No dia 17 de janeiro passado, em Colombo, no Sri Lanka,
apagou-se uma das vozes mais poderosas da teologia da libertação asiática, a do
padre Tissa Balasuriya, 89 anos, religiosa dos Oblatos de Maria Imaculada,
pioneiro do diálogo inter-religioso graças à sua visão da integração entre as
religiões, que não deixou de provocar, especialmente nos anos 1990, problemas
com o Vaticano.
A reportagem é de Ludovica Eugenio, publicada na revista
Adista, 28-01-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto (Unisinos).
A teologia do Terceiro Mundo
Nascido no Sri Lanka no dia 29 de agosto de 1924, ele
completou lá o ensino médio e universitário. Tendo entrado na Congregação dos
Oblatos de Maria Imaculada, em 1947 foi enviado a Roma para completar a sua
formação e ser ordenado sacerdote (1953).
Novamente no Sri Lanka, Balasuriya lecionou teologia e
economia na Aquinas University College, de Colombo, em um contexto social e
religioso multifacetado: o Sri Lanka é uma ilha de maioria budista (69%), com
uma forte minoria hindu (15% ) e uma não desprezível presença muçulmana (8%) e
cristã (8%).
Daí a necessidade de apresentar a teologia com uma nova
abordagem: em 1971, Balasuriya pediu demissão da universidade e fundou o Center
for Society and Religion com o objetivo de tornar os ensinamentos cristãos
acessíveis aos concidadãos não católicos companheiros. Em 1975, também fundou a
Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo (EATWOT, na sigla em inglês)
e, em 1978, publicou o seu livro Eucharist and Human Liberation [Eucaristia e
libertação humana], que o colocou no rastro dos teólogos da libertação.
Nos anos 1990, a abordagem inovadora da teologia do Pe.
Tissa despertou desconfiança e suspeita. O episódio teve início em 1990, quando
Balasuriya – já muito conhecido e apreciado na Ásia – publicou o livro de Mary
and Human Liberation [Maria e a libertação humana], que circulou sem nenhuma
oposição por mais de três anos.
No início de 1993, o religioso foi convocado pelos bispos do
Sri Lanka. Um deles, Dom Malcolm Ranjith, leu a ele um documento elaborado por
uma comissão teológica ad hoc, que invocava "medidas disciplinares para
impedir" que Balasuriya "se comprometesse ainda mais com reflexões
teológicas imaturas e irresponsáveis". Quais são as "heresias" com
as quais ele teria se manchado? Ele seria culpado de interpretar de uma maneira
pessoal a doutrina do pecado original, dando uma imagem errônea dela, e de
insinuar dúvidas muito pesadas sobre a divindade de Cristo, sobre o seu papel
de redentor e sobre os dogmas marianos.
Sem possibilidade de defesa
Às acusações, o teólogo respondeu que as ideias contidas no
seu livro foram distorcidas pela comissão teológica, e que não lhe havia sido dado
nenhuma possibilidade de se explicar, nem de responder publicamente. Mas a sua
defesa não pareceu ter sido levada em consideração: em julho de 1994, a
Congregação para a Doutrina da Fé lhe enviou uma série de
"observações" sobre os supostos erros doutrinais do seu livro. Às
observações do ex-Santo Ofício, Balasuriya respondeu com um documento em 58 pontos
em que destacou todas as deturpações do seu pensamento, cuja responsabilidade
seria dos bispos que o acusavam.
Em novembro de 1995, porém, chegou-lhe a tréplica da
Congregação vaticana: as suas respostas às acusações foram consideradas
"insatisfatórias". Por esse motivo, foi-lhe enviada uma
"profissão de fé" redigida ad hoc, com a injunção de assiná-la. O
texto, elaborado especialmente pela Congregação para a Doutrina da Fé, enfatizava
particularmente a infalibilidade pontifícia, a virgindade de Maria, Deus como
autor dos livros da Bíblia, além da origem divina (e não sociocultural) da
interdição ao sacerdócio para as mulheres.
Balasuriya recusou-se a assiná-la, colocando a sua
assinatura, ao invés, na parte inferior da profissão de fé de Paulo VI, especificando,
porém, que o fazia no "contexto do desenvolvimento teológico e das
práticas da Igreja depois do Concílio Vaticano II e da liberdade e
responsabilidade dos cristãos e dos teólogos estabelecidas pelo direito
canônico".
A sua recusa, em maio de 1996, implicou a retirada da
qualificação de teólogo católico, além de uma ação disciplinar com base no
cânone 1.364 do Código de Direito Canônico, que prevê a excomunhão latae
sententiae (automática) para hereges, apóstatas e cismáticos, assim como a dispensa
do estado clerical, em caso de sacerdotes.
A sanção, datada de 8 de dezembro de 1996, chegou sem nenhum
processo, apesar do que prescreve o Direito Canônico, e sem nenhum diálogo.
"Mais de uma vez eu escrevi para todas as autoridades – afirmou Balasuriya
– que eu estou pronto para me corrigir publicamente, se for provado que eu
estou errado com relação à ciência teológica contemporânea diante de um
tribunal justo".
A reação do mundo teológico foi planetária. A excomunhão
deixou chocadas a congregação religiosa de Balasuriya, os Oblatos de Maria Imaculada,
ramo cingalês, assim como a Comissão Asiática para os Direitos Humanos, a
Associação Ecumênica de Teólogos da Ásia, a Associação Internacional de
Teólogos do Terceiro Mundo, o Fórum das Religiões para a Solidariedade Mundial
e o Movimento de Estudantes Católicos da Ásia e do Pacífico.
Houve até manifestações de budistas e de hindus. No resto do
mundo, puseram-se do lado do excomungado a seção belga da Associação de
Teólogos Católicos e inúmeras organizações de leigos e de religiosos da América
do Norte, da Austrália e da Europa. Do mundo inteiro, mais de 10 mil cartas de
solidariedade foram enviadas ao teólogo.
Balasuriya, portanto, recorreu a João Paulo II, a mais alta
instância de apelo, mas o papa o recusou, e a excomunhão se tornou efetiva e definitiva.
Mas Balasuriya não se rendeu e apelou também para a Signatura Apostólica, o
Supremo Tribunal do Vaticano, mas que se declarou incompetente para aceitar o
recurso do teólogo já que havia sido o papa em pessoa que aprovou a Notificação
de excomunhão.
Tissa, porém, mais uma vez, não se deu por vencido e enviou
à Congregação para a Doutrina da Fé uma nova proposta, a de assinar o Credo de
Paulo VI, pura e simplesmente, sem nenhum acréscimo. No fim, Roma retrocedeu e
retirou a sanção.
Maria, mulher da classe operária
Mas o que valeu a Balasuriya tal tratamento? No livro
incriminado, o teólogo afirma que a Maria libertadora das Escrituras – mulher
"forte, da classe operária" –, cujo objetivo era derrubar os
poderosos de seus tronos, foi ofuscada por uma "Maria desidratada",
uma "obediente, fiel, doce virgem mãe". Uma Maria, em suma,
tradicionalmente domesticada em uma "consoladora dos fracos dos
nervos", que não tem mais nada de "perturbadora dos ricos" do Magnificat.
A contribuição particular de Balasuriya como asiático se
refere, no entanto, ao diálogo inter-religioso. No contexto em que viveu, o
desafio era o de "repensar os dogmas fundamentais da tradição cristã"
à luz do hinduísmo e do budismo: "Na Ásia – afirmava – devemos pôr em
discussão as bases de uma teologia que feriu os nossos povos durante
séculos".
Aqui, a sua teologia se encontrou diante de pontos
espinhosos, quando investigou as doutrinas do pecado original e da necessidade
da redenção de Cristo. A ideia cristã de "uma humanidade que nasce
repudiada pelo seu criador", afirmava Balasuriya, com o seu esmagador
senso de impotência (Maria teve que ser preservado do destino comum humano
através da Imaculada Conceição), é profundamente inaceitável para as outras
fés, assim como a ideia de que "gerações inteiras de outros continentes
viveram e morreram com uma possibilidade a menos de se salvar".
E aqui outro ponto fundamental: a crítica à ideia de Jesus
como "único, universal e necessário redentor". O conceito da graça
divina entendida como decorrente de Cristo, destaca Balasuriya, não deve ser um
obstáculo para o diálogo com pessoas de outras religiões teístas, já que a
graça é vista como "benevolentemente concedida a todos os seres
humanos".
Efeito desestabilizador
O aspecto mais forte e "desestabilizador" para o
Vaticano, contudo, era a consequência política da sua mariologia. A tradicional
piedade mariana, defendia Balasuriya, "contribuiu para legitimar as
diferenças de classe e de condição entre Senhor e consciência do fiel, entre
Nossa Senhora e mulher comum".
A partir desse ponto de vista, a prática de rezar o terço
mecanicamente "pode dar a ideia de uma salvação das almas da perdição sem
nenhuma referência a uma libertação humana integral", assim como a
aparição de Lourdes "não diz nada sobre a condição da classe operária na
França à época", e muito menos "alude aos danos causados na África
pela expansão militar e econômica francesa. No entanto, quando Maria é
apresentada aos habitantes do Sri Lanka, ela é chamada de 'Senhora das
Vitórias' no conflito entre cristãos e turcos na Batalha de Lepanto". [...]
A teologia tradicional cristã sobre Jesus Cristo, defendia o
Pe. Tissa, é substancialmente cristologia exclusivista, pois "limite a
salvação aos cristãos, considerando-a possível apenas mediante Jesus Cristo, o
necessário, único e universal salvador de toda a humanidade" e afirma que
"as outras religiões, embora possam apresentar alguns elementos de
verdade, não mostram 'a verdade', nem mostram uma verdade capaz de levar os
seus seguidores à salvação".
A interpretação da vida, da mensagem e da morte de Jesus,
entendido como um resgate pelos pecados da humanidade, em suma, "desvia a
atenção da mensagem de Jesus de amor e de justiça em uma sociedade injusta, que
o condenou a morrer na cruz. Essa cristologia geralmente interpreta a salvação
por meio de Jesus como a de um Deus-Homem que paga o preço pela ira de
Deus-Pai. Isso parece contradizer o tema central do 'Deus é amor' e do 'ama a
Deus e ao próximo' como critério de salvação atribuído ao Jesus dos
Evangelhos".
Essa abordagem exclusiva, defendia Balasuriya, está na
origem das aberrações "políticas" das quais foram responsáveis
aqueles que administram o poder na Igreja: "As suas interpretações levaram
a atitudes de profunda arrogância e intolerância das poderosas Igrejas cristãs.
Foram utilizadas para legitimar a Inquisição, as invasões coloniais, o
multissecular colonialismo. Os papas encorajaram os chefes de Estado europeus a
invadir, conquistar e converter ao cristianismo todos os povos de outros
continentes, para que se salvassem a alma". [...]
Na origem dessa atitude, Balasuriya coloca o dogma do pecado
original, por meio do qual "não há possibilidade para que a teologia
cristã elabore uma interpretação que não ofenda os 'outros' que estão fora da
Igreja, as outras religiões". Daí a necessidade de uma abordagem
pluralista às religiões, já que nenhuma delas "tem o monopólio do
conhecimento de Deus, da Realidade Última ou da salvação humana e da vida após
a morte. Todas as religiões devem estar dispostas a aprender com as outras, a
aprender até com a sociedade laica e até mesmo com a evolução do mundo e o seu
progresso". [...]
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