NOITE INFELIZ: A Nova Evangelização blindada pelo Catecismo Universal.



Os Sínodos representam a recuperação metodológica pré-conciliar. Roma prepara um texto e envia às Igrejas locais. Essas opinam. Roma resume e filtra os textos enviados pelas bases diocesanas e faz algum documento ou toma uma decisão”. As declarações fazem parte do artigo a seguir, escrito especialmente à IHU On-Line.

Por: Paulo Suess

Confira o artigo.

O Sínodo dos Bispos sobre “A nova evangelização para a transmissão da fé cristã ” realizou-se de 7 a 28 de outubro de 2012 em Roma. A preocupação com a evangelização levou Bento XVI, em 2010, à instituição do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização (NE). As atribuições estatutárias desse Conselho indicadas pelo Motu próprio Ubicumque et semper (21.9.2010) eram bastante genéricas: “Aprofundar o significado teológico e pastoral da nova evangelização”; “dar a conhecer e incentivar iniciativas ligadas à nova evangelização já em curso”; “estudar e favorecer a utilização das formas de comunicação modernas” e “promover o uso do Catecismo da Igreja católica, como formulação essencial e completa do conteúdo da fé para os homens do nosso tempo”. Agora, o Sínodo ofereceu a oportunidade de dar mais profundidade e contornos mais específicos a esse Pontifício Conselho.

A escolha da primeira parte do tema do Sínodo, portanto, era do Papa que queria articular a participação do episcopado universal nas atividades do Conselho para a Promoção da NE. Por conseguinte, o Papa pediu às Conferências Episcopais, aos Dicastérios da Cúria Romana, à União dos Superiores Gerais e aos Sínodos das Igrejas Orientais Católicas “três temas possíveis” para o Sínodo. Desta consulta surgiu, segundo as explicações do Secretário Geral do Sínodo dos Bispos, Nikola Eterović, a segunda parte do tema, “a transmissão da fé cristã”. Essa segunda parte foi favorecida por setores eclesiais mais pragmáticos que preferiam celebrar os 20 anos do “Catecismo Universal” a celebrações programáticas dos 50 anos do Vaticano II.

Correia de transmissão

Não era difícil unir os dois temas, a preocupação pastoral sobre a transmissão da fé e a necessidade de uma reflexão acerca da nova evangelização, o que permitiu estabelecer como tema do Sínodo: “A nova evangelização para a transmissão da fé cristã”. A Nova Evangelização, como tema, poderia abrir brechas para mudanças concretas ou propostas de reformas profundas. Por isso, haveria de ser blindada pelo “Catecismo Universal” contra o grito por mudanças estruturais na Igreja: “a evangelização tem por finalidade a transmissão da fé” (cf. Prefácio do Instrumentum laboris, p. 10). Os mecanismos de censura externa e o autocontrole interno do Sínodo permitiram que os textos preparatórios e os pronunciamentos dos padres sinodais protocolados transmitissem a impressão de um sínodo preocupado com conteúdos da fé e não com as estruturas da Igreja que são a correia de transmissão desses conteúdos.

Segundo os textos sinodais, o novo na Nova Evangelização são os métodos catequéticos, as atitudes (mais zelo!), espiritualidade e santidade dos evangelizadores (Prop. 23; 36) que emergem da conversão dos agentes de pastoral (Prop. 22) e que fazem parte de um processo de formação continuada (Prop. 27; 47). Os agentes da NE necessitam novas informações sobre como proceder na primeira proclamação do querigma (Prop. 9) e sobre a Doutrina Social da Igreja (Prop. 24). Para dar conta da articulação entre NE e primeira proclamação, os Padres Sinodais propõem a confecção de um compêndio com diretrizes para os evangelizadores hoje, com dados essenciais sobre o ensinamento sistemático na Escritura e Tradição da Igreja, e sobre os santos missionários e mártires na história da Igreja (Prop. 9). A novidade da NE incide, também, sobre a percepção do mundo em crise e mudanças com seu impacto sobre os interlocutores da Nova Evangelização (Prop. 5). Mas a blindagem contra mudanças no interior da Igreja que poderiam facilitar a transmissão da fé é sem cessar.

A partir do tema escolhido, o Conselho Ordinário da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos preparou os Lineamenta, um pequeno compêndio sobre “evangelização e catequese” que, segundo o secretário geral do Sínodo dos Bispos, Nicola Eterović, tinha a finalidade de “suscitar em nível da Igreja universal o debate sobre o argumento escolhido” (4.3.2011). Os Lineamenta estabelecem como objetivo do Sínodo a clássica missão ad gentes, um pouco ampliada e sob o cuidado do corpo episcopal: “Dentro do amplo contexto da evangelização, uma especial atenção foi reservada ao anúncio da Boa Nova às pessoas e aos povos que ainda não conhecem o Evangelho de Jesus Cristo”. Deve-se, segundo os Lineamenta, implementar essa evangelização com “novas formas e expressões da Boa Notícia” e transmiti-la “com renovado entusiasmo”. Entre a publicação dos Lineamenta, dia 4 de março 2011, e o retorno das reflexões das Igrejas locais à Secretaria Geral do Sínodo, antes do dia 1º de novembro do mesmo ano, o tempo era muito curto para socializar o texto nas bases eclesiais. Com o material que retornou destas consultas precárias, a Secretaria Geral do Sínodo preparou uma síntese seletiva, o chamado Instrumentum laboris, texto base e documento de trabalho da Assembleia sinodal, publicado em 19 de junho de 2012. Novamente, restou pouco tempo para assimilar o texto nos diferentes contextos geográficos, culturais e pastorais.

Fila do povo

Domingo, dia 7 de outubro, começou o Sínodo com a Missa celebrada na Praça de São Pedro e a proclamação de São João de Ávila e de Santa Hildegard de Bingen, “Doutores da Igreja”. O Papa, em sua homilia, falou da orientação programática e da assunção plena que esperava do Sínodo, relacionando a nova evangelização “com a evangelização ordinária e com a missão ad gentes [...]. Os três aspectos da única realidade de evangelização se completam e se fecundam mutuamente”.

Depois dos Lineamenta e do Instrumentum laboris, em preparação do Sínodo, chegou a hora dos padres sinodais. Suas intervenções na sala sinodal foram sintetizadas em “58 Proposições”. Segundo as normas do Ordo Synodi Episcoporum, a língua oficial dessas Proposições é latim e seu caráter é confidencial. Por ser difícil, na era da internet, manter esse caráter confidencial, e por entre 263 padres sinodais nem a metade domina mais o latim, o papa liberou a publicação das Proposições, preparadas sob a responsabilidade do Secretariado Geral do Sínodo dos Bispos, numa versão não oficial em inglês. Como também nem todos os bispos que fazem parte da CNBB dominam o inglês, na última reunião do Conselho Episcopal Pastoral da CNBB (Consep), durante os dias 27 e 28 de novembro, foi levantada a hipótese de pedir a licença de Roma para traduzir as Proposições ao português.

As Proposições foram sistematizadas num texto com Introdução (1-3), seguida por uma primeira parte sobre “A natureza da Nova Evangelização” (4-12). Uma segunda parte situa o Sínodo no “contexto contemporâneo do Ministério da Igreja” (13-25), e a terceira parte procura incorporar as contribuições do Sínodo em “Respostas pastorais nas circunstâncias de hoje” (26-40). A última parte versa sobre “Agentes e participantes da Nova Evangelização”.

A coleta dessas Proposições era o resultado de uma imensa fila de bispos, cada um com a possibilidade de falar cinco minutos, em uma das cinco línguas oficiais. A maratona da “fila do povo” nos primeiros dias do Sínodo, que simula participação democrática, também cria vícios. Como certos alunos durante as aulas se refugiam ao iPod para trocar mensagens e responder e-mails que não têm nada a ver com a matéria lecionada, também na aula sinodal o “exercício de escuta” se reduziu, às vezes, à presença física, o que, internamente, provoca cansaço, externamente, na mídia, produziu desinteresse nos assuntos transmitidos, “eclesialmente corretos”, pela Secretaria de Imprensa.

Centralismo burocrático

O resultado desses discursos de cinco minutos é semelhante a uma grande panela de pipoca multicultural, provindo dos quatro cantos do mundo. Quase todos os tópicos relevantes para a pastoral e sua fundamentação teológica foram levemente tocados: Santíssima Trindade (4), inculturação (5), evangelização explícita (6), mundo secularizado (8), proclamação inicial do evangelho (9), o direito de proclamar e escutar o evangelho (10), leitura orante do evangelho (11), hermenêutica da reforma (12), desafios do nosso tempo (13), reconciliação (14), direitos humanos (15), liberdade religiosa (16), preambula fidei (17), meios de comunicação social (18), desenvolvimento humano (19), plenitude da beleza do seguimento de Jesus (20), migrantes (21), conversão (22), santidade dos evangelizadores (23), doutrina social (24), cenários urbanos (25), paróquia (26), educação (27), catequese (28, 29), teologia (30), opção pelos pobres (31), sofrimento (32), sacramentos (33, 37, 38), eucaristia como ponto alto da NE, sobretudo nos domingos e dias de festa (34), liturgia (35), espiritualidade (36), religiosidade popular (39), Igreja particular e paróquia (40, 44), projeto missionário integrado nas atividades pastorais (42), dons hierárquicos e carismáticos da Igreja (43), laicato (45), colaboração entre homens e mulheres (46), formação dos evangelizadores (47), família cristã (48), ministérios ordenados (49), vida consagrada (50), juventude (51), diálogo ecumênico (52), diálogo inter-religioso (53), diálogo entre ciência e fé (54), pátio dos gentios (55), cuidado com a criação (56), transmissão da fé cristã (57), Maria, a estrela da NE (58). Como se percebe facilmente, faltou foco. A NE era um tema amplo demais para permitir prioridades. Sempre haveria reivindicações de um ou outro grupo que “seu tema”, ausente nas Proposições, também faria parte da NE.

O referencial básico dos pronunciamentos era o Instrumento laboris. É sabido que o trabalho do Vaticano II começou com a rejeição dos instrumentos de trabalho preparados pela Cúria Romana. Os Sínodos representam a recuperação metodológica pré-conciliar. Roma prepara um texto e envia às Igrejas locais. Essas opinam. Roma resume e filtra os textos enviados pelas bases diocesanas e faz algum documento ou toma uma decisão. O Vaticano II não conseguiu mexer com o “centralismo burocrático” (Joachim Wanke ) nem com os mecanismos e as expressões pré-modernos de lealdade filial. Logo na primeira “Proposição”, os Padres Sinodais pedem “humildemente ao Santo Padre considerar a oportunidade de fazer um documento sobre a transmissão da fé cristã através de uma nova evangelização”, acolhendo os diferentes textos que acompanharam o Sínodo. Nesse século XXI, em instituição alguma um assessor submeteria seu parecer “humildemente” ao chefe da organização que o chamou para esta função.

Não só as formas como também os conteúdos revelam certa despreocupação com o mundo que os deve acolher. Mas aí já se trata dos temas vetados da igualdade ministerial das mulheres na Igreja e da carência de ministros ordenados de eucaristia. O leitor, possivelmente, se lembra do conto de Kafka intitulado Diante da Lei: “Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar lhe a entrada. O homem considera e pergunta depois se poderá entrar mais tarde. – ‘É possível’ – diz o guarda. – ‘Mas não agora!’. [...] O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser acessível a toda a gente”.

Forma radical de lealdade

Os Sínodos da Igreja Católica são assembleias de homens com idade avançada. Infelizmente, ainda não podemos falar de “madres sinodais”. Mulheres só participaram como observadoras e convidadas especiais, com direito à voz, porém, sem voto. Na Proposição 46, sobre a colaboração entre homens e mulheres, por exemplo, encontram-se chavões sobre a igual dignidade entre homem e mulher, na sociedade, baseada em sua criação segundo a imagem de Deus. Na Igreja, essa igualdade é baseada no batismo do qual emana uma vocação comum, porém com “capacidades especiais das mulheres, como sua atenção aos outros e seus dons para cuidado e compaixão, particularmente, na sua vocação como mães”. Não se precisa ser feminista de carteirinha para situar este pensamento em séculos remotos. As Proposições mencionam também oito vezes a importância da eucaristia para a vida cristã, mas não mencionam que, por falta de ministros ordenados, mais do que a metade das comunidades cristãs, no Brasil, por exemplo, é estruturalmente impedida de participar de uma eucaristia dominical.

Muitas das questões disputadas na Igreja Católica estão ligadas à interpretação da colegialidade dos bispos e participação do povo de Deus. Está certo, o Sínodo é um organismo consultivo que nesse tempo pós-conciliar fez dos bispos uma espécie de “assessores” do Papa. Cabe a pergunta sobre o caráter magisterial da colegialidade episcopal e se a configuração funcional dessa colegialidade como “assessoria” técnica e meramente opinativa, à qual, canonicamente foi reduzida, não foge desse caráter. A Lumen gentium nos informou: “A ordem dos Bispos, que sucede ao Colégio Apostólico no magistério e no regime pastoral e na qual em verdade o Corpo Apostólico continuamente perdura, junto com seu Chefe, o Romano Pontífice e nunca sem ele, é também detentora do poder supremo e pleno sobre a Igreja inteira” (cf. LG 22b). O “nunca sem ele” inclui o Papa na colegialidade, e não só como supervisor, mas também como participante. Numa relação de colegialidade tampouco cabe o veto à palavra que vem da Igreja local e a exclusão, de antemão, de certas questões e questionamentos embutidos nessa palavra. Crítica significa discernimento. As Proposições falam 26 vezes em discernimentos. A crítica é uma forma radical de lealdade.

O argumento que representantes da Cúria alegam é que, para mudar algo na Igreja, o Papa não deve se sentir pressionado pelo Sínodo. Em outras ocasiões, os mesmos enviados curiais alegaram que mudanças na Igreja Católica são assuntos da Igreja universal e nenhuma Igreja particular pode introduzi-las ou exigi-las sem um consenso universal. Mas onde, senão num Sínodo, teríamos a presença da Igreja universal e a possibilidade de construir um consenso? Nas últimas décadas, poucos impulsos pastorais foram produzidos pelos Sínodos. Tudo isso explica certa calmaria no texto das Proposições, muito em contraste com as tempestades que estão sacudindo as Igrejas locais e a própria governança centralizada. Apesar de certos arranhões institucionais, estruturais e pessoais da Igreja Católica nos últimos anos, ela se trata a si mesma como se nada tivesse acontecido. É surpreendente que na primeira metade do século XXI, no interior dessa Igreja, a autossacralização institucional, subjetiva e simbólica funciona ainda razoavelmente bem. Mas nem tudo que neste mundo funciona bem está de acordo com o Evangelho e, portanto, com a Nova Evangelização.

No retrovisor histórico pode-se dizer que a XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos foi uma assembleia ad intra, de uma Igreja em busca de sua identidade no passado. Por conseguinte, despertou pouquíssimo interesse na mídia, no povo de Deus e até entre os bispos que não foram envolvidos numa interlocução real e possível. Fora da imprensa corporativa, os meios de comunicação trataram o Sínodo de outubro com um desinteresse generalizado porque antes de sua realização os resultados já estavam prontos. A ordem dos documentos preparatórios saltava aos olhos: Não precisamos mudar nada; mas apenas intensificar aquilo que sempre fizemos. Fenômenos de crise são temporários e regionais, não estruturais. Basicamente, a paróquia missionária é a solução. Será que no transatlântico católico só precisa trocar o óleo e não, também, algumas peças ou, quem sabe, mudar o rumo?


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