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A construção do "bem viver" hoje


Rafael Fellmer, que vive há muitos anos sem dinheiro, inspirou partes dessa reflexão sobre o "bem viver". Vale a pena ouví-lo!





Este texto representa fragmentos da quarta parte da minha palestra “Sonhar uma nova realidade do `bem viver´”, que foi apresentado no dia 4.09.2014 durante o XXXVIII Congresso de Teologia Moral, realizado em São Paulo, com o tema: “Ética teológica e transformações sociais: A utopia de uma nova realidade”.


4. Passos construtivos ao encontro do “bem viver”

O conceito do “bem viver” não é uma receita ou um manual de aplicação, mas um horizonte que nos faz caminhar, discernir e lutar. O “bem viver” não nos leva de volta à pré-modernidade. Pelo contrário, é a realização dos ideais da modernidade: igualdade, liberdade, solidariedade. A igualdade exige a redistribuição dos bens do planeta (terra, água, ar) e a implementação dos direitos humanos para todos, a liberdade requer a participação da sociedade civil na gestão da “res pública”, e a solidariedade, hoje, significa: reconhecimento do outro e da outra em todas as dimensões da vida humana.

A seguir, alguns trilhos dessas lutas que nos aproximam do “bem viver”. Através do ser-vir, o vir a ser cai na realidade da história por pequenas frestas que permitem a passagem de raios de luz e mostram os contornos embaçados da nova realidade. A partir do sofrimento dos pobres, do desprezo dos outros e das patologias que ameaçam o “bem viver” de todos, assumimos a responsabilidade de construir a nova realidade histórica que exige de nós, não pequenos reparos sistêmicos ou pessoais, mas uma virada cultural que repercuta em todos os subsistemas sociais (econômico, político, religioso) e pessoais (psicológico, ético).

As ameaças impostas ao imaginário e à realidade do “bem viver” permitem traçar trilhos para sua realização. Quais são essas ameaças? Quero destacar apenas duas delas, nas quais se insere o restante das causas do “mal viver” da humanidade como um todo.
O nosso “bem viver” é ameaçado coletiva e individualmente pelo crescimento econômico e pela aceleração das funções naturais e culturais da nossa vida cotidiana, desde a clínica do nascimento, passando pela escola e os locais de trabalho e lazer, até o asilo da nossa velhice, sempre somos rodeados por pessoas que olhem no relógio e nos fazem entender que, o que poderia ser nosso encontro com eles, é apenas um pit-stop de Fórmula 1.

Quero, em seguida, sonhar e descrever o “bem viver” como um trem montado em dois trilhos:

- no trilho de uma economia do decrescimento para chegar ao pós-crescimento, incluindo nesse trilho a redistribuição dos bens do planeta para todos;
- e no trilho da desaceleração das funções de trabalho e das relações humanas que permitiria o reconhecimento e, portanto, o encontro do outro e não nos obrigaria a substituir o “encontro” pelo “atendimento concomitante”, um pelo smartfone, outro pelo e-mail, e outro, ainda, no guichê da bilheteria.

4.1. Do decrescimento

A crise energética e a ameaça de um colapso da biosfera com seu impacto sobre o clima, fizeram emergir o paradigma de um “capitalismo verde”, de um “crescimento sustentável”, sem carbono, através de hidrelétricas, ou outras energias alternativas, como a chamada bioenergia do etanol, a energia eólica e a solar.

Por cinco motivos, a meta do capitalismo verde (etanol, hidrelétricas, energia eólica e solar, PSA) não é o “bem viver” para todos:

- primeiro, o crescimento capitalista só funciona na base da competição que produz vitoriosos e perdedores;
- segundo, o crescimento capitalista, necessariamente, é um sistema de saque e pilhagem à natureza, cujas reservas são esgotáveis;
- terceiro, o capitalismo globalizado, sempre em busca de incorporação (colonização) de novos territórios, produz recantos de exploração extrema da mão de obra humana nos confins do mundo e no meio de nós, desde a China até os esconderijos de trabalho de bolivianos no bairro do Brás, em São Paulo;
- quarto, a competição - pela individualização da luta pela sobrevivência e dos processos de produção -, destrói a coesão social da sociedade;
- quinto, o capitalismo verde também é capitalismo, e como tal, é incapaz de romper com o paradigma do crescimento econômico.

Na construção do “bem viver” não se trata da aplicação de terapias, de dietas light, de exercícios esportivos ou de práticas meditativas, que nos fazem funcionar melhor no interior do sistema, mas de uma ruptura sistêmica com o nosso estilo de vida. A estrutura do “bem viver” pode ser pensada somente no interior de uma cultura de suficiência (modéstia, sobriedade) e subsistência regionalizadas. A cultura de suficiência vai reduzir as nossas demandas do supérfluo ao necessário, e a cultura de subsistência vai recuperar a bricolagem de uma criatividade caseira, que pode substituir metade das nossas aquisições de novos objetos (desejos) pelos concertos que nós ou nossos vizinhos (em reciprocidade) são capazes de fazer.

Em consequência disso, o “bem viver” não vai exigir que trabalhemos 40 horas por semana. Trabalho não será apenas trabalho salarial. Haverá, como nas aldeias indígenas, fronteiras líquidas entre trabalho e lazer. O trabalho pode ser prazeroso.

O impacto da cultura da suficiência sobre o trabalho salarial e a produção industrial (poluidora), se sustenta em três novos comportamentos:

- muitos dos objetos que compramos podem, com mais prazer, ser produzidos em nossa casa ou em nosso quintal;
- muitos dos objetos que jogamos fora, e substituímos por novos, podem ser consertados por nós mesmos;
- muitos dos objetos de que necessitamos para o nosso dia a dia podem ser emprestados dos vizinhos e, na reciprocidade do “bem viver”, vamos disponibilizar nossos objetos (bicicleta, liquidificador, carro) a eles. Essa reciprocidade vai quebrar a lógica da riqueza privada.

Em grande parte, a cultura da suficiência e seu sustento econômico serão regionais. Não vamos abrir mão da internet, mas podemos dispensar a importação das figuras do presépio, do guarda-chuva e da nossa camisa dominical da China, onde são fabricados por salários e condições sociais vergonhosos. Como o transporte causa enormes custos ecológicos, precisamos fortalecer as economias regionais. A cultura da suficiência e subsistência nos orienta para:

- a aquisição de produtos e tecnologias simples de longa duração;
- a redução da dependência de redes externas de produção;
- a redução do consumo excessivamente diversificado (“butique de pão!”), que encarece os produtos.
O “bem viver” exige a ruptura do círculo vicioso entre crescimento e aceleração.

4.2. Da desaceleração

Em seu “Plano Colonizador”, de 1558, que é um “Plano Civilizador”, Manuel da Nóbrega pede para o abastecimento do Colégio da Bahia “duas dúzias de escravos de Guiné” (n. 24) e para a Igreja pede “sino”, “relógio” e “campainha” (n. 27). A civilização substitui o ócio, permitido pela natureza, pelo tempo cronometrado do trabalho, da reza, do estudo e do lazer. Com a colonização disciplinadora, segundo Nóbrega, se ganha “muitas almas” (n.5) e “muito ouro e prata” (n.5).

A “colonização disciplinadora”, hoje, tem o nome de globalização econômica e cultural, que é atravessada pelos eixos do crescimento e da aceleração. O ato revolucionário não é mais, como Marx pensava ser, “a locomotiva da história”, mas, no dizer de Walter Benjamim, “talvez seja tudo muito diferente, e as revoluções representem tentativas feitas pela humanidade, que viaja nesse trem, de puxar o freio de emergência”.

A abundância do etanol disponível, produzido com incentivos fiscais do governo, permite pisar fundo no acelerador do carro. Etanol e tênis, que são meios de aceleração coletiva e individual, conotam duas dimensões do “freio de emergência” necessário na construção do “bem viver”: o freio do consumo e, ligado a ele, a produção energética (Etanol), e o freio de tudo aquilo que é simbolizado pelo fetiche da velocidade individual, através do tênis.

Nenhum partido político, com mínimas chances de se eleger, vai hoje apoiar nosso modelo do “bem viver”, com seus pressupostos de crescimento zero e desaceleração. Os aliados mais confiáveis, na construção da nova realidade do “bem viver”, são os que sofrem. O sonho de uma nova realidade do “bem viver” de todos há de ser visto a partir da vida cotidiana daqueles que sentem em seus corpos e almas a distância estrutural da realidade do “bem viver”. No seu grito de um “basta”, seguido por lutas em todos os níveis da existência humana, está a força que pode “desmascarar as ideologias, que naturalizam as patologias, e desconstruir o consentimento alienado em dor histórica. A dor é sinal [...] que na vida danificada subsistem razões para viver, não para viver de qualquer jeito, mas para uma vida intacta e verdadeira”. No grito do basta se encontram “estilhaços de racionalidade e fragmentos de esperança” para a construção do “bem viver”. Lutas sociais fazem questionar a dor historicamente imposta, não pela natureza ou pela vontade de Deus, mas por aquela parcela da sociedade que faz da dor alheia um negócio. A memória dos pobres e a simplicidade de seu “bem viver” apontam para lutas históricas que podem nos aproximar ao “bem viver” de todos. Nós, que temos o privilégio do saber, temos também o dever de agir.


XX Assembleia Geral do Cimi: a longa caminhada ao Bem Viver




Com a presença de 120 missionários e missionárias, além de lideranças indígenas e convidados, o Cimi realizou sua XX Assembleia Geral, no Centro de Formação Vicente Cañas, em Luziânia (GO), entre os dias 5 a 8 de novembro. O evento tem como tema ‘40 anos do Cimi: desafios e perspectivas na construção do Bem Viver’.




“O encontro acontece num contexto de grande ofensiva aos direitos dos povos indígenas pelo governo federal e pela bancada ruralista no Congresso Nacional. Este ano tem sido de resistência do movimento indígena e das organizações que os apoiam. Precisamos, então, olhar para o passado, agir no presente e nos preparar para o que virá”, declarou o secretário executivo do Cimi, Cleber Buzatto.


“O indigenismo do Cimi é libertador, em oposição ao indigenismo de tutela do Estado. Em âmbito nacional existem 32 conselhos e duas comissões nacionais: a de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) e a de Política Indigenista (CNPI). Por que apenas estas duas não obtiveram o status de conselho?”, questiona o missionário Saulo Feitosa, secretário adjunto do Cimi.
O tema da XX Assembleia aponta para a finalidade do Cimi: ajudar manter ou voltar ao Bem Viver dos povos indígenas. Esse bem viver passa pela defesa de seus territórios e pelo respeita às suas culturas.
Em entrevista a Unisinos, o assessor teológico caracterizou alguns aspectos desse Bem Viver:




Quais são os aspectos centrais da concepção indígena do Bem Viver?


Os aspectos centrais da concepção indígena do Bem Viver podemos resumir com cinco palavras-chave: utopia, comunidade, harmonia, simplicidade e ruptura. O Bem Viver (sumak kawsay) é uma utopia, muito próxima à utopia do Reino de Deus que em sua plenitude é escatológica. A utopia é crítica face à situação atual, com suas ideologias, falsas promessas e alienações e, como tal, não é um retrato de uma sociedade ao alcance de todos e todas aqui e agora, mas um dispositivo no imaginário da humanidade que faz as pessoas caminhar rumo a um futuro almejado e possível para todos e todas. Em doses homeopáticas e na simplicidade da vida cotidiana em comunidade, esse futuro já se revela na energia e na harmonia comunitárias, no viver como conviver e na ruptura (Patchakutik) com as patologias sistêmicas.





Como foi a origem dessa longa caminhada?

Iniciamos essa caminhada com “Consultas Latino-Americanas de Pastoral Indígena”. Percebemos que Brasil precisa caminhar em sua pastoral indigenista junto com os países, nos quais os povos indígenas representam um peso populacional maior. Tomamos contatos com as pastorais indígenas dos outros países e, em 1983, em Brasília, realizamos a Primeira Consulta Latino-Americana de Pastoral Indígena, com a participação de 15 países. Seguiram outras consultas e realizamos cursos do Norte ao Sul do Continente que mais tarde cederam lugar aos encontros de Teologia Índia. Percebemos que o protagonismo da Pastoral Indígena deve ser cada vez mais dos próprios povos indígenas e estes transformaram “nossa” pastoral indígena em “sua” teologia índia.


O primeiro Encontro Continental de Teologia Índia se realizou no México (1990) e trabalhou: “A metodologia da Teologia Índia”; o segundo aconteceu no Panamá (1993) e refletiu sobre “A experiência de Deus nos projetos de vida de nossos povos”; o terceiro, na Bolívia (1997), teve como tema: “Sabedoria indígena, fonte de esperança”; o quarto, no Paraguai, (2002), se colocou “Na busca da terra sem males”; o quinto, realizado no Brasil (Manaus 2006), dialogou sobre “A força dos pequenos, vida para o mundo”; o sexto, se celebrou em El Salvador (2009) e discutiu a “Mobilidade humana, desafio e esperança para nossos povos indígenas” e o sétimo encontro foi realizado, com a participação de 250 líderes indígenas, no Equador (2013), onde se aprofundou o tema “Sumak kawsay e vida plena”. O VIII Encontro Continental de Teologia Índia, provavelmente, vai ser celebrado na Argentina.



Sonho e horizonte se revelaram palpáveis.







Terminou a 2ª Assembleia dos Povos indígenas de Goiás/Tocantins. Foi um evento marcante para todos os participantes: memória de muitas lutas, convocação para fortalecer a organização e renovação da nossa fé na capacidade dos povos indígenas. Sonho e horizonte se revelaram palpáveis.

A seguir o

Manifesto da II Assembleia dos Povos Indígenas de Goiás e Tocantins

Ouvimos a voz indignada de uma anciã que perdeu sua netinha, ainda na barriga da mãe, e o gemido de dor de nossas crianças adoecidas nas aldeias. Ouvimos os relatos de ameaças e violências contra nosso povo. Ouvimos os parentes detalhar sobre o avanço do agronegócio e das florestas de eucalipto nas terras indígenas. Ouvimos sobre a lentidão do governo federal em garantir os direitos assegurados pela Constituição Federal, como a terra, acesso à saúde, educação e consulta prévia. Ouvimos a verdade por trás das mentiras que os brancos tentam nos impor. Nessa verdade está nosso horizonte.

Há 513 anos apareceram, em nosso horizonte, as caravelas dos colonizadores. Nos impuseram seu mundo e nos chamaram de selvagens, mas eles é que mataram milhões de indígenas. Porém, percebemos que os brancos seguem tentando nos impor seu Estado, sua cultura e seus interesses econômicos sobre as terras tradicionais que nos restam e nosso modo de viver e olhar sobre o mundo. No parlamento, são cerca de 90 proposições, entre projetos de lei e propostas de emendas à constituição, que tratam diretamente dos povos indígenas. O interesse do branco é grande em destruir nossas terras e retirar nossos direitos.

Destacamos algumas dessas proposições. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215 visa transferir do Executivo para o Legislativo a demarcação e homologação de terras indígenas, quilombolas e áreas de proteção ambiental. Sabemos que os ruralistas possuem a maior bancada da Câmara Federal e se essa PEC 215 for aprovada, nunca mais teremos demarcações no país. Outro projeto que nos preocupa é o PL 1610, sobre mineração em terras indígenas. Enquanto o Estatuto do Índio se mantém parado, esse PL vai promover um verdadeiro leilão de nossas terras, demarcadas ou não, para as mineradoras. Já o PL 4740 pretende arrendar as terras indígenas para a criação de gado e monocultivo do agronegócio.
 

Mas não é apenas o parlamento que pretende praticar o esbulho de nossas terras. O Palácio do Planalto, aliado dos ruralistas, baixou a Portaria 303, que pretende estender condicionantes da Terra Indígena Raposa Serra do Sol para todas as terras tradicionais do país. As condicionantes nem foram votadas pelos ministros do STF e por isso a portaria foi suspensa, mas queremos a revogação dela. Durante este mês de maio, a ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffman, suspendeu todos os procedimentos de demarcações da Funai no Paraná depois que o Embrapa questionou um relatório que atestava a ocupação tradicional de uma comunidade Guarani. A ministra disse que a Funai não é imparcial para demarcar e que as demarcações nos estados de Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Mato Grosso e Rio Grande do Sul também passariam pelo crivo da Embrapa e ministérios. Nem nos piores momentos do neoliberalismo sofremos tamanho ataque, que vem de fazendeiros e seus pistoleiros, parlamentares ruralistas, governo federal, Judiciário. O mais triste é que acreditamos que Lula e Dilma poderiam melhorar nossas vidas, mas isso não está acontecendo.

Terras e grandes projetos

O agronegócio cerca, invade e envenena as terras indígenas. Querem nossas terras para produzir alimentos podres, à base de agrotóxicos e sementes transgênicas. Não bastasse isso, o governo federal impõe, sem consulta prévia como exige a Constituição Federal e a Convenção 169, usinas hidrelétricas, estradas, hidrovias e o bilionário financiamento estatal ao monocultivo de commodities e criação de gado. A tudo isso estão relacionadas as ações da bancada ruralista, que pretendem mudar as regras para facilitar a retirada de nossas terras com o objetivo de investir os milhões que ganham do governo para os monocultivos. Por outro lado, isso faz parte de um projeto de desenvolvimento nacional do governo federal, que não contempla nossas nações e por isso cremos ser um projeto de desenvolvimento de uma elite colonialista, branca.

Sobre nossas terras e nas áreas limítrofes delas, sobretudo no Tocantins, avançam as florestas de eucalipto, as carvoarias e canaviais, que quando queimam lançam sobre as aldeias fumaça e poluição, gerando doenças respiratórias. A Secretaria de Regularização Fundiária do estado foi entregue ao filho da líder do agronegócio no Brasil, Kátia Abreu. O secretário, Irajá Silvestre filho, firmou convênio com o Ministério de Desenvolvimento Agrário para regularizar as terras da União, ou seja, as terras indígenas, quilombolas, áreas de preservação ambiental do Tocantins. Isso mostra como o agronegócio avança em nossas terras, que não são demarcadas e protegidas, a não se por nós mesmos e já decidimos que vamos morrer defendendo-a. Mas não apenas retirando as nossas terras que tentam nos usurpar. A nossa saúde está completamente quebrada, levando sofrimento e morte para as aldeias.

Saúde e educação

A saúde indígena passa por problemas em sua administração, desde Brasília, na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, até às regiões, no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), onde os administradores regionais são incompetentes, descompromissados e mentirosos. Isso gerou uma descrença generalizada e ao mesmo tempo a inciativa em pedir a exoneração de Ivanezilda Ferreira Noleto, coordenadora do DSEI, depois que a expulsamos de nossa II Assembleia. Ela registrou ocorrência na Polícia Federal, alegando danos emocionais. Perguntamos: e nossos danos pelas crianças e parentes mortos pela incompetência desses gestores? E nossos danos por não termos saneamento básico e medicamentos, suspensos pela Portaria 3185 do Ministério da Saúde? Quando ficamos doentes, temos de torcer para que nossa doença esteja na lista do governo, pois do contrário morremos sem medicamentos. A saúde indígena está na UTI e assim matam lentamente nossos povos.

Mesmo não tendo os estudos do branco, sabemos como educar nossos filhos com uma educação diferenciada e exigimos que o governo respeite nossos currículos. Sendo assim, na educação, apesar de pequenos avanços, a situação não é muito melhor. O que vemos é que não existe vontade política para garantir uma escola diferenciada e de qualidade como diz a legislação. Não queremos ensinar nossas crianças a manusear a escrita para mentir e prejudicar o outro; queremos ensiná-las a pensar e refletir, olhando para a própria cultura e os direitos da Mãe Terra. Formamos guerreiros. Nossas escolas devem ter o nosso rosto e fincadas em nosso chão, como forma de garantir nosso envolvimento social e político; nossa relação com a Mãe Terra.

Esperança no horizonte

Apesar do clima de indignação, dos graves problemas e desafios enfrentados pelas comunidades, realizamos uma Assembleia de esperança, marcada pelas nossas celebrações e rituais, pela solidariedade e amizade. Saímos fortalecidos e unidos, entre nós e com todos os que lutam por um Brasil plural, mais justo e solidário.

Tivemos a presença de parentes de todo país, caso dos Pataxó Hã-hã-hãe, Bahia, Xavante, Mato Grosso, Xukuru-Kariri, Alagoas, além de aliados dos movimentos sociais, caso da Via Campesina, Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Nailton Pataxó Hã-hã-hãe nos trouxe a palavra de que sozinhos não conseguimos nada, portanto precisamos nos unir entre os povos e aliados. Acreditamos e confiamos que a luta é árdua e longa, mas não abandonaremos a batalha. Seguimos até o fim pelo Bem Viver, o Sumak kawsay ameríndio, em nossas terras indígenas.
Palmas, TO, 23 de maio de 2013
Povos indígenas Apinajé, Xerente, Krahô, Tapuia, Karajá-Xambioá, Krahô-Kanela, Avá-Canoero, Javaé, Kanela do Tocantins e Guarani.
III. Seminário de Formação do Cimi - 2
“Bem viver, desenvolvimento, governos de esquerda”

No penúltimo dia do encontro (24.11.2010), os participantes acompanharam exposições de pesquisadores e acadêmicos sobre Estado e Poder e os Governos de esquerda na América Latina. Movimentos sociais, Estado Nação, poder e bem viver indígena. Estes termos nortearam as discussões do penúltimo dia do Seminário do Cimi, que aconteceu em Luziânia-GO. Com as contribuições de Lino João, César Sanson, Pablo Dávalos, Cacique Babau e Maurício Guarani, os participantes discutiram “Estado e Poder”, os “Governos de esquerda na América Latina”, e as “Experiências indígenas do bem viver”.
César Sanson, pesquisador do CEPAT e parceiro do IHU, depois de fazer todo um apanhado sobre as crises energéticas, as crises ambientais, mudanças climáticas, ressaltou que os governos ditos de esquerda são sim grandes aceleradores desse modelo neo-desenvolvimentista. Cesar destacou que governos dos países latinoamericanos assumiram a heranöa do modelo desenvolvimentista dos anos 1950.
Se nas décadas de 1980 e 1990 o modelo neoliberal liderava com privatizações, reforma das instituições, capital internacional, campanha para que os países se inserissem no processo de globalização, os governos de esquerda da A.L. se elegeram contra esse processo com grande apoio dos movimentos sociais.
Segundo Sanson, os governos existentes hoje na A.L. são neo-desenvolvimentistas. “O papel do Estado é alavancar o desenvolvimento. Para isso ele aparece em três facetas: o Estado investidor, financiador e o Estado social”. O Estado banca grandes obras para alavancar o desenvolvimento, financiando para a exploração do capital privado; ele financia a fusão de grandes conglomerados para competir com empresas transnacionais e elabora programas sociais compensatórios, por exemplo o bolsa família.
Esse modelo cria tensões com os movimentos sociais. Sanson destacou que os indígenas são grandes entraves a essa lógica e por isso são tão perseguidos. “Os movimentos sociais em geral não podem se deixar iludir: a inclusão social não pode vir do consumo, mas da resolução de problemas”, declarou.
Ainda nesta discussão dos Estados Latino Americanos, o economista Pablo Dávalos destacou que poucas vezes na história houve tantos estados partilhando da mesma concepção. “É a mesma dinâmica de acumulação capitalista!”, afirmou. Mas para compreender como a A. L. chegou a essa situação, Dávalos voltou aos anos 1990, e destacou a forte atuação dos movimentos sociais em toda a América Latina. “Foram esse movimentos que derrotaram o neoliberalismo! E os partidos políticos se valeram desta energia dos movimentos para se elegerem.”, lembrou.
O economista também mostrou que os movimentos sociais foram se calando, se paralisando, após as eleições dos chamados partidos de esquerda. “Precisamos encontrar o fio de Ariadne para sairmos deste labirinto e recuperar a agenda dos movimentos sociais!”, finalizou.
Na tarde de ontem (24), dois indígenas puderam relatar suas experiências de Bem Viver. Os povos indígenas têm sua maneira própria de viver que foge da lógica do consumismo, das violências, do desrespeito à natureza, e faz com que sejam exemplos vivos do que se pôde entender nesses três dias de seminário sobre Bem Viver.
Rosivaldo Ferreira da Silva, mais conhecido como cacique Babau do Povo Tupinambá da Serra do Padeiro, relatou sua vida em comunidade, seu costumes, a forma de economia e de preservação da cultura e da memória dos antepassados de seu povo. Para ele, muito das violências que seu povo sofre é pelo fato de serem alegres, felizes e viverem em harmonia, o que revolta os fazendeiros, os depredadores da natureza, os representantes do capital. “Em nossas terras, não há violência doméstica, respeitamos a natureza, temos sistemas de roças comunitárias, aprimoramos a comercialização de nossos produtos em parceria com a nossa associação! Temos muita fartura, porque ninguém pode ter dignidade passando fome! Fazemos coleta seletiva, produzimos excedente como reserva, caso haja algum imprevisto”, relatou. Babau mostrou como respeitam a terra e os ciclos de vida. “Nosso modelo de vida é estável, a gente ri, é alegre, é feliz, a gente faz muita festa! Temos vida e vida com felicidade!”.
Segundo Babau, esse modo de vida causa incômodo e é por isso que muitos já tentaram subornar a comunidade para abandonarem a terra, mas o povo não aceitou e isso desesperou os inimigos.
O jeito guarani
Depois dos relatos de Babau, foi a vez de Maurício da Silva Gonçalves, liderança Guarani, falar do que é o Bem Viver para seu povo. “Antes do branco chegar a gente tinha o bem viver completo: tínhamos casa, caça, peixes, frutas nativas. Tínhamos o jeito de ser guarani. Mas quando o branco “descobriu” o Brasil, perdemos todo o nosso território!”, lembrou.
De acordo com Maurício, o povo Guarani perdeu todas as suas terras e é por isso que se vê o drama desse povo hoje. “A nossa grande luta é pelo reconhecimento de nosso território. A mata Atlântica, por exemplo, é território Guarani, e se estendia até Argentina, Paraguai”. Maurício destacou que o povo Guarani não tinha limites, não reconhecia o que era fronteira e até hoje esta memória é importante para dar forças nas lutas Guarani.

Na escuta da Palavra
 Os anciãos Guarani, segundo Maurício, ainda não conseguem entender a organização dos brancos, o fato de haver Grupos de Trabalho para a identificação de terras, laudos antropológicos. “Para eles é muito complicado entender que antes era tudo nosso e agora precisa de estudos para provar isso!”, ressaltou. “Como é que se vivem 200 pessoas em 7 hectares? Não dá nem para fazer casa de reza!”.E as grandes plantações são as invasores dos territórios guarani. “Quando não é soja, é plantação de cana que ocupa a nossa terra!”.
Maurício relatou que hoje a grande luta do povo Guarani é para conseguir seus direitos. “A lei garante nossas terras, mas isso não garante nada na prática. Nossas famílias vivem na beira das estradas, debaixo de lona. Os fazendeiros não querem nem que os indígenas fiquem perto de suas cercas. Guarani não existe mais, porque não temos terra, não podemos plantar!”, ressaltou. Ou seja, a terra é o principal fator que falta para que o povo Guarani retome o seu jeito de ser, seu Bem Viver (cf. http://www.cimi.org.br/).
Foto à direita: Babau recebe um telefonema da sua irmã da Bahia dando a boa notícia que as pessoas responsável pelo seu tempo na prisão (segurança máxima) agora são presos. Paulo Suess põe a bíblia no ouvido, o telefone da boa notícia.
III. Seminário Nacional de Formação do Cimi:
“O sonho e a realidade do `bem viver´
frente ao modelo de desenvolvimento”
(22-25.11.2010, Brasília)
No Seminário Nacional do Cimi, o núcleo central da reflexão é o “bem viver”, o sumak kawsay dos povos andinos. Veio do Equador o economista e assessor do movimento indígena, Pablo Dávalos, para explicar aos mais de 100 participantes do “Seminário de Formação” esse novo paradigma político que visa cinco rupturas profundas com o sistema do capitalismo tardio em curso.
1. A ruptura constitucional e democrática, para sentar as bases de uma comunidade política inclusiva e reflexiva, que aposta à capacidade do país para definir outro rumo como sociedade justa, diversa, plurinacional, intercultural e soberana.
2. A ruptura ética para garantir a transparência que favorece o reconhecimento mutuo entre as pessoas e a confiança coletiva.
3. A ruptura econômica para superar o modelo de exclusão herdado e para orientar os recursos do Estado para a educação, saúde, investigação científica, tecnologia. Essa ruptura deve concretizar-se através da democratização do acesso à água e terra, ao crédito e conhecimento.
4. Ruptura social para que, através de uma política social articulada a uma política econômica inclusiva e mobilizadora, o Estado garante os direitos fundamentais.
5. Ruptura pela construção de dignidade, soberania e integração latino-americana.
O “sumak kawsay” propõe a incorporação da natureza na história, não como fator produtivo nem como força produtiva, mas como parte inerente ao ser social. Os seres humanos fazem parte da natureza. Como princípios e imperativos, o bem viver exige priorizar a vida, construir o consenso; respeitar as diferenças como complementaridade; levar uma vida equilibrada com todos os seres dentro de uma comunidade e com a natureza, escutar os anciãos.
O cristianismo compreende o bem viver como um bem viver do outro. Lutamos como servos para que ninguém precisa ser servo. Anunciamos o Reino de Deus como libertação da servidão, nos fazendo servos de todos.
Como cristãos podemos compreender a vida boa para todos como sabedoria do Reino de Deus que exige a luta e a contemplação. Essa contemplação nos conduz à ascese que liberta do supérfluo, para que todos possam ter o necessário. Ascese é o protesto contra nossa humilhação como consumidores e contra a exploração e a fome dos outros. O motivo profundo de ascese é solidariedade e participação. Ascese em sua forma individual pode significar conversão e ascese em sua forma comunitária e sociopolítica significa ruptura sistêmica e solidariedade. O bem viver para todos e para sempre, que é memória dos mártires e confessores, existe no horizonte da ressurreição.