Rafael Fellmer, que vive há muitos anos sem dinheiro, inspirou partes dessa reflexão sobre o "bem viver". Vale a pena ouví-lo!
Este
texto representa fragmentos da quarta parte da minha palestra “Sonhar uma nova
realidade do `bem viver´”, que foi apresentado no dia 4.09.2014 durante o
XXXVIII Congresso de Teologia Moral, realizado em São Paulo, com o tema: “Ética
teológica e transformações sociais: A utopia de uma nova realidade”.
4.
Passos construtivos ao encontro do “bem viver”
O
conceito do “bem viver” não é uma receita ou um manual de aplicação, mas um
horizonte que nos faz caminhar, discernir e lutar. O “bem viver” não nos leva
de volta à pré-modernidade. Pelo contrário, é a realização dos ideais da
modernidade: igualdade, liberdade, solidariedade. A igualdade exige a
redistribuição dos bens do planeta (terra, água, ar) e a implementação dos
direitos humanos para todos, a liberdade requer a participação da sociedade
civil na gestão da “res pública”, e a solidariedade, hoje, significa: reconhecimento
do outro e da outra em todas as dimensões da vida humana.
A
seguir, alguns trilhos dessas lutas que nos aproximam do “bem viver”. Através
do ser-vir, o vir a ser cai na
realidade da história por pequenas frestas que permitem a passagem de raios de
luz e mostram os contornos embaçados da nova realidade. A partir do sofrimento
dos pobres, do desprezo dos outros e
das patologias que ameaçam o “bem viver” de todos, assumimos a responsabilidade
de construir a nova realidade histórica que exige de nós, não pequenos reparos
sistêmicos ou pessoais, mas uma virada cultural que repercuta em todos os
subsistemas sociais (econômico, político, religioso) e pessoais (psicológico,
ético).
As
ameaças impostas ao imaginário e à realidade do “bem viver” permitem traçar trilhos
para sua realização. Quais são essas ameaças? Quero destacar apenas duas delas,
nas quais se insere o restante das causas do “mal viver” da humanidade como um
todo.
O
nosso “bem viver” é ameaçado coletiva e individualmente pelo crescimento
econômico e pela aceleração das funções naturais e culturais da nossa vida cotidiana,
desde a clínica do nascimento, passando pela escola e os locais de trabalho e
lazer, até o asilo da nossa velhice, sempre somos rodeados por pessoas que
olhem no relógio e nos fazem entender que, o que poderia ser nosso encontro com
eles, é apenas um pit-stop de Fórmula 1.
Quero,
em seguida, sonhar e descrever o “bem viver” como um trem montado em dois
trilhos:
-
no trilho de uma economia do decrescimento para chegar ao pós-crescimento,
incluindo nesse trilho a redistribuição dos bens do planeta para todos;
-
e no trilho da desaceleração das funções de trabalho e das relações humanas que
permitiria o reconhecimento e, portanto, o encontro do outro e não nos obrigaria a substituir o “encontro” pelo “atendimento
concomitante”, um pelo smartfone, outro pelo e-mail, e outro, ainda, no guichê
da bilheteria.
4.1.
Do decrescimento
A
crise energética e a ameaça de um colapso da biosfera com seu impacto sobre o
clima, fizeram emergir o paradigma de um “capitalismo verde”, de um
“crescimento sustentável”, sem carbono, através de hidrelétricas, ou outras
energias alternativas, como a chamada bioenergia do etanol, a energia eólica e
a solar.
Por
cinco motivos, a meta do capitalismo verde (etanol, hidrelétricas, energia
eólica e solar, PSA) não é o “bem viver” para todos:
-
primeiro, o crescimento capitalista só funciona na base da competição que
produz vitoriosos e perdedores;
-
segundo, o crescimento capitalista, necessariamente, é um sistema de saque e
pilhagem à natureza, cujas reservas são esgotáveis;
-
terceiro, o capitalismo globalizado, sempre em busca de incorporação
(colonização) de novos territórios, produz recantos de exploração extrema da
mão de obra humana nos confins do mundo e no meio de nós, desde a China até os
esconderijos de trabalho de bolivianos no bairro do Brás, em São Paulo;
-
quarto, a competição - pela individualização da luta pela sobrevivência e dos
processos de produção -, destrói a coesão social da sociedade;
-
quinto, o capitalismo verde também é capitalismo, e como tal, é incapaz de
romper com o paradigma do crescimento econômico.
Na
construção do “bem viver” não se trata da aplicação de terapias, de dietas
light, de exercícios esportivos ou de práticas meditativas, que nos fazem
funcionar melhor no interior do sistema, mas de uma ruptura sistêmica com o
nosso estilo de vida. A estrutura do “bem viver” pode ser pensada somente no
interior de uma cultura de suficiência (modéstia, sobriedade) e subsistência
regionalizadas. A cultura de suficiência vai reduzir as nossas demandas do
supérfluo ao necessário, e a cultura de subsistência vai recuperar a bricolagem
de uma criatividade caseira, que pode substituir metade das nossas aquisições
de novos objetos (desejos) pelos concertos que nós ou nossos vizinhos (em
reciprocidade) são capazes de fazer.
Em
consequência disso, o “bem viver” não vai exigir que trabalhemos 40 horas por
semana. Trabalho não será apenas trabalho salarial. Haverá, como nas aldeias
indígenas, fronteiras líquidas entre trabalho e lazer. O trabalho pode ser
prazeroso.
O
impacto da cultura da suficiência sobre o trabalho salarial e a produção
industrial (poluidora), se sustenta em três novos comportamentos:
-
muitos dos objetos que compramos podem, com mais prazer, ser produzidos em nossa
casa ou em nosso quintal;
-
muitos dos objetos que jogamos fora, e substituímos por novos, podem ser
consertados por nós mesmos;
-
muitos dos objetos de que necessitamos para o nosso dia a dia podem ser
emprestados dos vizinhos e, na reciprocidade do “bem viver”, vamos
disponibilizar nossos objetos (bicicleta, liquidificador, carro) a eles. Essa
reciprocidade vai quebrar a lógica da riqueza privada.
Em
grande parte, a cultura da suficiência e seu sustento econômico serão regionais.
Não vamos abrir mão da internet, mas podemos dispensar a importação das figuras
do presépio, do guarda-chuva e da nossa camisa dominical da China, onde são
fabricados por salários e condições sociais vergonhosos. Como o transporte
causa enormes custos ecológicos, precisamos fortalecer as economias regionais. A
cultura da suficiência e subsistência nos orienta para:
-
a aquisição de produtos e tecnologias simples de longa duração;
-
a redução da dependência de redes externas de produção;
-
a redução do consumo excessivamente diversificado (“butique de pão!”), que encarece
os produtos.
O
“bem viver” exige a ruptura do círculo vicioso entre crescimento e aceleração.
4.2.
Da desaceleração
Em
seu “Plano Colonizador”, de 1558, que é um “Plano Civilizador”, Manuel da
Nóbrega pede para o abastecimento do Colégio da Bahia “duas dúzias de escravos
de Guiné” (n. 24) e para a Igreja pede “sino”, “relógio” e “campainha” (n. 27).
A civilização substitui o ócio, permitido pela natureza, pelo tempo
cronometrado do trabalho, da reza, do estudo e do lazer. Com a colonização
disciplinadora, segundo Nóbrega, se ganha “muitas almas” (n.5) e “muito ouro e
prata” (n.5).
A
“colonização disciplinadora”, hoje, tem o nome de globalização econômica e
cultural, que é atravessada pelos eixos do crescimento e da aceleração. O ato
revolucionário não é mais, como Marx pensava ser, “a locomotiva da história”,
mas, no dizer de Walter Benjamim, “talvez seja tudo muito diferente, e as
revoluções representem tentativas feitas pela humanidade, que viaja nesse trem,
de puxar o freio de emergência”.
A
abundância do etanol disponível, produzido com incentivos fiscais do governo,
permite pisar fundo no acelerador do carro. Etanol e tênis, que são meios de
aceleração coletiva e individual, conotam duas dimensões do “freio de
emergência” necessário na construção do “bem viver”: o freio do consumo e,
ligado a ele, a produção energética (Etanol), e o freio de tudo aquilo que é
simbolizado pelo fetiche da velocidade individual, através do tênis.
Nenhum
partido político, com mínimas chances de se eleger, vai hoje apoiar nosso
modelo do “bem viver”, com seus pressupostos de crescimento zero e
desaceleração. Os aliados mais confiáveis, na construção da nova realidade do
“bem viver”, são os que sofrem. O sonho de uma nova realidade do “bem viver” de
todos há de ser visto a partir da vida cotidiana daqueles que sentem em seus
corpos e almas a distância estrutural da realidade do “bem viver”. No seu grito
de um “basta”, seguido por lutas em todos os níveis da existência humana, está
a força que pode “desmascarar as ideologias, que naturalizam as patologias, e
desconstruir o consentimento alienado em dor histórica. A dor é sinal [...] que
na vida danificada subsistem razões para viver, não para viver de qualquer
jeito, mas para uma vida intacta e verdadeira”. No grito do basta se encontram
“estilhaços de racionalidade e fragmentos de esperança” para a construção do
“bem viver”. Lutas sociais fazem questionar a dor historicamente imposta, não
pela natureza ou pela vontade de Deus, mas por aquela parcela da sociedade que
faz da dor alheia um negócio. A memória dos pobres e a simplicidade de seu “bem
viver” apontam para lutas históricas que podem nos aproximar ao “bem viver” de
todos. Nós, que temos o privilégio do saber, temos também o dever de agir.
As propostas do "Bem Viver"atualizam os ensinaments trazidos pelas parábolas do Divino Mestre, há mais de dois mil anos.
ResponderExcluirEm ambos encontramos os fundamentos da opção preferencial pelos pobres, da partilha dos carismas e bens materiais, do cuidado com o outro, do respeito, aceitação e convivência com os diferentes, da valorização dos usos e costumes entre os mais diferenciados, da solidariedade substituindo a competição....
A Sabedoria do Nazareno, levada a todos os confins da terra, vivenciada por seu fiel discípulo e seguidor.