Missão
na construção da Família
O tema da 14ª Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos versava sobre “A vocação
e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo”. Quem não se lembra
do lema da CF/1994: “A família como vai” e o seu objetivo geral: “Redescobrir os valores da família:
Lugar de encontro, espaço de vivência humana, ponto de partida de um mundo mais
humano e de acordo com o Plano de Deus. E a mesma CF se propôs “colaborar na
criação de condições sociais e políticas objetivas para que a família possa
realizar sua missão. Finalmente, pondo em prática o mandamento do amor
fraterno, a CF quer nos ajudar a olhar com confiança para um amanhã novo da
família, que já pode ser descortinado”.
Como
mudou o espírito da época nesses 20 anos! A vulnerabilidade da família está
muito mais exposta, as respostas são mescladas com maiores incertezas e ninguém
diria que “a nova família já pode ser descortinada”. A tentativa de conseguir
através do Sínodo uma ligação realista com o mundo, como ele é, parece ter
fracassada. Escuta-se vozes resignadas das bases eclesiais: “Está
tudo como dantes no quartel d’Abrantes”.
Contudo, não faltam elementos positivos no
conjunto do evento sinodal. As discussões na aula sinodal, de 4 a 25 de outubro
de 2015, eram consequência de uma nova metodologia de total liberdade no uso da
palavra. Liberdade exige responsabilidade a serviço da causa maior e não para
enfraquecer pessoas ou setores. Nem sempre a liberdade se apresentou com sua
irmã gêmea, a responsabilidade, como mostrou o vazamento da “Carta dos 13 cardeais”
ao papa, insatisfeitos com os encaminhamentos pré-sinodais, a invenção de um
tumor cerebral de Francisco, e a publicação de documentos secretos sobre a
administração financeira do Vaticano – tudo arrolado com a clara intenção de
enfraquecer a autoridade do papa. A Santa Sé mostrou a improcedência das
reclamações metodológicas, desmentiu o suposto “tumor” e investigou a
deslealdade dos “dignitários” indignos.
O
desafio do sínodo foi a desconexão entre a realidade sociocultural, na qual o
matrimônio hoje é vivido, e a doutrina definida no decorrer de uma história de
dois milênios. Até há pouco tempo, o esforço da Igreja concentrou-se, sem
sucesso, na mudança dessa realidade. Hoje sabe-se, que essa mudança necessita
também a reconstrução da doutrina que emergiu para responder a desafios de
outros tempos. Nesse ponto havia grandes divergências entre os 265
participantes sinodais. Diante das questões trazidas das bases através de um
questionário e o resultado contido no Documento Final, as aproximações entre
pastoralistas e canonistas foram pequenas. Mudanças doutrinárias, por muito
tempo cristalizadas, são mudanças culturais de longo prazo. Sob a liderança
firme do Papa Francisco, o sínodo mostrou o horizonte de um caminho que a
Igreja tem pela frente para um reencontro com a realidade vivida pelos casais
de hoje.
Discernimento,
sinodalidade e descentralização
O papa saiu dessas tribulações de cabeça
erguida e o avanço nas discussões sinodais pode ser resumido com três fios
condutores entrelaçados: discernimento, sinodalidade e descentralização. O
discernimento é uma herança da espiritualidade inaciana, que o papa trouxe de
sua formação jesuítica. A sinodalidade representa uma retomada da proposta
original do Vaticano II que queria o sínodo como uma espécie de concílio
permanente e como complementação do poder solitário do primado. A
descentralização é uma consequência de ambos, do discernimento e da
sinodalidade, e corresponde ao princípio da subsidiariedade que valoriza os
conhecimentos e respeita as decisões da Igreja local através das diferentes
Conferências Episcopais e das comunidades que estruturam o povo de Deus.
Vaticano II em chave de
misericórdia
Para fundamentar o andamento do sínodo nos
tempos de transição, o Papa Francisco proclamou, no dia 11 de abril de 2015, um
Ano Santo da Misericórdia (cf. Misericordiae
vultus/MV), 3), que se inicia no dia 8 de dezembro, na solenidade da
Imaculada Conceição, festa da misericórdia divina. Na data se comemora o
cinquentenário da conclusão do Vaticano II: “Derrubadas as muralhas que, por
demasiado tempo tinham encerrado a Igreja numa cidadela privilegiada, chegara o
tempo de anunciar o Evangelho de maneira nova” (MV 4). Quem não escutaria nesta
memória da vocação do Concílio um suspiro de Francisco e um imperativo para que
o Sínodo sobre a Família derrube também as muralhas que impedem avanços na
pastoral familiar! O Ano Jubilar terminará na festa de Cristo Rei do Universo,
em 20 de novembro de 2016. E o papa resume: “Quanto desejo que os anos futuros
sejam permeados de misericórdia para ir ao encontro de todas as pessoas” (MV
5). E Francisco acrescenta: a misericórdia divina é “de modo algum, um sinal de
fraqueza, mas antes a qualidade da onipotência de Deus” (MV 6).
O
significado do Sínodo
Por ocasião do cinquentenário da instituição
do Sínodo dos Bispos, no dia 17 de outubro, o Papa Francisco sublinhou a
importância do sínodo “que constitui um dos legados mais preciosos da última
sessão conciliar” (Discurso,
17.10.2015). O sínodo devia refletir o espírito e o método do Vaticano II que
consiste em caminhar juntos – “leigos, pastores, Bispo de Roma” (ibid.). O papa confirma a infalibilidade
do Povo de Deus no ato da fé (cf; LG 10 e 12; EG 119): “Cada um dos batizados,
independente da própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé, é um
sujeito ativo de evangelização, e seria inapropriado pensar num esquema de
evangelização realizado por agentes qualificados enquanto o resto do povo fiel
seria apenas receptor das suas ações” (EG 120). O faro da fé (sensus fidei) “impede uma rígida
separação entre ecclesia docens e ecclesia discens, já que também o
rebanho possui a sua `intuição´ para discernir as novas estradas que o Senhor
revela à Igreja” (Discurso, 17.10.).
“Uma Igreja sinodal é uma Igreja da escuta
[...], onde cada um tem algo a aprender [...]; e todos à escuta do Espírito
Santo” (ibid.). E Francisco menciona
um princípio da Igreja do primeiro milênio: “O que se refere a todos, de todos
deve ser tratado” (ibid.). A
sinodalidade é uma dimensão constitutiva da Igreja que oferece a chave de
interpretação para a compreensão do próprio ministério hierárquico: “Ninguém
pode ser elevado acima dos outros. Pelo contrário, [...] como numa pirâmide
invertida, o vértice encontra-se abaixo da base”. Autoridade é “autoridade do
serviço, o único poder é o poder da cruz” (ibid.).
O Documento Final
Depois de três semanas de reuniões, no último
dia do Sínodo, 24 de outubro, foi apresentado o Documento final do evento que
tem 94 parágrafos, todos aprovados, pela maioria necessária de dois terços. No
caso dos divorciados recasados, o documento propõe que cada bispo analise
individualmente, caso a caso, para decidir se autoriza a comunhão integral a um
católico divorciado que voltou a se casar e dá sinais de conversão (cf. § 84).
O texto insiste que os divorciados “deveriam evitar toda e qualquer ocasião de
escândalo”, o que é pastoralmente plausível. Em todas essas questões,
“discernimento” e “consciência” adulta se tornaram palavras-chave. A Igreja tem
o dever de acompanhar a família ferida.
A partir de uma tradição do Direito Canônico,
focada na procriação e não no amor, a homossexualidade continua como tabu. O
texto afirma a posição de que os homossexuais não podem ser discriminados, mas
que não há qualquer fundamento para o casamento de pessoas do mesmo sexo. O
Sínodo não chamou de amor a afetividade vivida entre pessoas do mesmo sexo, mas
admite que, entre as pessoas unidas pelo casamento civil e nas coabitações não
sacramentais, pode haver "aqueles sinais de amor que propriamente
correspondem ao reflexo do amor de Deus". Pastoralmente precisaria se
pensar em formas, ritos e bênçãos com o valor de um sacramental sem serem
sacramento para que a afirmação da não discriminação seja não apenas uma
palavra vazia. O sínodo não dá esse passo. Na rejeição da “ideologia do
gênero”, que é uma filosofia que considera os dois sexos, o masculino e o
feminino, construções culturais e sociais, havia um consenso geral na aula do
Sínodo.
Discurso programático no
final do Sínodo
Em seu discurso final, no dia 24 de outubro,
o papa agradeceu os trabalhos feitos, criticou a “hermenêutica conspiradora” e
“ a perspectiva fechada”, e lembrou princípios que ele considera importantes
para o futuro da Igreja:
- não repetir o que é indiscutível ou que já
foi dito;
- abordar os desafios da família sob a luz da
fé, sem esconder a cabeça na areia;
- compreender a família e o matrimônio entre
homem e mulher, fundado sobre a unidade e a indissolubilidade;
- afirmar que a Igreja é Igreja dos pobres em
espírito e dos pecadores à procura do perdão e não apenas dos justos e dos
santos;
- evitar uma linguagem arcaica ou
simplesmente incompreensível;
- não defender a letra, mas as pessoas, nem
as fórmulas, mas a gratuidade do amor de Deus e do seu perdão;
- não aplicar condenações, mas proclamar a
misericórdia de Deus.
Enfim, conclui o papa, experimentamos “a ação
do Espírito Santo, que é o verdadeiro protagonista do Sínodo”. Assumir a
sinodalidade significa “caminhar juntos” com toda a humanidade (namorados,
noivos, casados, divorciados e homoafetivos – com santos e pecadores), porque
todos os seres humanos são amados por Deus, todos são resgatados por Jesus
Cristo e iluminados pelo Espírito.
Paulo
Suess,
[versão
abreviada do texto apresentado no Comina – 30.10.2015]
Simplesmente irretocável o discurso programático no final do Sínodo, em que o Papa Francisco apresenta a síntese sobre os princípios fundamentais, para caminharmos todos, em sintonia com seu magistério, ancorados na misericórdia de Deus, na certeza de que somos resgatados por Jesus Cristo e iluminados pelo Espírito!
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