“No entanto, ela se move” (Galileu Galilei)


“Fora da Igreja não há salvação” - Será?

Sobre continuidade e descontinuidade
na interpretação da fé
 
 
 
 
Paulo Suess

        Desde os primeiros séculos do cristianismo até hoje, a afirmação “Fora da Igreja não há salvação” passou por várias interpretações autorizadas pela própria Igreja. Quero mostrar a evolução hermenêutica dessa afirmação com três exemplos: Francisco Xavier, o concílio Vaticano II e a Declaração Dominus Iesus sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja, da Congregação para a Doutrina da Fé, de 2000, que segue o Catecismo da Igreja Católica, de 1992.
 
        1. Francisco Xavier (1506-1552)
 
        Em 1927, Francisco Xavier, junto com Teresinha de Jesus, foi declarado padroeiro das missões católicas. Sua interpretação do “fora da Igreja não há salvação” valeu, praticamente, até o concílio Vaticano II. Entre a chegada de Francisco em Goa (Índia), 6 de maio de 1542, e a sua morte, em Sancião, na porta da China, no dia 3 de dezembro de 1552, passaram-se apenas 10 anos. Ele veio do contexto da expansão ibérica, porém sem possibilidade de impor seu Evangelho, como era costume nos territórios do Padroado. O único caminho aberto para a missão era o convencimento do outro. Os neófitos do Japão perguntavam repetidas vezes ao missionário: “Onde estão nossos pais e parentes falecidos?” A resposta o próprio Francisco nos transmite numa Carta que mandou de Cochin, no dia 29 de janeiro de 1552, a seus companheiros na Europa: “Uma desconsolação têm os cristãos do Japão; é que sentem em grande maneira dizermos que os que vão ao inferno não têm nenhum remédio. Sentem isso por amor a seus pais e mães, mulheres, filhos e aos outros mortos passados, tendo deles piedade. Muitos choram os mortos e me perguntam se podem ter algum remédio por via de esmolas e orações. Eu lhes digo que nenhum remédio têm”.
 
 
        Para compreender esta afirmação, vale lembrar a Bula Cantate Domino, do Concilium Florentinum, de 1442, que norteou a doutrina missionária da época. Esse Concílio “acredita, confessa e anuncia firmemente, que ninguém que existe fora da Igreja Católica, nem pagãos, judeus, heréticos ou schismáticos participará da vida eterna, mas que irão para o fogo eterno `que é preparado para o diabo e seus anjos´ (Mt 25,41)”. Uma boa nova que não incluía os antepassados, para a grande maioria dos japoneses, era inaceitável, na verdade era uma má notícia.
 
        2. O Vaticano II (1962-1965)
 
        Até a primeira metade o século XX, Francisco Xavier e praticamente todos os missionários e missionárias eram obrigados, em nome da Igreja, a negar a possibilidade de salvação para os não cristãos. Nessa matéria, o Vaticano II trouxe mudanças substanciais, que a seguir procuro sintetizar:
        a) “O Salvador quer que todos os homens se salvem” (LG 16; cf. 1Tim 2,4). Segundo o plano de salvação, a vida eterna é para todos.
        b) “Os que ainda não receberam o Evangelho se ordenam por diversos modos ao Povo de Deus” (LG 16).
        c) “O plano da salvação abrange também aqueles que reconhecem o Criador” (LG 16), muitas vezes, em religiões não-cristãs que “refletem lampejos daquela Verdade que ilumina todos os homens” (NA 2b). De ninguém, que procura “o Deus desconhecido em sombras e imagens, Deus está longe” (LG 16a).
        d) Os cristãos, diz a Gaudium et spes, não são exclusivamente associados ao mistério pascal e à esperança da ressurreição: “Isto vale não somente para os cristãos, mas também para todos os homens de boa vontade em cujos corações a graça opera de modo invisível. [...] Devemos admitir que o Espírito Santo oferece a todos a possibilidade de se associarem, de modo conhecido por Deus, a este mistério pascal” (GS 22).
        e) Todos “que sem culpa ignoram o Evangelho de Cristo e Sua Igreja, mas buscam a Deus com coração sincero e tentam, sob o influxo da graça, cumprir por obras a Sua vontade conhecida através do ditame da consciência, podem conseguir a salvação eterna” (LG 16). “Deus pode por caminhos d´Ele conhecidos levar à fé os homens que sem culpa própria ignoram o Evangelho” (AG 7a).
 
        f) A liberdade religiosa é um direito da pessoa humana e um pressuposto da missão. “Em assuntos religiosos ninguém seja obrigado a agir contra a própria consciência, nem se impeça de agir de acordo com ela” (DH 2a).
        Ao afirmar o monopólio salvífico como barreira excludente da salvação, como historicamente aconteceu, a Igreja errou no campo próprio, não no campo científico, como no caso de Galileu. Confundiu o princípio da salvação universal em Jesus Cristo com a mediação universal dessa salvação pela ação missionária da Igreja Católica.
 
        3. Declaração Dominus Iesus (2000)
 
        A Declaração DI procura construir uma continuidade entre a doutrina pré-conciliar e pós-conciliar. O que para o Concílio parecia óbvio, depois provocou questionamentos como este: O que antes do Concílio era considerado “verdade”, depois não pode ser declarado como “erro”. Já o “Catecismo da Igreja Católica”, de 1992, procurou superar esse impasse: Formulada positivamente, fora da Igreja não há salvação “significa que toda salvação vem de Cristo-Cabeça através da Igreja que é o seu Corpo” (CIC n. 846). Nesta perspectiva, a Declaração Dominus Iesus pode ser compreendida como síntese dessa questão: “A graça salvífica de Deus, dada sempre por Cristo, no Espírito, e em relação misteriosa com a Igreja, atinge os não cristãos” (DI n. 21). Como acontece isso? Por caminhos só por Deus conhecidos (cf. AG 7).
 

        Resumindo podemos dizer: Ninguém é excluído da salvação por não nascer como católico; a Igreja é misteriosamente mediadora da graça salvífica. Essa mediação é um mistério e não passa, necessariamente, pelos missionários ou pela conversão ao catolicismo. A real possibilidade da salvação em Cristo sem conhecimento do Evangelho e a necessidade da Igreja (dos sacramentos, da evangelização explícita) para essa salvação não se excluem (cf. Redemptoris missio 9, Dominus Iesus 20b). Por isso era possível que o papa João Paulo II (e mais tarde também o papa Bento XVI) se reuniu com representantes das Igrejas Cristãs, Comunidades Eclesiais e Religiões mundiais, no dia 27 de outubro de 1986, em Assis, não rezando pela conversão dos líderes religiosos das outras denominações, mas todos juntos rezaram pela paz mundial.

“No entanto, ela se move” (Galileu Galilei).
 

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