Eduardo
Hoornaert
Desde
antes do Concílio, Helder Câmara, naquele tempo bispo auxiliar do Rio de
Janeiro, se destaca como homem de visão. Num questionário enviado a todos os
bispos pelo Vaticano, a maioria dos bispos afirmam que os grandes problemas do
mundo são: comunismo, ateísmo, secularismo, protestantismo, espiritismo etc.
Helder pensa de forma totalmente diferente: o grande problema e que dois terços
da humanidade vivem na pobreza, tem problemas endêmicos de fome, doença,
habitação. É preciso dizer com todas as palavras que Helder Câmara é um dos
pouquíssimos homens do Concílio que têm ‘visão’, como escreveu o teólogo
Congar. As Cartas Circulares de Helder começam com as seguintes palavras: ‘O
Concílio vai ser dificílimo’. Isso diz tudo.
O que
fica muito claro, para quem lê as Cartas que Helder escreve a cada dia, ao
longo do Concílio, é que ele mostra aversão às pompas romanas. Para ele, o
Vaticano é uma corte papal, a mais impressionante corte existente em todo o
mundo ocidental. Há imagens alucinantes espalhadas pelas páginas das Cartas
Circulares. O bispo vê o Imperador Constantino (do século IV) atravessar a
Basílica de São Pedro num cavalo em pleno galope. Numa outra visão, o papa joga
a Tiara no Tibre e anda enlouquecido pelas ruas de Roma, onde se encontra com prostitutas
e ladrões. Ele se imagina que o papa cede o Vaticano a uma instituição (da
UNESCO?), especializada em administrar museus e vai morar num apartamento em
Roma. Dispensa embaixadores no Vaticano e núncios do Vaticano. Dispensa o
Vaticano. Assim ele pode empreender com rapidez a reforma da Cúria papal romana
(a corte papal).
Aconselho
vivamente a leitura dessas Circulares, pois cada uma traz alguma surpresa.
Quando menos se espera aparece uma frase absolutamente genial, nos mais
diversos sentidos. Assim, ele escreve: com cardeais é ‘humanamente impossível’
trabalhar (I, 3, 268). Num outro tópico, escreve que citar textos de Isaías é
muito bonito, mas que o povo não entende palavras como Sião, Israel etc. e que
é preciso dizer as coisas com palavras que as pessoas entendem. Faíscas de um
espírito excepcional que aparecem aqui e acolá nas Cartas.
Depois de
voltar de Roma em final de 1965, Helder ainda reside no Palácio Episcopal São
José dos Manguinhos, na Avenida Rui Barbosa, durante mais de dois anos.
Trata-se de um solar construído pelo Visconde de Loyo, comerciante recifense de
sucesso, no século XIX (Dom Pedro II distribuía à torta e direita títulos de
Condes, Barões, Viscondes, para melhor controlar seu imenso império), com
muitas mangueiras. Há, ao lado, a Igreja São José dos Manguinhos, como costuma
haver em solares de gente rica. No início do século XX, a Arquidiocese adquire
o solar e o transforma em residência episcopal. Tudo no tradicional estilo
eclesiástico.
Helder
foi descobrindo que a Arquidiocese possuía, mais em direção ao centro histórico
da cidade, a Igreja de Nossa Senhora da Assunção das Fronteiras, no limite de
uma estância concedida pelo rei de Portugal em 1656 ao militar mestiço Henrique
Dias, combatente ao lado dos portugueses na guerra contra os holandeses que
resultou na Restauração Pernambucana. O imperador Pedro II visitou o local em
1859 e lhe deu o título de Imperial Capela. A Arquidiocese de Olinda e Recife
recuperou essa capela depois da guerra das confrarias. Mas, em 1968, tudo isso
é passado. A Igreja das Fronteiras serve de capela para uma casa de religiosas
e tem, como todas as capelas, uma sacristia e um ponto de apoio para o capelão.
O cenário
contraste entre Manguinhos e Fronteiras lembra a oposição entre o Vaticano e as
Catacumbas. Helder não hesita: é preciso deixar o ‘latifúndio’ Manguinhos par
ir morar ‘na minha casa’, nas Fronteiras.
A leitura
da Cartas Circulares do ano 1968 foi uma surpresa para mim. Que riqueza, quanta
novidade!
As
Circulares do ano 1968 se encontram nos Tomos 1 e 2 do Volume IV. É o ano da
mudança do Palácio dos Manguinhos à sacristia das Fronteiras. Uma mudança que
não só tem consequências para a vida pessoal do bispo, mas também para a vida
da Arquidiocese.
Em termos
pessoais, Helder dispensa o carro particular, o secretário particular, a comida
pronta na hora certa, a cozinheira de Manguinhos. Doravante, seu cardápio é
precário. De manhã, as Irmãs das Fronteiras lhe preparam um café. Ao meio dia,
ele almoça no Colégio das Damas, na Avenida Rui Barbosa, e de noite ele se vira
sozinho. Seu quarto de dormir comporta uma cama e uma cadeira. Ele comenta:
‘moro com dois mortos e um Vivo (Jesus no sacrário) ’. Há uma salinha que para
receber as pessoas e escrever suas Circulares pela noite. Ela comporta uma mesa
redonda, três cadeiras e, no fundo, uma rede cearense estendida. Nas paredes
algumas lembranças de viagens e alguns textos lapidares.
1. Na
Circular de 5 a 6 de janeiro 1968 (n. 344, Helder se mostra entusiasta com a
mudança (p. 295), planejada para o dia de São Sebastião (21/1), o que não
acontece por falta da remoção de dois sepulcros e arranjos atrás do altar (p.
317). Ele sabe que essa mudança acarreta uma remodelação das funções de alguns
prédios da Arquidiocese. O sonho do bispo é que tanto Manguinhos (que ele chama
‘latifúndio’, ‘casa demais para um bispinho só’, veja p. 383) como o antigo
Palácio episcopal de Olinda sejam doravante ‘Casas do Povo’. Camaragibe, ‘o
porta-aviões’ (p. 312), seria vendido fundo financeiro, assim criado, serviria
‘em boa parte para um esquema de casas populares’.
Mas seus
auxiliares não têm voos tão altos. Na realidade, os planos de mudança do bispo
acarretam uma complexa acomodação de prédios. Há também, ao mesmo tempo, a
decisão que toca a vida dos seminaristas. Doravante, o programa é que eles
vivam em ‘pequenas comunidades no meio do povo’. Tudo isso mexe com Manguinhos,
Palácio episcopal colonial em Olinda, Seminário de Olinda, o prédio na Rua do
Jiriquiti, Camaragibe. Enquanto os auxiliares ponderam as reais possibilidades,
Helder continua falando em Casas do Povo. Ele sonha em doar casas para abrigar
pessoas sem teto. Por que manter duas salas de trono no ‘latifúndio’
Manguinhos, enquanto na varanda dormem pessoas sem teto? O bispo fica triste
quanto seus auxiliares se veem na obrigação de arranjar um vigia para controlar
a vida dos que dormem na varanda, ele tem medo que esse vigia chegue a usar
violência e talvez chegue a atirar contra alguém.
2. Dez
dias depois, na Circular 348 (16-17/1/68) se escreve que a equipe central do
seminário já mora ‘nos altos’ (primeiro andar) da Casa do Povo, com alguns
professores, enquanto o Seminário colonial de Olinda vira Centro de Treinamento
de Líderes para o Nordeste II (modelo Eugênio Sales). O que complica tudo é que
Roma não gosta da ideia de seminaristas vivendo ‘no meio do povo’. O Cardeal
Garrone escreve uma carta nesse sentido e manda Monsenhor Pavarello para
Recife, para verificar a situação ‘in loco’. Esse Monsenhor fica bastante tempo
e colhe muitas informações.
3. Na
noite do 13 a 14 de março (Circular 375) vem a notícia definitiva: quando o dia
amanhecer, vou me mudar para as Fronteiras. Isso é um ‘sinal completo’: ‘vender
Manguinhos e investir o dinheiro em favor da promoção de filhos de Deus
subhumanizados pela miséria’. Na mesma Carta aparece uma primeira descrição da
nova morada com avaliação daquilo que o bispo gosta mais: portas sem trancas;
janelas sem grades; entradinha pelo jardim; ‘em obras’; a cama de madeira (a de
Manguinhos era em bronze dourado); a companhia, na hora de dormir, de dois
mortos (sepulcros) e um Vivo (sacrário).
4. No dia
14 de março de 1968, às 19 horas, Helder entra na nova casa (p.40). Daqui por
diante, seus percursos diários mudam: de Fronteiras a Manguinhos, de Manguinhos
às Damas (na mesma Avenida, para o almoço), das Damas retorno aos Manguinhos e
no final do expediente de Manguinhos às Fronteiras. Se transporte depende de
táxis, mas na realidade não há taxista que queira cobrar a corrida (p. 52).
Essa informação se repete em 22-23/5/68.
5. Quinze
dias depois, na Circular de 27-28/3/ 68 (IV, 1, 59) vem uma nova prova de que o
bispo gosta na nova casa: no quarto de dormir, a janelinha com ferrolho, que
indica onde fica o Sacrário (onde mora o Vivo), a seteira em cima, que ‘deixa à
vista uma nesga do céu, como uma estrelinha linda’ (mais tarde, ele me aponta
essa seteira e diz: ‘como é fácil lançar uma bomba por aí’), a janela sem
grades que dá para outro jardim, por trás da sala de estar, a mesa redonda,
onde ele pode escrever suas circulares durante as vigílias, as rosas no jardim,
as três garrafas térmicas (chá quente, refresco gelado, água) que as irmãs
deixam prontas, assim como potes de vidro como com biscoitos etc. Enfim, Helder
gosta da nova morada. Isso fica muito claro.
Em tudo
isso, o bispo segue à risca o primeiro compromisso do Pacto das Catacumbas: ‘procuraremos
viver segundo o modo ordinário de nosso povo no que toca a casa, comida, meios
de locomoção, e a tudo que disso se desprende (Mt 5, 3; 6, 33s; 8-20)’. Tenho
por mim que ele é um dos que seguem com maior fidelidade dos compromissos
assumidos no Pacto das Catacumbas, embora faltem dados comparativos para
comprovar essa opinião. Só possuímos informações parciais (de Antônio Fragoso,
José Maria Pires, Valdir Calheiros, etc.).
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D. Helder Câmara, ser humano realmete extraordinário, por seu exemplo de despojamento e opção preferencial pelos pobres - e pela vida pautada na pobreza, incomodou muitas pessoas em todos os meios, desde os eclesiásticos, incluindo a vida política.
ResponderExcluirFoi muitíssimo criticado, mas sempre coerente com o Evangelho e o fiel seguimento do Divino Mestre. Que mente brilhante, sensibilidade privilegiada e amor incondicional aos mais lascados! Admirável!