma visão política relativamente clara e é capaz de grande energia e persistência na prossecução dos seus objetivos. Líderes carismáticos atraem grande apoio, em primeiro lugar no seu próprio país. Ao mesmo tempo, os vários aspetos da sua persona que atraem apoio são os mesmos que mobilizam profunda oposição às suas políticas. Tudo isto foi certamente verdadeiro no caso de Chávez.

A lista dos líderes carismáticos na história do mundo moderno não é tão grande. Pense em Napoleão e De Gaulle na França, Lincoln e F.D. Roosevelt nos Estados Unidos, Pedro o Grande e Lênin na Rússia, Gandhi na Índia, Mao Zedong na China, Mandela na África do Sul. E, evidentemente, Simon Bolívar. No próprio momento em que olhamos uma lista como esta, compreendemos várias coisas. Todas estas pessoas foram líderes controversos durante as suas vidas. A avaliação dos seus méritos e falhas mudaram constantemente no tempo histórico. Nunca parecem desaparecer numa perspectiva histórica. E, finalmente, as suas políticas não tinham qualquer identidade entre eles.

A morte de um líder carismático cria sempre um vazio de incerteza, no qual os seus seguidores tentam garantir a continuidade das suas políticas através da sua institucionalização. Max Weber chamava isto de “rotinização do carisma”. Mas a partir do momento em que entram na rotina, as políticas evoluem em direções que são sempre difíceis de prever. Para estimar o que pode acontecer no futuro imediato, é preciso começar evidentemente com uma apreciação das realizações de Chávez. Mas é preciso também avaliar as relações internacionais de forças e os contextos culturais da geopolítica mais ampla nos quais a Venezuela e a América Latina se encontram hoje.

As suas realizações parecem claras. Ele usou a enorme riqueza petrolífera da Venezuela para melhorar significativamente as condições de vida das camadas mais pobres, expandindo o seu acesso às instalações de saúde e à educação, e assim reduzindo a brecha entre os ricos e os pobres de forma bastante notável. Além disso, usou a enorme riqueza do petróleo para subsidiar as exportações petrolíferas para um grande número de países, especialmente nas Caraíabas, o que lhes permitiu sobreviver minimamente.

Para além disso, contribuiu substancialmente para construir instituições latino-americanas autônomas – não só a Alba (a aliança dos países bolivarianos), mas também a Unasul (a confederação de todos os estados na América do Sul), a Celac (todos os Estados das Américas exceto os Estados Unidos e o Canadá), e o Mercosul (a estrutura econômica confederal que inclui tanto o Brasil quanto a Argentina), ao qual ele aderiu. Não estava sozinho nestes esforços, mas desempenhou um papel particularmente dinâmico. Um papel pelo qual o ex-presidente Lula, do Brasil, sempre o elogiou. O grande número de presidentes de outros países que foram ao seu funeral (cerca de 34), especialmente da América Latina, comprovam a sua popularidade. Ao procurar criar estruturas latino-americanas fortes, ele estava evidentemente a desempenhar um papel anti-imperialista, essencialmente anti-Estados Unidos, e por isso não era apreciado em Washington.

Deveríamos notar em particular a apreciação positiva de Chávez pelo presidente conservador da vizinha Colômbia. Isto por causa do papel importante e muito positivo de Chávez como mediador entre o governo colombiano e a sua inimiga de longa data, a guerrilha das Farc. Chávez era o único possível mediador, aceitável por ambos os lados, e estava à procura de uma solução política para pôr fim ao estado de guerra.

Os seus detratores acusam-no de promover um regime corrupto, um regime autoritário e um regime economicamente incompetente. Não há dúvida de que houve corrupção. Sempre existe em qualquer regime onde haja dinheiro abundante. Mas quando penso nos escândalos de corrupção nos últimos 50 anos nos Estados Unidos ou em França ou na Alemanha, onde há ainda mais dinheiro, não posso levar este argumento muito a sério.

O regime foi autoritário? Certamente. É o que acontece com um líder carismático. Mas, mais uma vez, comparado com outros líderes autoritários, Chávez foi bastante contido. Não houve purgas sangrentas ou campos de concentração. Em vez disso, houve eleições, que a maioria dos observadores internacionais considerou as melhores possíveis (pensem de novo nos Estados Unidos, ou na Itália ou...), e Chávez ganhou 14 ou 15. Nem deveríamos esquecer que ele teve de combater uma séria tentativa de golpe apoiada pelos Estados Unidos, a qual superou com dificuldades. Sobreviveu devido ao apoio popular e ao apoio dentro do Exército.

Quanto à incompetência econômica, é verdade que ele cometeu erros. E é verdade que a atual receita do governo venezuelano é menor do que já tinha sido. Mas lembrem-se de que estamos numa depressão mundial. E quase todos os governos do mundo estão a enfrentar dilemas financeiros e apelos à austeridade. Não é de todo óbvio que um governo nas mãos da sua oposição tivesse feito melhor em termos de otimizar a receita econômica. O que é certo é que um governo nas mãos da sua oposição teria feito menos para redistribuir a riqueza internamente às camadas mais pobres.

A única área em que ele não brilhou foi no seu constante apoio à política econômica extrativista, ignorando os protestos dos povos indígenas pelos danos ecológicos e pelos seus direitos ao controlo autônomo das suas localizações. Mas compartilha esta falta com todos os governos nas Américas, sejam de esquerda ou de direita.

O que vai provavelmente acontecer agora? De momento, tanto os chavistas quanto a oposição cerraram fileiras, pelo menos para as próximas eleições presidenciais. A maioria dos analistas parecem concordar que o sucessor escolhido por Chávez, Nicolás Maduro, vai vencer. A questão interessante é saber o que acontecerá depois, acima de tudo em termos de alinhamentos internos. Nenhum campo é isento de divisões internas. Suspeito que haverá alguma redistribuição das cartas, com deserções em ambos os lados. Em alguns anos, poderemos ver uma diferente relação de forças.

Que vai então acontecer ao “socialismo do século 21” – a visão que Chávez tinha dos objetivos que é necessário obter na Venezuela, na América Latina e em todo o mundo? Há duas palavras nesta visão. Uma é “socialismo”. Chávez procurou resgatar este termo do opróbio no qual tinha caído devido aos múltiplos fracassos tanto nos países do Comunismo realmente existente quanto da social-democracia pós-marxista. O outro termo é “século 21”. Tratava-se de um claro repúdio de Chávez em relação ao socialismo da Terceira e da Segunda Internacionais, e um apelo a que a estratégia fosse repensada.

Netas duas tarefas, Chávez estava quase sozinho. Mas fez soar um toque de clarim. Para mim, este esforço é parte da tarefa maior que todos enfrentaremos nesta crise estrutural do capitalismo histórico e a bifurcação de duas possíveis resoluções do caos no qual caiu o nosso sistema-mundo. Precisamos debater qual é a natureza do mundo melhor que nós, ou alguns de nós, procuramos. Se não podemos ser mais claros sobre o que queremos, não é provável que ganhemos a batalha com os que procuram criar um sistema não capitalista que, no entanto, reproduz os piores aspetos do capitalismo: hierarquia, exploração e polarização.

[Immanuel Wallerstein (1930) é um sociólogo conhecido pela sua contribuição fundadora para a teoria do sistema-mundo.]

13º Fórum Social Mundial, Tunísia: Agendas e lutas comuns contra o capitalismo, o patriarcado, o racismo e todo o tipo de discriminação e opressão








 
Tunísia
 
Sob o lema "Dignidade", um dos suportes da revolução tunisina que desencadeou a “Primavera Árabe”, o 13º Fórum Social Mundial juntou (na última semana de março) cerca de 70 mil participantes em Túnis, representando mais de 120 países dos cinco continentes.

Confira partes da entrevista com Luiz Carlos Susin.

 IHU On-Line – Qual a diferença entre o 13º Fórum Social Mundial e do Fórum Mundial de Teologia e Libertação realizado na Tunísia em relação à edição que aconteceu em Dakar?

Luiz Carlos Susin – Em Dakar tivemos uma boa recepção do governo da cidade, mas na última hora o governo do país retirou o apoio ao não disponibilizar a universidade como espaço de realização e instalou um caos logístico. E os universitários tiveram que prestar exames justamente na semana do Fórum! Foi uma perda muito grande. [...] Já em Túnis houve um apoio maciço, uma participação de jovens universitários, de movimentos da região árabe, de mulheres com participação intensa.

Quanto ao Fórum Mundial de Teologia e Libertação, que veio acontecendo sempre junto do Fórum Social Mundial, ganhou uma estruturação diferente: tornou-se uma delegação. É que as avaliações anteriores mostravam que havia certo paralelismo, e era necessário entrosar de forma mais completa o Fórum de Teologia ao Fórum Social, pois o que sempre se pretendeu foi buscar no ambiente do Fórum um contexto de inspiração teológica assim como colaborar com ele oferecendo a reflexão teológica. Então dessa vez radicalizamos: reunimo-nos um dia antes para uma preparação presencial, depois de um processo de preparação por internet, e nesse dia traçamos nossas estratégias de participação. Dentro do Fórum Social oferecemos oficinas e participamos como membros de mesa em oficinas (workshops) de outros, alguns em parceria. Além disso, conforme os eixos de reflexão que temos, buscamos e aproveitamos outras atividades que foram oferecidas. Cada final de dia fazíamos reunião de avaliação com perspectivas para nosso trabalho. Realizamos uma avaliação global ao encerrar, traçando os passos seguintes, sobretudo de produção teológica.


IHU On-Line – Qual foi a especificidade do 13º Fórum Social Mundial realizado na Tunísia? Entre os temas, discutiu-se a questão da dignidade humana, a soberania dos povos e o futuro dos movimentos sociais. Como esses temas foram relacionados?

Luiz Carlos Susin – A palavra-chave que se incrustou no Fórum, vinda justamente da revolução começada na Tunísia dois anos antes, foi a palavra “dignidade”. Ela estava inscrita por toda parte. De certa forma é uma direção para o lema do Fórum – “Outro mundo é possível” –, pois se trata de um mundo onde reine a dignidade: das mulheres, das minorias, no exercício da política, no respeito à diversidade etc. É algo muito inspirador, e que tem uma grande tradição na história do reconhecimento do que seja realmente humano. Há discussões que são recorrentes, mas que ganharam novo contexto, como, por exemplo, a relação entre movimentos sociais e políticas de governo. Quando os movimentos conseguem uma mudança de governo em direção a uma maior democracia, devem participar dele para que se mantenha e se consolide? Ou deve ficar em posição livre e crítica para que o governo tenha uma interlocução válida? Há boas razões para ambas as tendências.
[...]

IHU On-Line – Quais foram os temas teológicos mais candentes que emergiram do Fórum Mundial de Teologia e Libertação? Quais as tendências teológicas apresentadas?

Luiz Carlos Susin – Nós fomos estreitando os eixos de oito para três áreas que interessavam mais no ambiente da primavera árabe: 1) a relação entre religião e política democrática; 2) a relação entre gênero, democracia e religião; e 3) a construção de processos de paz no mundo pluralista contemporâneo.

 IHU On-Line – Como o Fórum Mundial de Teologia e Libertação contribui para as questões discutidas no Fórum Social Mundial? Qual a relevância de um debate teológico com o Fórum Social Mundial? Quais foram as grandes questões que o Fórum Social Mundial apresentou para a teologia?


Luiz Carlos Susin – Em Túnis, dadas as circunstâncias da Primavera Árabe e da revolução da dignidade, o próprio Fórum Social Mundial abrigou muitos debates sobre a relação entre religião e política democrática. E quando se fala de democracia, faz-se necessário falar de reconhecimento, respeito, liberdade, inclusive de consciência e de religião. Por outro lado, é impossível pensar uma boa democracia sem amplos consensos, sem somar energias. Portanto, do ponto de vista da religião, tivemos diálogos entre muçulmanos e cristãos em torno de assuntos como a igualdade de gênero, a liberdade de consciência, a relação com a tradição religiosa, o diálogo de religiões. No espaço do Fórum Social Mundial tivemos experiência de rezar, cantar e dançar juntos, gente de diferentes tradições religiosas. Isso é também uma mútua contribuição!

 

Declaração da Assembleia dos Movimentos Sociais do Fórum Social Mundial 2013

 A tradicional Assembleia dos Movimentos Sociais que acontece em todas as edições do Fórum publicou uma declaração, espécie de documento final do encontro.




 

Eis a declaração.

Nós, reunidas e reunidos na Assembleia de Movimentos Sociais, realizada em Túnis durante o Fórum Social Mundial 2013, afirmamos o contributo fundamental dos povos do Magreb-Maxereque (desde a África do Norte até o Médio Oriente) na construção da civilização humana. Afirmamos que a descolonização dos povos oprimidos é um grande reto para os movimentos sociais do mundo inteiro.

No processo do FSM, a Assembleia dos Movimentos Sociais é o espaço onde nos reunimos em toda a nossa diversidade para juntos construirmos agendas e lutas comuns contra o capitalismo, o patriarcado, o racismo e todo o tipo de discriminação e opressão. Temos construído uma história e um trabalho comum que permitiu alguns avanços, particularmente na América Latina, onde conseguimos travar alianças neoliberais e concretizar alternativas para um desenvolvimento socialmente justo e respeitador da natureza.

Juntos, os povos de todos os continentes conduzem lutas para se oporem com grande energia à dominação do capital, escondida por trás da promessa do progresso econômico e da aparente estabilidade política.

Agora, encontramo-nos numa encruzilhada onde as forças conservadoras e retrógradas querem parar os processos iniciados há dois anos com a sublevação popular na região do Maghreb-Maxereque, que ajudou a derrubar ditaduras e a enfrentar o sistema neoliberal imposto sobre os povos. Estas revoltas contagiaram todos os continentes do mundo, gerando processos de indignação e de ocupação das praças públicas.

Os povos de todo o mundo sofrem hoje os efeitos do agravamento de uma profunda crise do capitalismo, na qual os seus agentes (bancos, multinacionais, grupos mediáticos, instituições internacionais e governos cúmplices do neoliberalismo) procuram potenciar os seus lucros à custa de uma política intervencionista e neocolonialista.

Guerras, ocupações militares, tratados neoliberais de livre comércio e “medidas de austeridade” traduzidas em pacotes econômicos que privatizam os bens comuns e os serviços públicos, cortam salários, reduzem direitos, multiplicam o desemprego, aumentam a sobrecarga das mulheres no trabalho de assistência e destroem a natureza.
 

Estas políticas afetam mais intensamente os países mais ricos do Norte, aumentam as migrações, as deslocações forçadas, os despejos, o endividamento, e as desigualdades sociais como na Grécia, Chipre, Portugal, Itália, Irlanda e no Estado Espanhol. Elas reforçam o conservadorismo e o controlo sobre o corpo e a vida das mulheres. Além disso, tentam impor-nos a “economia verde” como solução para a crise ambiental e alimentar, o que além de agravar o problema, resulta na mercantilização, privatização e financeirização da vida e da natureza.


Denunciamos a intensificação da repressão aos povos em rebeldia, o assassinato das lideranças dos movimentos sociais, a criminalização das nossas lutas e das nossas propostas. Afirmamos que os povos não devem continuar a pagar por esta crise sistêmica e que não há saída dentro do sistema capitalista!  Aqui em Túnis, reafirmamos o nosso compromisso com a construção de uma estratégia comum para derrocar o capitalismo. Por isso, lutamos:
 

 
Contra as multinacionais e o sistema financeiro (o FMI, o BM e a OMC), principais agentes do sistema capitalista, que privatizam a vida, os serviços públicos, e os bens comuns, como o água, o ar, a terra, as sementes, e os recursos minerais, promovem as guerras e violações dos direitos humanos. As multinacionais reproduzem práticas extrativistas insustentáveis para a vida, monopolizaram as nossas terras e desenvolvem alimentos transgênicos que nos tiram o direito à alimentação e eliminam a biodiversidade.

- Lutamos pela anulação da dívida ilegítima e odiosa que hoje é instrumento de repressão e asfixia econômica e financeira dos povos. Recusamos os tratados de livre comércio que as multinacionais nos impõem e afirmamos que é possível construir uma integração de outro tipo, a partir do povo e para os povos, baseada na solidariedade e na livre circulação dos seres humanos.

- Pela justiça climática e a soberania alimentar, porque sabemos que o aquecimento global é resultado do sistema capitalista de produção, distribuição e consumo. As multinacionais, as instituições financeiras internacionais e os governos ao seu serviço não querem reduzir as suas emissões de gases de efeito de estufa. Denunciamos a “economia verde” e recusamos todas as falsas soluções à crise climática como os agrocombustíveis, os transgênicos, a geoengenharia e os mecanismos de mercado de carbono, como REDD, que iludem as populações empobrecidas com o progresso, enquanto lhes privatizam e mercantilizam os bosques e territórios onde viveram milhares de anos.

- Defendemos a soberania alimentar e a agricultura camponesa, que é uma solução real para a crise alimentar e climática e significa também acesso à terra para a gente que a vive e a trabalha. Por isso apelamos a uma grande mobilização para travar o açambarcamento de terras e apoiar as lutas camponesas locais.

- Contra a violência para as mulheres, que é exercida com regularidade nos territórios ocupados militarmente, mas também contra a violência que sofrem as mulheres quando são criminalizadas por participar ativamente nas lutas sociais. Lutamos contra a violência doméstica e sexual que é exercida sobre elas quando são consideradas como objetos ou mercadorias, quando a soberania sobre os seus corpos e a sua espiritualidade não é reconhecida. Lutamos contra o tráfico de mulheres, meninas e meninos. Defendemos a diversidade sexual, o direito a autodeterminação de gênero, e lutamos contra a homofobia e a violência sexista.

- Pela paz e contra a guerra, o colonialismo, as ocupações e a militarização dos nossos territórios. Denunciamos o falso discurso em defesa dos direitos humanos e da luta contra os integrismos, que muitas vezes justifica ocupações militares por potências imperialistas como no Haiti, Líbia, Mali e Síria. Defendemos o direito dos povos à sua autodeterminação e à sua soberania, como na Palestina, Sahara Ocidental e Curdistão.

- Denunciamos a instalação de bases militares estrangeiras nos nossos territórios, utilizadas para fomentar conflitos, controlar e saquear os recursos naturais e promover ditaduras em vários países. Lutamos pela liberdade de nos organizarmos em sindicatos, movimentos sociais, associações e todas as outras formas de resistência pacífica. Vamos fortalecer as nossas ferramentas de solidariedade entre os povos, como a iniciativa de boicote, desinvestimento e sanções para Israel e a luta contra a OTAN e pela eliminação de todas as armas nucleares.
 
- Pela democratização dos meios de comunicação de massa e pela construção de media alternativos, fundamentais para inverter a lógica capitalista.

Inspirados na história das nossas lutas e na força renovadora do povo em rebeldia, a Assembleia dos Movimentos Sociais convoca todas e todos a desenvolverem ações coordenadas a nível mundial numa jornada mundial de mobilização (em data a definir).
Movimentos sociais de todo mundo, avancemos para a unidade a nível mundial para derrotar o sistema capitalista! Basta de exploração, basta de patriarcado, racismo e colonialismo! Viva a revolução!

Viva a luta de todos os povos!


 

Voltar aos 17


Voltar aos 17 depois de viver um século
É como decifrar sinais sem ser sábio competente
Voltar a ser de repente tão frágil como um segundo
Voltar a sentir profundo como um menino diante de Deus
Isso é o que sinto neste instante fecundo.




Intervenção do cardeal Bergoglio durante o pré-conclave



“A suave e confortadora alegria de evangelizar” (EN 80)
 
Eleito por misericórdia
 

Fez-se referência à evangelização. A razão de ser da Igreja é “a suave e confortadora alegria de evangelizar” (Paulo VI). É o próprio Jesus Cristo quem, a partir de dentro, nos impulsiona..

 1. Evangelizar supõe zelo apostólico. Evangelizar supõe na Igreja a parresía de sair de si mesma. A Igreja é chamada a sair de si mesma e ir para as periferias, não apenas geográficas, mas também as periferias existenciais: as do mistério do pecado, da dor, das injustiças, das ignorâncias e recusa religiosa, do pensamento, de toda miséria.

2. Quando a Igreja não sai de si mesma para evangelizar torna-se autorreferencial e então adoece (cf. a mulher encurvada sobre si mesma do Evangelho). Os males que, ao longo do tempo, se dão nas instituições eclesiais têm raiz na autorreferencialidade, uma espécie de narcisismo teológico. No Apocalipse Jesus diz que está à porta e bate. Evidentemente, o texto se refere ao fato de que Jesus bate do lado de fora da porta para entrar... Mas penso nas vezes em que Jesus bate do lado de dentro para que o deixemos sair. A Igreja autorreferencial quer Jesus Cristo dentro de si e não o deixa sair.

3. A Igreja, quando é autorreferencial, sem se dar conta, acredita que tem luz própria; deixa de ser o mysterium lunae e dá lugar a esse mal tão grave que é a mundanidade espiritual (Segundo De Lubac, o pior mal que pode sobrevir à Igreja). Esse viver para dar-se glória uns aos outros. Simplificando: há duas imagens de Igreja: a Igreja evangelizadora que sai de si – a Dei Verbum religiose audiens et fidenter proclamans, ou a Igreja mundana que vive em si, de si e para si. Isto deve dar luz às possíveis mudanças e reformas que tenha que fazer para a salvação das almas.

4. Pensando no próximo Papa: um homem que, a partir da contemplação de Jesus Cristo e da adoração de Jesus Cristo ajude a Igreja a sair de si para as periferias existenciais, que a ajude a ser a mãe fecunda que vive da “doce e confortadora alegria de evangelizar”.

As florestas e a humanidade no centro das grandes estratégias



 
"2 bilhões de pessoas dependem de florestas para sua subsistência e sua renda e 750 milhões nelas vivem; ali nasce mais de metade das águas do planeta; nelas está grande parte da diversidade de ecossistemas e metade das espécies terrestres de animais e plantas", escreve Washington Novaes, jornalista, citando Ban Ki-moon, secretário-geral da ONU, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 05-04-2013. "Não é casual a revelação de um estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, informa o jornalista, mostrando que o Bioma Pampa - que em certas áreas tem maior diversidade vegetal do que a floresta - já está com 35% de sua superfície ocupada por florestas plantadas de eucaliptos e pinus".
 

Eis o artigo.

 
É impressionante como boa parte da sociedade e dos meios empresariais - no Brasil e fora daqui - continua a entender que temas como conservação de florestas, biodiversidade e mudanças climáticas nascem da fantasia de "ambientalistas" desocupados e extravagantes. Não levam em conta, na sua visão crítica dos "ambientalistas", os impactos negativos da predação dos ecossistemas, principalmente na área da produção econômica - ainda que sejam cada vez mais frequentes os estudos que alertam para essas consequências.

Quem estiver nessa posição deve prestar atenção às palavras do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, diplomata competente e experimentado, capaz de coordenar a convivência de quase 200 nações, com autoridade sobre departamentos e órgãos científicos, conferências e acordos internacionais. Nas recentes comemorações do Dia Internacional da Água, Ban Ki-moon fez um apelo em favor da redução do desmatamento e da perda de florestas no mundo, pois elas cobrem um terço da superfície do planeta e influem decisivamente em serviços vitais para a sobrevivência humana - fluxos de água, regulação do clima, fertilidade do solo etc. (e esses serviços prestados gratuitamente pela natureza, já foi comentado neste espaço, valeriam três vezes mais que todo o produto bruto mundial se tivessem de ser substituídos por ações e tecnologias humanas).

Segundo o secretário-geral da ONU, 2 bilhões de pessoas dependem de florestas para sua subsistência e sua renda e 750 milhões nelas vivem; ali nasce mais de metade das águas do planeta; nelas está grande parte da diversidade de ecossistemas e metade das espécies terrestres de animais e plantas. Mas além da exploração comercial em busca de madeiras, da derrubada para implantar culturas e pastagens, as florestas sofrem porque 3 bilhões de pessoas ainda usam madeira como combustível. Pelas mesmas razões, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) tomou idêntica posição, lembrando ainda que a perda de florestas afeta a segurança alimentar, principalmente das populações mais pobres, já prejudicadas pelo desperdício de mais de 1 bilhão de toneladas anuais de alimentos.

Deveríamos prestar muita atenção a essas palavras, já que o Brasil tem cerca de 500 milhões de hectares de áreas florestais - embora os "verdes" não venham conseguindo discutir na Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados a redução, com o projeto do novo Código Florestal, de 58% nas áreas de floresta desmatadas a serem recuperadas, conforme pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (Estado, 21/3). Só no Cerrado a expansão das culturas de soja se traduz em 40 mil hectares desmatados ilegalmente (Estado, 13/3). A área a ser recomposta com vegetação cairá de 50 mil para 21 mil hectares em Mato Grosso, no Pará, em Minas Gerais e na Bahia. Não por acaso, a Comissão de Meio Ambiente é presidida pelo maior plantador de soja em Mato Grosso. E o Brasil ainda não ratificou - o governo agora promete para 2014 - as novas exigências da Convenção da Biodiversidade, aprovadas em 2010 em Nagoya, que estabelecem a conservação em 17% das áreas terrestres e 10% das áreas oceânicas.
 

Também não é casual a revelação de um estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul mostrando (Agência Fapesp, 26/3) que o Bioma Pampa - que em certas áreas tem maior diversidade vegetal do que a floresta - já está com 35% de sua superfície ocupada por florestas plantadas de eucaliptos e pinus. Como não é acaso que o desmatamento ilegal na Amazônia, entre agosto de 2012 e fevereiro último, tenha sido de 1.351 quilômetros quadrados, 91% mais que em igual período anterior (Estado, 13/3), segundo o instituto Imazon - mesmo que nesse período 72% da área estivesse encoberta por nuvens e não pudesse ser avaliada com precisão. De acordo com esse instituto, entre 2001 e 2010 a degradação subsequente das áreas florestais atingiu 30% da área desmatada.

Estudo da Academia de Ciências dos EUA, que analisou 292 áreas protegidas no Brasil, mostrou há pouco, mais uma vez, que entre todos os modelos de proteção florestal as áreas indígenas e os parques nacionais são os mais eficazes, melhores que os chamados projetos de "exploração sustentável". Ainda assim, o Serviço Florestal Brasileiro acaba de homologar a concessão de mais duas áreas florestais públicas para esse tipo de "exploração sustentável" por empresas (o autor destas linhas conhece diretamente algumas dessas áreas; numa delas, considerada "exemplar", a empresa foi multada depois pelo Ibama por retirar sete vezes mais madeira do que estava autorizada). Mas alimenta esperanças o acordo da Associação Brasileira de Supermercados de não trabalhar com carnes provenientes de áreas desmatadas.

 A agropecuária deveria prestar muita atenção a todas as informações dessa área, uma vez que o desmatamento tem relação direta com mudanças do clima. Um estudo da Global Change Biology mostrou há pouco que na França cresce de ano para ano o impacto do aumento da temperatura sobre o milho, e que ele se vai multiplicar. Na Bahia (Estado, 17/3) a seca de 2012 levou à perda de R$ 1 bilhão na safra de grãos. E um estudo do governo norte-americano demonstrou que o clima mais quente já tem reduzido nas últimas seis décadas em 10% a capacidade dos trabalhadores de resistirem a temperaturas mais altas - e isso pode dobrar até 2050. Não é por acaso, assim, que mudanças climáticas tenham entrado até na estratégia dos órgãos que planejam a segurança dos EUA. A China já vai introduzir uma taxa sobre o carbono emitido por empresas do país. Os EUA já a discutem no Congresso.
Curiosamente, é o Fundo Monetário Internacional (FMI) que aponta uma das raízes do problema: um dos fatores mais fortes na geração de poluentes e de mudanças do clima está nos subsídios que quase todos os países concedem ao consumo de petróleo e seus derivados.

Verdade, Justiça e Reparação


por Adolfo Pérez Esquivel

[fonte: Adital]

 

A nominação do Papa Francisco, até então Cardeal Jorge Bergoglio, causou surpresa em todo o mundo e em nosso país. Como era de se esperar, surgiram também diferentes interpretações sobre os alcances dessa designação. Pelo menos de minha parte, gostaria de partilhar algumas reflexões, dado que, por diferentes meios foram questionadas opiniões passadas e presentes sobre o papel da Igreja durante a ditadura e, em particular, sobre o novo papa.

Nunca acreditei que a história esteja predeterminada, contingências, cenários inesperados; não me parece que possam ser determinados a priori os comportamentos e resultados das ações que a Igreja possa tomar; sempre haverá incertezas e certezas nas opções tomadas em um momento histórico. E, nesse caminhar, podemos ter acertos e também cometer erros. Ninguém é infalível; nem sequer o papa. O desafio consiste em tentar interpretar um processo e avaliar as diversas oportunidades e riscos que se possam apresentar.

Qual era a situação da Igreja antes da abdicação do papa Bento XVI?
 

Nas últimas décadas, os principais condutores da Igreja haviam desandado o caminho iniciado no Vaticano II e desativado quando não perseguido as opções que consideravam a história da libertação dos povos como parte da história da salvação, surgidas desde a América Latina, a partir de Medellín, de Puebla e de vários Sínodos. Para muitas hierarquias, a opção pelos pobres deixou de ser um eixo central e este transmutou-se para o impulso a movimentos laicos conservadores, em muitos casos vinculados a poderes econômicos. Os teólogos da libertação e outros pós-conciliares foram marginalizados, ou acusados, enquanto a instituição tentava fazer com que as rédeas voltassem aos lefevristas, que procuravam o retorno ao Concílio.de Trento! Em uma Igreja cuja virada conservadora, iniciada com João Paulo II e consolidada com Bento XVI, o perfil dos episcopados havia mudado, substituindo os bispos progressistas por outros ultraconservadores, evidenciando uma forte crise de credibilidade. Frente ao manejo pouco transparente dos fundos vaticanos e às denúncias de abusos e encobrimentos de sacerdotes acusados de aberrantes atos de pedofilia, a eleição do novo pontífice se esperava dentro da continuidade de opções ultramontanas e, em particular, italianas.

En ese contexto, la designación del Cardenal Bergoglio, surgió como una novedad, por primera vez la Iglesia salía del euro-centrismo y abría su visión hacia Latinoamérica y otros continentes.

Los primeros gestos y actitudes del nuevo Papa, así como la adopción del nombre del Santo de Asís, Francisco, que constituye por su alto simbolismo una opción por los pobres y un programa de acción, demarcaron un espacio diferente al previsible inicialmente. Sólo el tiempo dirá cuanto podrá cambiar Francisco, las herencias negativas que afectan el Vaticano y la Iglesia en general. ¿Podrá la Iglesia empezar a recuperar de la senda del Concilio Vaticano II, adecuarlo a los tiempos actuales y tratar de animar y alumbrar desde la fe alternativas de justicia social para los pueblos?

Si bien el ex Cardenal Bergoglio, puede inscribirse como parte de una expresión conservadora de la Iglesia en lo doctrinario, en estos últimos años empezamos a conocer otros aspectos de su accionar como pastor que señalaron un perfil de compromiso con los necesitados, donde ha desarrollado un trabajo pastoral en favor de los pobres y excluidos del sistema, no sólo con la pastoral de villas, sino también en el apoyo de organizaciones que trabajaron contra la trata de personas y el trabajo esclavo, el apoyo a empresas recuperadas por sus trabajadores, y la solidaridad con los que sufren, como se expresó con los familiares de Cromagnon y de Once. Lineamientos de trabajo que seguramente tendrán su continuidad y se ampliaran ahora en una escala mundial.

Hoy en la Iglesia universal empezó a cambiar la agenda, el anhelo de una Iglesia pobre, el compromiso con los más pobres, no es un dato menor.

Ya comenté en diversas oportunidades que gran parte la jerarquía de la Iglesia Argentina fue cómplice de la dictadura o bien por omisión no estuvo a la altura de las circunstancias. Ciertamente no se puede generalizar y meter en la misma bolsa a todos, hubo obispos que evidentemente fueron cómplices y justificaron hasta las torturas, son conocidos y fueron denunciados. Otros tuvieron posiciones tibias, aunque trataron de ayudar en lo que podían, reclamando a la junta militar por los desaparecidos y presos e hicieron gestiones privadas para salvar gente. Qué decir de obispos como Justo Oscar Laguna y Jorge Casaretto, en ese entonces Obispo de Reconquista Santa Fe, que visitaba en la U9- a sacerdotes de su diócesis presos y que pidió verme en la prisión. Monseñor Laguna después de fuerte discusión con los militares, pudo verme en la Superintendencia de Seguridad Federal, en el mes de abril de 1977. El entonces Provincial de la Compañía de Jesús, el Padre Jorge Bergoglio también ayudó a perseguidos y realizó gestiones, para lograr la liberación de sacerdotes de su orden que habían sido secuestrados detenidos y desaparecidos. Sin embargo, como comenté en una nota anterior, no acompañó por entonces la lucha en defensa de los derechos humanos contra la dictadura militar. Solo algunos Obispos participaron y sumaron su esfuerzo en la defensa de los derechos humanos, como Jaime de Nevares, Miguel Hesayne, Jorge Novak, Antonio Devoto, Vicente Zaspe, compañero de detención en Ecuador, donde fuimos presos con 17 obispos latinoamericanos en Riobamba.

En su conjunto el Episcopado Argentino, pese a la renovación de sus integrantes, tiene todavía una asignatura pendiente en materia de esclarecer la verdad y favorecer la justicia, que debiera reconocer y contribuir a reparar.

El encuentro de la presidenta Cristina Fernández de Kichner con el Papa, resulta significativo porque alejó las tensiones que pudieron mantener en el pasado, y abren ahora un desafío no sólo para Argentina, sino para todos los gobiernos de América Latina en construir la Patria Grande. Ahora contarán con un Papa latinoamericano, que puede alentar los avances por una mejor redistribución de la riqueza y que los empobrecidos logren conquistar mayores y mejores derechos para dejar de ser pobres.

En el encuentro con el Papa Francisco hablamos sobre los derechos humanos y dijo lo que encabeza esta nota, que hay que seguir trabajando por la Verdad, Justicia y Reparación del daño hecho por las dictaduras, que demarca un gesto frente a quienes añoran impunidades pasadas. Esperamos que ese mensaje pueda traducirse en acciones de parte de la Iglesia para que aporte a esos anhelos de nuestro pueblo. Hablamos también de que la Iglesia reconozca el martirologio latinoamericano de religiosos y laicos, que por su fe dieron la vida por sus pueblos. Comentamos el caso de Mons. Romero en El Salvador y en Argentina el caso del padre Murias, son procesos en curso que probablemente tengan una resolución temprana.

Me manifestó su preocupación por los pobres y del compromiso para reducir el flagelo de la pobreza, enfatizó su compromiso con el ecumenismo, en condiciones de igualdad entre credos, los problemas de la Madre Naturaleza.

Le dije que asumir el nombre de Francisco era todo un desafío y programa de vida. Y sus gestos concretos, como dar misa en una cárcel de jóvenes, vivir en una habitación austera y cambiar su imperial trono papal por un sillón común al pie del piso, no dejan de sorprender, interpelar e incomodar a más de uno en el Vaticano.

Los desafíos que le esperan son muchos, no sé si el Espíritu Santo habrá acertado o no, pero ojalá que Francisco pueda, al igual que el Papa Juan XXIII, abrir las puertas y ventanas, para sacudir las telarañas de siglos, y entre la luz.

Buenos Aires, 28 de marzo de 2013.

Adolfo Pérez Esquivel, Premio Nobel de la Paz.