Eis a entrevista.
Qual a sua avaliação sobre os
parâmetros curriculares recém-instituídos pelo Conselho Nacional de Educação
para os cursos de jornalismo?
Um retrocesso e uma quase tragédia.
Surge na contramão do entendimento de pensadores e teóricos da comunicação que
fizeram o movimento oposto décadas atrás, procurando incluir o jornalismo como
parte de uma formação mais ampla.Foge ao contexto atual de convergência das
mídias e de produção da informação nas redes sociais que exige um profissional
com múltiplas habilidades, um analista simbólico, um ensaísta, um ativador e
produtor de desejos. Esse perfil não tem nada a ver com o profissional
adestrado por uma formação fordista e extremamente limitada, do “quê, quem,
como, onde”, e que passa longe de todos os clichês que construímos em torno
desse personagem.
As novas diretrizes respondem a uma
crise de mediação. Mas o jornalista não é mais o mediador privilegiado, o
“gatekeeper”, o guardião do que é ou não é notícia, do que é ou não noticiável.
As corporações de mídia e o jornalismo nunca foram tão questionados e buscam
manter de pé uma mística da excepcionalidade da atividade jornalística. Com ou
sem formação especializada, a mídia somos nós. O que não acaba com a
necessidade de formação, mas a estende para toda a sociedade. O jornalismo é
importante demais para ficar na mão de corporações, cartórios e especialistas.
A sra. começou afirmando que vê um
retrocesso e uma quase tragédia…
As viuvas de Gutemberg |
A sra.é contra o diploma de
jornalista?
Sempre fui contra. O fim da
obrigatoriedade não acabou com os cursos de Comunicação, nem diminuiu a busca
pela habilitação em Jornalismo, campos que nunca foram tão valorizados. Os
jornais sempre burlaram a exigência de diploma pagando muitas vezes os maiores
salários aos não-jornalistas, cronistas, articulistas, vindos de diferentes
campos. As universidades não precisam formar os “peões” diplomados, mas jovens
capazes de exercer sua autonomia, liberdade e singularidade, dentro e fora das
corporações. Não precisamos de profissionais “para o mercado”, mas capazes de
“criar” novos mercados, jornalismo público, pós-corporações, produção
colaborativa em rede.
O mais importante nenhuma entidade
corporativa defendeu nem pensou: uma seguridade nova para os freelancers, os
precários, aqueles que não têm e nunca terão carteira assinada. Essas são as
novas lutas no capitalismo.A ideia de que para ter direitos é preciso se
“assujeitar” a uma relação de patrão-empregado, de “assalariamento”, é
francamente conservadora.
Sem a obrigatoriedade do diploma, qual
o sentido de um jovem ingressar em uma faculdade de Comunicação?
O capitalismo, as revoluções dentro do
capitalismo e as ações anti-capitalistas, a publicidade, a economia imaterial,
tudo isso depende desse domínio midiático e da posse dessas linguagens. O
capital já entendeu isso faz tempo. E se quisermos pensar jornalismo público,
jornalismo do comum, a produção de um midiativismo capaz de ativar os desejos
por mudanças sociais, tudo isso passa por um outro tipo de formação. A
comunicação é central na sociedade de redes. Se o capitalismo é comunicacional,
a revolução terá que ser também midiática. É um campo fascinante, que não para
de mobilizar os jovens.
Há duas décadas, a sra. iniciou sua
vida acadêmica. Já formou centenas de jornalistas que estão no mercado. Eles
estão cumprindo seu papel social?
A Escola de Comunicação da UFRJ formou
e forma desde a Fátima Bernardes, que até pouco tempo atrás dividia a bancada
do Jornal Nacional com William Bonner, até o Rafucko, que acabou de lançar um
vídeo com mais de 800 mil visualizações. Esse vídeo desconstruía, criticava e
escrachava um editorial da Globo sobre as manifestações e a liberdade de
expressão. Formamos a elite que reproduz o poder e os que lutam por mudanças
radicais e se arriscam e inovam. Essa disputa é feita dentro da
universidade.Somos criticados por formarmos editorialistas, jornalistas que
colocam sua inteligência a serviço do capital ou nos entretendo com perfumaria.
E, ao mesmo tempo, um blog da Veja, me acusou de ser uma “blackblocteacher”, de
formadora de blackblocs e ativistas radicais, em um texto ressentido e
equivocado, mas que não deixa de ser um elogio.
Quais são as implicações do surgimento
da chamada nova classe média do ponto de vista comunicacional?
As periferias são laboratórios de
mundos e a riqueza do Brasil. Não mais os pobres assujeitados e excluídos de
certo imaginário e discurso, mas uma ciberperiferia, a riqueza da pobreza
(disputada pela Nike, pela Globo, pelo Estado) que transforma as favelas,
quilombos urbanos conectados, em laboratórios de produção subjetiva. A carne
negra das favelas, os corpos potentes e desejantes, a cooperação sem mando,
inventando espaços e tempos outros (na rua, nos bailes, lanhouses e lajes),
estão sujeitos a todos os tipos de apropriação.É que as favelas e periferias
são o maior capital nas bolsas de valores simbólicas do país, pois converteram
as forças hostis máximas (pobreza, violência, Estado de exceção) em processo de
criação e invenção cultural. Além disso, o midialivrismo ganha força na
periferias, em projetos como a ESPOCC, Escola Popular de Comunicação Crítica da
Maré, Viva Favela, Agência Redes Para a Juventude, que formam comunicadores
populares e midiativistas.
Isso tudo é muito novo no Brasil.
O Rio de Janeiro serve de exemplo. É
um termômetro da difícil e paradoxal tarefa de calibrar essa euforia pós-Lula,
do presidente Macunaíma que turbinou a periferia, e os retrocessos no governo
Dilma, que trouxe os “gestores de subjetividade”, que revertem e monetizam a
potência das favelas e periferias para o turismo, corporações, bancos e para o
consumo.O que vemos na publicidade das UPPs, da Copa do Mundo e dos shoppings é
o que chamo de inclusão visual dos jovens negros ou da cultura da periferia.
Mas os mesmos jovens são mortos pela polícia como elementos “suspeitos” nas
favelas ou impedidos de entrar nos shoppings para dar um rolezinho.
A ascensão social de jovens das
periferias tem deixado parte da sociedade em transe. Eles estão no centro da
profunda transformação social…
Aí vem a reação da Casa Grande, e a
mídia em geral amplifica esse discurso, colocando travas e controle na
mobilidade urbana e no direito de ir e vir da juventude popular. A juventude
negra e periférica vira uma “classe ameaçadora”, que não é bem-vinda nos
espaços de consumo da classe média branca. Ao estado de exceção e à violência
contra os pobres se acrescenta uma polícia que reprime o funk e os rolezinhos.
Essa incapacidade de entender as novas formas de sociabilidade e mobilidade dos
jovens traz à cena o velho horror das classes populares e o apartheid racial,
social e cultural.A ascensão social expôs a crise das cidades, a privatização
dos espaços públicos e o desinvestimento nos equipamentos de lazer. O esquema
de segurança dos shoppings, revistando e controlando os pobres, é a ostentação
do fracasso do Estado e da sociedade na partilha da cidade.
As maiores publicações do país, como
Veja, Folha de S.Paulo, Estado de S. Paulo, TV Globo, vieram a público
explicitar seus critérios editoriais. Trata-se de uma resposta às inúmeras
críticas que a imprensa vem recebendo da população?
A mídia no Brasil parece querer
substituir o Estado de direito, se vê como braço do Estado, podendo, inclusive,
colocá-lo em crise a qualquer momento. Negocia denúncias, pessimismo e
otimismo, reputações.Mal disfarça a editorialização dos fatos. Mas o mais
preocupante é quando infundem o medo das ruas, da política, dos pobres, da
juventude, da “esquerda”. Interferem e direcionam fatos e investigações,
produzem histeria coletiva e ódio a grupos e movimentos sociais inteiros. Ao
mesmo tempo são espaços de controvérsias e disputas necessárias e estratégicas,
por isso repito sempre, critica a mídia? Odeia a mídia? Torne-se mídia!
A morte do cinegrafista Santiago
Andrade e a posterior perseguição de parte da imprensa aos blackblocs são um
sintoma de um discurso midiático perdido ou, ao contrário, posicionado
estrategicamente?
Já vimos essa historia da construção
de inimigos: os comunistas, os subversivos, maconheiros e agora os blackblocs,
a ameaça que vai destruir a democracia, a Copa, a moral e os bons costumes. É
redutor demais. Vidas são demolidas nesse jogo de demonização, como vimos na
repressão brutal da polícia aos manifestantes, nas prisões arbitrárias e
mortes, nas capas sensacionalistas da Veja e primeiras páginas e editoriais de
jornais e televisões.O nível de manipulação dos fatos foi grosseiro depois da
morte do cinegrafista da TV Bandeirantes. A lei que tipifica terrorismo, que
querem votar a toque de caixa, e a pauta do medo buscam esvaziar e mudar foco
das justas reivindicações para o comportamento dos manifestantes. E a mídia vem
legitimando a desproporcional repressão policial, pouco questionada nos
noticiários corporativos.Temos uma polarização das ruas contra a associação
Mídia-Estado-Polícia, um confronto que produz avanços e retrocessos.
A Mídia Ninja, que podemos chamar de
filha pródiga do movimento Fora do Eixo, nasceu e ganhou muita evidência
durante as manifestações de junho de 2013. A sra. vê a Mídia Ninja e suas derivações
como o futuro da comunicação?
Um dos efeitos dos protestos de 2013
no Brasil foi a explosão das ações midiativistas. A Mídia Ninja fez essa
disputa de forma admirável, amplificando a potência da multidão nas ruas. Ela
passou a pautar a mídia corporativa e os telejornais ao filmar e obter as
imagens do enfrentamento dos manifestantes com a polícia, a brutalidade e o
regime de exceção. O papel dos midialivristas e dos coletivos e redes de mídias
autônomas não pode ser reduzido ao campo do jornalismo, mas aponta para um novo
fenômeno de participação social e de midiativismo (que usa diferentes
linguagens, escrachos, vídeos, memes, para mobilizar). A cobertura colaborativa
obtém picos demilhares de pessoas online, algo inédito para uma mídia independente.
Nesse sentindo a comunicação é a própria forma de mobilização.
E o Fora do Eixo?
O Fora do Eixo é um laboratório de
experiências culturais e de invenção de tecnologias sociais radicais, que
conseguiu transformar precariedade em autonomia. Ele inventou uma forma de
viver coletiva e restituir o tempo que o capital nos rouba de uma forma que me
toca e mobiliza. As causas políticas que defendem são as minhas e as de muitos:
mídia livre, governança, democracia direta, combate a desigualdade e aos preconceitos,
defesa da vida, potencialização da autonomia, da liberdade, economia
colaborativa, invenção de mundos.
O Fora do Eixo possibilita que jovens
dispensem empregos “escravos” ou precários na mídia tradicional, em produtoras
comerciais, agências de publicidade, ou qualquer emprego fordista, e passem a
inventar a sua própria ocupação. Conheço o Fora do Eixo desde 2011. Na
prática,são uma rede de mais de mil jovens que revertem seu tempo e vida para
um projeto comum com um caixa coletivo único que paga comida, roupa e casa
coletiva, sem salário individual e um projeto comum. Eles não têm medo de
dialogar com os poderes instituídos, ao contrário de um certo discurso
midiático que procura criar um grande horror à política, que só afasta os
jovens e muitos de nós das disputas.
E isso tem muito a ver com as suas
pesquisas não se intimidam em enxergar novos dispositivos, conceitos e
instrumentais, redes sociais. Qual é a resposta que a sra. procura?
Antes de tudo, viver e lutar por uma
vida não fascista,no sentido colocado por Michel Foucault, de lutar contra o
“fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos
explora”. Quero experimentar uma vida menos “normopata”, uma erótica do contato
que restitua o prazer de vivermos juntos.Sou fascinada pelos dispositivos e a
forma como coevoluímos com eles, reinventando o social, produzindo novos
prazeres e angústias, sem deixar de perceber como também expropriam o nosso
tempo, nossa libido, nossa energia e nos colocam para trabalhar num novo regime
de exploração da vida, brutal.
Tudo isso está provocando uma mutação
antropológica. Acompanho e vivo de dentro esses atravessamentos. Recuso
transformar os conceitos em juízes das experiências, o intelectual “justiceiro”
que se vê ao largo, acima, distante dos fenômenos que analisa e estuda. Não
tenho mais objetos de estudo, mas parceiros que me estimulam. Fiz a passagem
para o que chamo deteoriativismo ou o tédio da erudição. No que faço está
implicado todo o meu corpo e a minha vida. Como diria Nietzsche, ignoro o que
sejam problemas puramente intelectuais.
Não lhe preocupa a difusão
generalizada de manifestações rancorosas, preconceituosas, de baixíssima
qualidade nas redes sociais?
As redes sociais têm tudo o que a
sociedade tem: discursos de ódio, racismo, preconceito, desinformação, mas
trazem a possibilidade veloz e massiva de combate e de embate. Não vejo os
jornais e a mídia supereditorializada como “mais qualificada”. Ao contrário, um
erro, uma distorção de análise, a manipulação de fatos, o sensacionalismo são
questionados nas redes e não nas redações… Se esse novo ambiente produz
venenos, ele cria com a mesma velocidade os anticorpos.
Há pouco, a sra. tangenciou o tema da
Copa do Mundo no Brasil. Qual a sua opinião sobre esse tema? #NãoVaiTerCopa é
algo a ser defendido?
O "Não-Vai-Ter-Copa" deixa irada a
direita, a esquerda clássica e o governo ao seu simples enunciado. Eles e a
mídia corporativa vão errar de novo, como erraram feio no inicio das
manifestações em junho de 2013, com a histeria repressora e condenatória. O
#NãoVaiTerCopa alarga o campo da democracia ao explicitar o dissenso, ao
arriscar pensar diante de um fato consumado e de um processo que colocou os
interesses empresariais, lobbystas e midiáticos acima dos direitos básicos. Vai
ter Copa sim, mas não vai ter a Copa sonhada pela polícia de ordenamento e pelo
ufanismo e desenvolvimentismo ultrapassado.
Os “idiotas da objetividade”, como
dizia Nelson Rodrigues, são os que não conseguem ver que pós-junho de 2013 o
Brasil provou que não existe incompatibilidade entre torcer pelo Brasil no
futebol e fazer política. Ou seja, Vai Ter Copa e Não Vai Ter Copa.
Particularmente vou torcer e participar para que ocorram manifestações e vou
torcer pelo Brasil em campo. Essa é uma das formas de consolidar e aprofundar a
jovem e provocativa democracia brasileira.
Tivemos um beijo gay numa novela
global, casamento entre homossexuais é defendido abertamente por jornais, novas
formações familiares passaram a ser aceitas. Já podemos comemorar ou ainda
falta muito para termos uma sociedade mais tolerante?
O beijo gay na novela global faz parte
das expressões da luta por direitos e narrativas afetivas novas. Em terra de
Marco Feliciano, o beijo gay é político, é “fashion”, mas ainda estamos muito
aquém de uma cultura não homofóbica, não racista, menos patriarcal e machista,
ou que aceite a autonomia e liberdade das mulheres.O gay família, a lésbica
fashion, o traveco amigo, os homens, as mulheres, os jovens, só têm um destino:
o amor romântico em casal. Tabu é ter um relacionamento livre e autônomo. Está
faltando um Nelson Rodrigues, mas um Lars von Trier também serviria, para fazer
a narrativa dos novos tempos e nos atualizar de nós mesmos.
A sra. citou a necessidade de uma
sociedade menos patriarcal e machista. A mulher continua tendo muito mais
obrigações do que direitos.
Os homens continuam em pânico com a
autonomia das mulheres. Um dia sexo vai ser considerado modalidade esportiva e
prostituição (masculina e feminina), serviço e profissão de utilidade pública.
Essa era uma das causas da Gabriela Leite, mulher e ativista admirável que
criou a ONG Davida e a grife Daspu e morreu aos 62 anos. Moça de classe média
que escolheu ser puta.O deputado Jean Wyllys apresentou no Congresso o projeto
dela, que regulamenta a atividade dos profissionais do sexo. Uma causa que vale
uma vida. E além dos evangélicos e cristãos ainda tem feminista que é contra
regulamentar a profissão.
Tomo esse exemplo para dizer que as
lutas das mulheres passam por aceitar essas diferenças. Admiro as meninas do
funk que ressignificaram o feminismo nas favelas, ao fazerem a crônica sexual a
quente da periferia de forma explícita, como Tati Quebra Barraco, que considero
uma Leila Diniz dos novos tempos. Há os que pensam que ao se colocarem como
protagonistas da cena sexual, as meninas do funk só ocupam o lugar de poder dos
homens. Na verdade, é um discurso radical de autonomia e de liberdade que,
vindo das mulheres, subvertendo o sentido de “cachorras” e “popozudas”, coloca
o preconceito e o machismo de ponta cabeça. Vivemos um tempo difícil, mas
apaixonante.
A educação no Brasil melhorou ou
piorou durante a administração petista?
Melhorou e muito. Não tem comparação
os investimentos que foram feitos na educação pública e nas universidades
públicas no governo do PSDB e na administração do PT. Fiz concurso público e
comecei a dar aulas na UFRJ no governo de FHC e foram 8 anos de sucateamento
com as universidades à míngua. O governo Lula reinvestiu nas universidades
públicas criando 14 novas universidades federais e 100 campi pelo interior do
país e também investiu fortemente nas Escolas Técnicas e Institutos Federais. O
programa do Reuni de reestruturação do espaço físico, expansão das vagas e
criação de novos cursos foi vital para as universidades federais. Só a Escola
de Comunicação ampliou em mais de 30 o número de professores por concurso
público, ampliou vagas, contratou-se técnicos etc. Claro que existem problemas
nessa expansão, mas foi decisiva e mudou o cenário radicalmente.
Outras duas ações decisivas foram o
Prouni (que abriu 700 mil vagas para jovens nas universidades particulares) e
as cotas raciais e sociais, que trouxeram novos sujeitos sociais, vindos das
camadas populares, para dentro da universidade. Ao contrário dos que temiam os
defensores de uma abstrata “meritocracia”, que o nível de ensino iria “cair”,
que iria se “nivelar por baixo” para atender aos pobres, os cotistas
surpreenderam e o que estamos vendo é o contrário. A disputa na produção do
conhecimento feita por novos sujeitos políticos. Poderia ainda falar do Enem
que articulou a entrada unificada para a rede de universidades públicas. Hoje
recebemos na ECO estudantes de todo o Brasil.
Sobre o ensino básico e fundamental
acompanhei alguns debates e desafios enormes que precisam ser enfrentados,
entre eles o fato da escola fordista e disciplinar, a “creche da tia Teteca”, o
ensino sem corpo, sem desejo, sem participação dos estudantes ter se tornado
obsoleto e ineficaz. O desafio de diminuir drasticamente o analfabetismo no
país passa não só por mais investimento na carreira e salário dos professores,
mas por uma mudança de mentalidade, não dá mais pra insistir no modelo da
decoreba e do “vovô viu a uva” num contexto de ampliação de repertórios e de
universalização da cultura digital, em que oralistas dominam, sem passar pelo
letramento, a cultura audiovisual e digital.
A sra. votou em Dilma Rousseff? Qual a
sua avaliação do primeiro governo dela?
Votei na presidenta Dilma esperando
uma radicalização e aprofundamento das políticas iniciadas no governo Lula, mas
o círculo virtuoso se rompeu em diferentes pontos. Tivemos retrocessos absurdos
nas políticas culturais, enfraquecimento do Programa Cultura Viva, que deu
protagonismo à produção dos Pontos de Cultura, vinda das bordas e periferias,
retrocesso no diálogo com os movimentos sociais e culturais. O Brasil que
estava na vanguarda de alguns processos, com a estabilidade econômica e
emergência de novos sujeitos sociais e políticos pós-redistribuição de renda,
apresenta uma reconfiguração do campo conservador, minando todo um capital
simbólico e real construído.
Estou falando de projetos engavetados
como a Reforma da Lei dos Direitos Autorais, os retrocessos no Marco Civil para
a Internet, a Lei Geral das Comunicações, obsoleta e concentracionista, que
continua intocável, o plano de barateamento e universalização da Banda Larga
pífio, o retrocesso no Código Florestal, a inexistência de propostas para a
legalização do aborto e legalização das drogas.
O projeto nacional-desenvolvimentista,
fordista, da presidenta Dilma, que investe em automóvel, hidrelétrica,
petróleo, passando por cima da maior riqueza brasileira, que é seu capital
cultural, ferindo direitos, destruindo o meio-ambiente, é insustentável. O
maior paradoxo do desenvolvimentismo é querer transformar a cosmovisão
indígena, a produção da periferia, em “commodities”, faturar a riqueza
cultural, vender as favelas e sua cultura como pitoresco, os indígenas como
exóticos, a carne negra como produto desejável e fashion, mas deixar isolados e
sem autonomia esses mesmos sujeitos políticos, destituídos dos seus direitos,
assujeitados, ou tornados corpos dóceis.
Nesse momento, continuo filiada ao PT,
partido para onde entrei em 2011, no auge da crise do Ministério da Cultura,
com a nomeação catastrófica da ministra Ana de Hollanda. Entrei para criticar e
disputar de dentro avanços nas políticas públicas e para discutir as novas
relações de poder nas cidades, a emergência do trabalho informal e do
precariado em diferentes campos, a produção social que é a nova força de
transformação dentro do próprio capitalismo e para pensar a cidade e a
sociedade que queremos.
O governo Dilma é sustentado hoje por
uma coalizão conservadora. Então oscilo entre o hiperativismo pessimista (não
vai avançar, mas vamos tensionar ao máximo) e o otimismo crítico, que vai
guinar para esquerda, sob a pressão das ruas.
É com angústia que vejo o PT, partido
com a maior base social do Brasil, abandonar pautas e avanços históricos. Por
isso, estou no PT criticando de dentro, mas, ao mesmo tempo, faço parte do
conselho do mandato do deputado Jean Wyllys, parlamentar extraordinário. E
votei em Marcelo Freixo, ambos do PSOL. Acredito cada vez mais em frentes
suprapartidárias em torno das pautas e questões que nos interessam e na
transformação dos partidos e do Estado em redes de colaboração e num
Estado-Rede, co-gerido pela sociedade.
Vejo a democracia direta e
participativa como horizonte da política, mas enquanto isso, luto para que o
atual sistema partidário, inclusive o governo Dilma, incorpore as pautas e
questões urgentes que emergiram nas ruas. Temos que sair do infantilismo
político e purista que é o compromisso atávico com o inviável, pois a
governança e a democracia direta vão brotar da remediação e ruptura com o atual
sistema partidário. Votando ou não votando no PT, as ruas são ingovernáveis e
temos que lutar contra a financeirização da vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário