Ricardo Mendonça,
F.d.S.P.
A antropóloga
Manuela Carneiro da Cunha, uma das mais influentes estudiosas da questão
indígena no país, acusa a gestão Dilma Rousseff de promover um
desenvolvimentismo de "caráter selvagem", sem "barreiras que
atendam a imperativos de justiça, direitos humanos e conservação". Após citar
"uma ofensiva sem precedentes no Congresso contra os índios", ela
chama a atenção para um projeto de lei --alçado ao status de urgência "com
o beneplácito do líder do governo"-- que permitiria o uso de terras
indígenas para diversas finalidades, da construção de hidrelétricas à reforma
agrária. "Se passar, será a destruição dos direitos territoriais
indígenas", diz.
Outro alerta é
para a proposta que tenta tirar do Executivo a responsabilidade exclusiva pelas
demarcações, passando atribuições ao Congresso. Isso, diz, fará com que a
demarcação "deixe de ser uma atividade de caráter eminentemente técnico e
passe a ser exclusivamente político". Cunha também tem críticas ao
Judiciário. Ela fala numa "tendência crescente e preocupante" de
paralisar processos de demarcação em seu início. E estima que, hoje, 90% das
terras em fase de demarcação estão judicializadas.
Folha - O que distingue o governo Dilma dos
anteriores na questão indígena?
O problema não
é o desenvolvimentismo em si, mas seu caráter selvagem: a ausência de barreiras
que atendam a imperativos de justiça, de direitos humanos, de conservação.
Custos humanos e ambientais não estão sendo considerados.
Assiste-se
agora a uma ofensiva sem precedentes no Congresso contra os índios. São vários
projetos que destroem garantias que a Constituição de 1988 assegurou. E a
União, que é a tutora, portanto a protetora dos direitos indígenas, não se
ergue contra isso.
A própria AGU
(Advocacia-Geral da União), que se pautava por uma tradição de defesa dos
direitos indígenas, se aliou à bancada ruralista quando editou a infeliz
portaria 303 (norma que estende para todas as demarcações as 19 condicionantes
criadas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do caso Raposa Serra do
Sol, de Roraima).
Como interpretar as recentes ações do
governo?
Assim, na
última quarta deu-se uma manobra escandalosa na Câmara: aprovou-se colocar em
votação por acordo de líderes, e com o beneplácito do líder do governo, o
regime de urgência para o Projeto de Lei Complementar 227/2012, que
regulamentaria o parágrafo 6 do artigo 231 da Constituição, aquele que trata
das terras indígenas.
O que significa?
Esse parágrafo
abre uma exceção nos direitos de posse e usufruto exclusivo dos índios quando
se tratar de relevante interesse da União.
O projeto, de
autoria do vice-presidente da Confederação Nacional da Agricultura, pretende
definir o que seria relevante interesse público da União. É assombrosa essa
definição: praticamente tudo nela cabe. Permitiria que em terras indígenas
passassem estradas, oleodutos, linhas de transmissão, hidrelétricas, ferrovias.
Pela primeira vez a Dilma ouviu os líderes indígenas |
Permitiria que
se concedessem áreas a terceiros em faixas de fronteira, que se mantivessem
posseiros, agrupamentos urbanos, assentamentos de reforma agrária e até novos
assentamentos. Permitiria que se mantivessem todas as terras sob domínio
privado quando da promulgação da Constituição de 1988.
Permitiria tudo?
As condicionantes do STF e a portaria da
AGU que a senhora citou foram muito criticadas por indígenas e antropólogos.
Quais são os problemas?
Várias dessas
condicionantes surgiram como uma forma de permitir um consenso entre os
ministros do STF em relação ao caso Raposa Serra do Sol. Quando a
Advocacia-Geral da União quis estender a outros casos essas condicionantes, que
ainda dependem de uma análise mais aprofundada do próprio Supremo, e que foram
estabelecidas para aquele caso concreto, ela tentou consolidar abusivamente uma
interpretação desfavorável aos índios.
Cite um exemplo
O governo quer envolver a Embrapa, entre
outros órgãos, nos processos de demarcação. Para alguns, há uma tentativa de
enfraquecer a Funai. Qual a opinião da senhora?
Marta Azevedo
(presidente da Funai que deixou o cargo em junho) anunciou desde sua posse que
daria prioridade à situação nas regiões onde se concentram os interesses dos
fazendeiros. Foi um feito no ano passado conseguir a desintrusão, após 20 anos,
da área Xavante Marãiwatsede. Com isso, cutucou-se a onça com vara curta.
Há vários modos
da mão direita do governo enfraquecer a causa dos índios. Uma é retirando
atribuições da Funai. Outra é deixando-a sem dinheiro. E outra ainda é
colocando como presidente alguém a serviço de outras agendas.
Corre o boato
de que o senador Romero Jucá (PMDB-RR), que firmou sua carreira política como
presidente da Funai e cuja atuação foi muito criticada, gostaria de colocar no
posto uma pessoa sua.
Ganha força no Congresso a ideia de tirar
do Executivo a responsabilidade exclusiva pelas demarcações. Que tal?
Seria colocar a
raposa para cuidar do galinheiro. A demarcação deixa de ser uma atividade de
caráter eminentemente técnico, como é hoje, e passa ser exclusivamente
política.
Mas o Projeto
de Lei Complementar 227/2012 (que define bens de interesse da União para fins
de demarcação) é muito mais grave. É um rolo compressor esmagando a
Constituição Federal.
Em que medida o Poder Judiciário é
corresponsável pela demora nas demarcações e pelos conflitos?
Estima-se que
que pelo menos 90% das terras em processo de demarcação estão judicializadas.
As demoras são às vezes absurdas. No sul da Bahia, o caso Pataxó levou quase
100 anos para ser julgado pelo STF. No Mato Grosso do Sul existem casos que
estão há mais de 30 anos em processos judiciais.
Há uma
tendência crescente e preocupante do Judiciário de paralisar processos de
demarcação administrativa logo em seu início, com base na simples apresentação
de títulos de propriedade dos fazendeiros. Teses que há alguns anos atrás não
vingavam, por não serem condizentes com a Constituição, começam a ganhar espaço
no Judiciário.
Isso tem
atrasado muitos processos demarcatórios, em todas as regiões do país, e
contribuído para aumentar o grau de conflito em muitos casos. É o que vem
ocorrendo no Mato Grosso do Sul.
Justiça que
tarda não é justiça. No caso dos guaranis e caiovás do Mato Grosso do Sul, há
gerações inteiras que nunca puderam viver sua cultura. A organização social
tradicional não tinha como ser mantida, costumes e rituais ligados à cultura do
milho não puderam ser realizados. Isso não seria etnocídio?
Há relação entre a morte de um terena no
Mato Grosso do Sul por forças policiais numa reintegração de posse de uma área
já declarada indígena e os protestos de mundurucus em Belo Monte, no Pará?
No Mato Grosso
do Sul consumou-se um esbulho de terras que vitimou em particular os terenas e
os caiovás. Estes, aliás, em situação muito pior do que a dos terenas. Esse
mesmo processo, que já estava em vigor no chamado arco do desmatamento, no
norte de Mato Grosso e sudeste do Pará, está agora atingindo o sudoeste do Pará
e do Amazonas, ou seja, o Tapajós, onde vivem os mundurucus.
Em suma: os
mundurucus podem bem ser os caiovás e terenas de amanhã. E os caiovás têm uma
média de 0,5 hectare por família (índice considerado abaixo do mínimo
necessário para a própria subsistência).
O governo anunciou que vai indenizar
fazendeiros em Sidrolândia (MS) que estão em área já declarada de terenas.
Antes, as autoridades diziam que não havia respaldo legal para esse tipo de
solução. O que mudou?
Os títulos eram
irregulares na medida em que incidiam sobre terras indígenas. Portanto, não se
aplica a todas as áreas onde exista conflito com particulares, mas só naquelas
onde a União está na origem do conflito, repassando terras indígenas a
terceiros.
Para isso não é
necessário mudar uma vírgula da legislação vigente. Depende apenas da
consolidação de um entendimento jurídico pela AGU e de vontade política de
desembolsar os recursos.
O que o
ministro Gilberto Carvalho (Secretaria Geral) anunciou é a possibilidade de
usar recursos do Tesouro para compensar por títulos de boa fé que alguns
fazendeiros possuem em terras que estão judicializadas no Mato Grosso do Sul.
Os Estados
também emitiram títulos sobre terras indígenas, e muito. No Mato Grosso do Sul,
a Assembleia Legislativa aprovou por unanimidade a criação de um fundo para
compensar em dinheiro títulos de boa fé em terras indígenas. É uma solução
semelhante à que o governo federal está propondo. Mas o fundo do Mato Grosso do
Sul não tem um tostão. No caso da União, já há uma emenda parlamentar aprovada
que destina R$ 50 milhões para acordos.
O importante
agora é priorizar os casos mais dramáticos que envolvem os caiovás. E impedir o
favorecimento de grandes fazendeiros e a abertura de uma nova indústria de
indenizações, que já sangrou o Tesouro na década de 80.
Gilberto Carvalho também disse que o Brasil
está prestes a deixar a lista dos países acusados de desrespeitar a Convenção
169 da OIT, documento que prevê consulta prévia aos indígenas antes de decisões
que possam afetar seus direitos, como a construção de hidrelétricas. Há motivo
para comemorar?
A Secretaria
Geral da Presidência vem fazendo um trabalho admirável dentro do governo,
tentando promover a regulamentação da consulta prévia aos povos indígenas, como
determina a Convenção 169. Mas falta combinar com o restante do governo, que
age em sentido contrário.
Veja o caso da
implantação de hidrelétricas goela abaixo dos povos indígenas no Tapajós: o
governo diz que quer consultá-los sobre o complexo de hidrelétricas, mas ao
mesmo tempo já marca data para o leilão e inclusive para a emissão da licença
ambiental das que ele considera principais. Que consulta é essa?
Uma verdadeira
consulta se dá nas comunidades -e não só com as lideranças ou organizações
indígenas-, no tempo delas e em língua que elas entendam e possam se expressar.
E não pode ser uma atividade pontual, e sim um processo que acompanhe todas as
fases do projeto.
Se está tudo
decidido de antemão, vai-se consultar os índios sobre o que? Se querem
bolsa-pescado ou tanques de piscicultura depois que os peixes do rio sumirem? A
cor da parede da barragem?
Isso
provavelmente incluía o que (o antropólogo) Darcy Ribeiro chamou de
"índios genéricos", aqueles que, sendo descendentes de índios, não
viviam em aldeias nem conheciam os povos a que pertenciam seus pais ou avós. É
o que explicaria 60 mil pessoas que se declararam indígenas em São Paulo no
Censo de 2000.
Já no Censo de
2010, é possível que o fato de se perguntar também a etnia e a língua indígena
que se falava tenha inibido a auto-declaração desses descendentes de índios.
Uma parte da variação resultou, portanto, do próprio Censo.
Mas, desde
1991, observa-se um crescimento demográfico maior da população indígena do que
aquele da população não indígena.
O crescimento
entre 1991 e 2000 foi da ordem de 3,5% ao ano em média, e o ocorrido entre 2000
e 2010 foi também dessa mesma ordem. Mas mantem-se um diferencial na mortalidade
infantil: os indígenas ainda possuem uma taxa de mortalidade infantil muito
maior do que aquela verificada entre os negros e brancos e amarelos.
Estamos
assistindo a um remake do Brasil passado, como se o século 20 nunca houvesse
existido. Voltamos a ser exportadores de commodities, voltamos a explorar
riquezas sem consideração pelos custos humanos e ambientais. E voltamos também
ao expediente dos séculos 16 e 17: afirma-se o princípio, mas abrem-se exceções
que o tornam inócuo.
É o que tenta
fazer o Projeto de Lei 227/2012: define o relevante interesse da União com tal
latitude que as garantias constitucionais dos índios se tornam letra morta.
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