Do Estado
Neoliberal ao Estado do bem viver
Paulo Suess
Na
construção do “bem viver”, dois eixos são sumamente importantes:
-
o “bem viver” para sempre, que é o “bem viver” com memória histórica, o bem
viver não apenas dos sobreviventes e vencedores, mas o bem viver que dá voz e
ouvido aos vencidos.
Portanto,
o bem viver tem uma dimensão que perpassa o tempo, uma dimensão transhistórica,
e uma dimensão contemporânea e simultânea, que enfoca o aqui e agora do
indivíduo e da sociedade. O bem viver não é construído em Spá nem em estúdio de
wellnes, mas num laboratório no qual
se entrelaçam memória histórica, ação política e gratuidade.
Não
reduzimos a felicidade ao bem-estar material nem separamos o bem estar material
do bem-estar espiritual.
Praticamente
todas as lutas sociais representam tentativas de equilibrar felicidade
individual e moral social, ou, como se diz no mundo andino, são buscas de
harmonia, de harmonia sociocultural entre o individuo e o coletivo, e harmonia
entre os seres humanos e a natureza da qual são parte integrante.
Essa
busca de harmonia se transformou em lutas políticas. A harmonia não é dada. Ela
é uma conquista que exige vigilância permanente.
Hoje,
o capitalismo, essa nova colonização pelo capital, pela ideologia do
desenvolvimento, pelo consumo e pela competição, procuramos curar as patologias
do desequilíbrio que se manifesta pela acumulação, pelo crescimento desenfreado
e pela aceleração. Procuramos novos conceitos de propriedade e desenvolvimento
para construir novas realidades.
No
meio de lutas pela redistribuição dos bens (terra, água, ar) e pelo
reconhecimento do outro procuramos desvincular o bem-estar do crescimento
predatório (agrotóxicos, expansão sobre a propriedade dos outros, consumo
autodestrutivo). Percebemos que o capitalismo não tem patologias. Ele é a
patologia.
1.
Desafios ao “bem viver” hoje
O
sistema capitalista é incapaz de produzir o bem viver de todos os cidadãos.
Consumismo e fome são expressões desse desequilíbrio na distribuição dos bens
da terra. Crescimento, expansão e
aceleração se tornaram palavras mágicas, apoiadas por tecnologias cada vez
mais sofisticadas a serviço da substituição de trabalhadores. No atual projeto,
na aceleração da produção e na acumulação do capital, não se trata apenas de
uma manipulação de objetos mortos. Capital e produção representam relações
sociais mediadas por exploração, alienação e coisificação. A relação
utilitarista “custo-benefício” não é uma mera relação comercial com sua lógica
própria. Nela está embutida uma relação
social.
Quem
produz mais barato é aquele que se submete a condições de um trabalho penoso.
Consequência desta nova configuração do trabalho são os mal empregados, os
desempregados, os migrantes em busca de melhores condições de sobrevivência.
O
que está em questão é coesão e solidariedade social interna das sociedades.
Essa solidariedade é atropelada pela concorrência do mercado globalizado que
vive da exclusão e não da integração dos cidadãos. Redistribuição, integração social pelo trabalho e participação do lucro
se tornaram direitos humanos. O poder judiciário está despreparado para garantir
esses direitos.
A
exploração irracional atinge não só operários, indígenas ou migrantes, mas
também a nossa irmã natureza. A devastação de florestas e da biodiversidade,
“coloca em perigo a vida de milhões de pessoas”, em especial a vida dos “camponeses
e indígenas, que são expulsos para as terras improdutivas e para as grandes
cidades para viverem amontoados nos cinturões de miséria” (DAp 473).
O
que está em questão é o “atual modelo econômico, que privilegia o desmedido afã
pela riqueza, acima da vida das pessoas e dos povos” (DAp 473).
O
“bem viver” está ameaçado por uma crise cultural profunda que se manifesta como
crise de sentido, como fundamentalismo político-religioso e como consumismo. A
dissolução do sentido da história humana numa mera história natural e a
afirmação da verdade única como negação do reconhecimento do outro e do
pensamento diferente representam um potencial permanente de guerra e violência,
inclusive no interior das religiões.
Depois
de guerras para a implantação da democracia, hoje essa democracia liberal está
numa profunda crise estrutural pela confusão dos poderes (executivo,
legislativo e judiciário) e pela ética. A
democracia liberal não permite a participação satisfatória do povo, sobretudo
dos pobres, dos excluídos e dos povos indígenas, especialmente quando são
minoria.
A
justiça em nossos países tornou-se uma justiça formal, morosa e caríssima, que
atua, muitas vezes, longe dos lugares onde acontecem as injustiças, e não serve
aos povos indígenas e pobres, que desconhecem os trâmites legais e não
conseguem pagar advogados competentes para garantir seus direitos básicos. O
aparato policial não traz segurança à população e as condições inumanas das
nossas cadeias fazem delas verdadeiras escolas do crime.
Acreditamos
que outro mundo e outro Estado são possíveis, porque o atual tripé crescimento
econômico, segurança social e democracia política não oferecem perspectivas do
bem viver universal. Não entramos no jogo de alternativas perversas: democracia com fome e miséria, ou bem-estar
material sem participação, sem liberdade política e sem horizonte de sentido,
ou prosperidade econômica do país com ditadura e fome.
A
construção do Estado do bem viver é uma construção cultural (não natural). Construir
o bem viver, é contracultural. Essa construção significa:
-
descolonizar as instituições
políticas,
-
desmercantilizar os saberes, a fé, a
escola, saúde,
-
desprivatizar o que deve ser de
domínio público,
-
frear a patologia da aceleração:
somos o freio de emergência.
2.
Construção do “bem viver” como crítica, ascese e solidariedade
Enquanto
nossos países estão competindo com os países com economias fortes, nas
discussões constitucionais da Bolívia e do Equador irrompeu uma proposta que
procura superar as políticas subordinadas aos projetos de hegemonia
competitiva. Essa proposta, de origem kechwa, se articula em torno de um novo
paradigma do “bem viver”, em kechwa, “sumak kawsay”.
O
“sumak kawsay” é uma utopia política não muito distante da utopia do Reino.
Ambos são precedidos ou representam um pachakuti,
uma reviravolta social. O pachakuti
restabelece o equilíbrio perdido e abre o caminho para “viver em plenitude”.
Como
cristãos podemos compreender o bem viver como vida em plenitude e como
sabedoria do reino, sem privilégios, sem prestígio. O bem viver no horizonte da
solidariedade não é para nós, é para os outros: “A outros Ele ajudou, para si
mesmo não sabe fazer nada”. Lutamos como servos para que ninguém precise ser
servo.
O
nosso bem viver é resultado do bem viver do outro, e não como compensação
transcendental, mas no aqui e agora. Os respingos da felicidade do outro podem
iluminar nossa vida, como as dores do outro nos mantém no caminho e na luta.
O
contexto político-cultural de hoje dificulta assumir publicamente o conflito
social como motor para a construção do bem viver. Quem fala em luta de classe
parece não ter compreendido as mudanças de época. Mas um novo modelo de
sociedade e desenvolvimento não vai emergir gratuitamente. Por causa dos pobres
somos obrigados de nos fazer presentes nessas lutas, evangelicamente
responsáveis e socialmente relevantes.
Através
de pequenas compensações e através de uma legalidade formal, o capital
conseguiu impor um contentamento superficial. Líderanças dos movimentos sociais
foram cooptados por cestas básicas de comida e medidas de mitigação que
representam o prato enfeitado daquele que é levado à forca.
A “ação afirmativa”
substituiu a “ação crítica”.
Num contexto de alienação generalizada e
de silêncios comprados, temos a tarefa de “desafinar o coro dos contentes”
(Torquato Neto) e desgovernar a nau dos adaptados que se contentam com o pouco
que o gozo regressivo à fase oral e anal oferece de maneira destrutiva via
consumo e acumulação. O bem viver para todos e sempre significa puxar o
freio de emergência do projeto acelerado e desgovernado em curso e propor outro
projeto civilizatório.
A
vida dos cristãos é atravessada pela cruz que assumimos por causa do bem viver
dos outros e pela gratuidade. Anunciamos o Reino de Deus como libertação da
servidão. A radicalidade da encarnação (e inculturação) tem o nome de
solidariedade (cf. Gaudium et spes,
32).
Solidariedade,
hoje, significa despojamento e ascese. Ascese para nós é libertação do
supérfluo, para que todos possam ter o necessário para o bem viver. A ascese é o protesto contra nossa
humilhação como consumidores. O bom é o inimigo do melhor e do mais.
Precisamos aprender a viver melhor com
menos.
No horizonte
evangélico de uma igualdade radical não existe lugar para a apropriação privada
da vida boa, nem da fé, da esperança e do amor. A fé nos foi dada por causa dos
desacreditados. A esperança nos foi dada por causa dos desesperados. O amor nos
foi dado por causa dos desprezados. Tudo que recebemos pertence aos
necessitados.
Vida
boa para todos e para sempre! A dimensão da cruz é a dimensão da ruptura. Ela
nos coloca no meio dos grandes conflitos. Nosso equilíbrio está na articulação
entre luta e contemplação. O bem viver, no horizonte de todos e para sempre,
existe somente no horizonte da ressurreição, que é justiça definitiva para
todos e insurreição contra o absurdo
histórico!
Parabéns pelo encontro de Teologia índia, continuem na luta para vencer o preconceito contra os povos indígenas e também lutar por seus direitos e para o bem viver em suas terras e em sua pátria.
ResponderExcluirIr.Carmen Silvia -FMA- São Gabriel da Cachoeira/AM/Brasil.