A Igreja se
encontra numa encruzilhada, num dilema: abrir-se ao mundo e dialogar com ele ou
fechar-se sobre si mesma, constata o sociólogo. - Nota da IHU On-Line:
A entrevista abaixo foi publicada, originalmente, no dia 25-01-2013. Propomos a
sua releitura.
“Maio de
1968 fez dos direitos humanos uma busca de satisfação de direitos individuais.
O politicamente correto produziu um minimalismo ético, constituído de normas
pontuais, provocadas por interesses tribais e corporativos. A realidade é que
não se sabe como preencher o vazio. Nesse quadro, sumariamente esboçado como
pensar o conservadorismo? E a Igreja?”. A indagação vem do padre e sociólogo
Luiz Roberto Benedetti. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU
On-Line, ele concorda que a Igreja Católica seja conservadora e que ela aposta
no conservadorismo. “Mas o pensamento e praxis institucionais de caráter
doutrinário, ao ignorar o contexto histórico, podem produzir frutos amargos,
perdendo relevância social mesmo no patamar dos valores que apregoam como sendo
constitutivos de seu estilo de pensamento de modos de vida”. Para Benedetti, na
atual conjuntura eclesial, “parece em curso um processo de mediocrização
crescente: imposição acrítica da doutrina, a falta de uma hermenêutica séria na
pregação da Palavra, valorização do espetáculo e pompas rituais, as grandes
concentrações e a decadência de uma educação teológica de caráter sapiencial e
reflexivo ilustram o quadro”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line
- Como o senhor analisa a posição da Igreja no contexto atual? Percebe que ela
estaria enfrentando a modernidade com uma aposta no conservadorismo?
Luiz
Benedetti - Tento ir na contramão e evitar definições prévias ou aderir a
posições já assentadas. Assim, por exemplo, de um lado, se afirma que a
secularização é um fato e, mais ainda, um dado irreversível e que o pluralismo
e crescimento dos grupos religiosos é sua expressão visível. De outro lado, a
posição contrária que vê um renascer religioso que coloca em xeque tudo o foi
teorizado até agora sobre este termo. Se aceita a teoria, pode-se no máximo
admitir que há uma pós-secularização ou dessecularização. Outro exemplo: o
próprio termo relativismo é insuficiente para caracterizar o contexto atual. De
um lado, há a crise do pensamento metafísico; de outro, a crise do marxismo
colocou por terra a pretensão de conferir um desígnio à História, portadora, no
dizer de Otavio Paz, de uma transcendência mítica. Busca-se no estilo de vida,
fundado no consumo, um sentido para a vida. Mais do que relativismo, o que se
experimenta é um grande vazio, que não se sabe como preencher.
Pretensões
institucionais de fazê-lo estão mergulhadas em reivindicações que agudizam
contradições no interior dos grupos religiosos, confrontados com a
predominância de aspirações e desejos subjetivos (que se acredita serem
direitos inalienáveis) sobre doutrinas e normas. Maio de 1968 fez dos direitos
humanos uma busca de satisfação de direitos individuais. O politicamente
correto produziu um minimalismo ético, constituído de normas pontuais,
provocadas por interesses tribais e corporativos. A realidade é que não se sabe
como preencher o vazio. Nesse quadro, sumariamente esboçado como pensar o
conservadorismo? E a Igreja? Olhemos a Praça de São Pedro, no Angelus do
domingo, 13 de janeiro: enquanto membros de um grupo feminista se despia
durante a alocução papal em protesto contra o modo como a instituição eclesiástica
trata as mulheres, uma multidão, de mais de 350 mil pessoas, participava de
marcha contra o projeto do presidente da França, Hollande, de liberar o
casamento gay e garantir o seu direito de adotar filhos. E no campo da teoria
antropológica, Marc Augé, perguntando se na questão homossexual existe algo
mais conservador do que a reivindicação do casamento.
IHU On-Line
- Quais as chances de sucesso da opção conservadora diante da crise de
credibilidade da Igreja atualmente? Que riscos se corre indo por esse caminho?
Mas, tanto
num caso quanto no outro há, por parte das duas religiões citadas, apelo a uma
tradição. Esta é, objetivamente, a concretização de uma identidade
sociocultural que nem sempre dignifica a pessoa e favorece sua emancipação. A
tradição forma, no dizer de Manheim, modos de vida; estes, por sua vez geram
estilos de pensamento que levam os indivíduos a se relacionarem com a realidade
dentro de um esquema que interessa a grupos situados em posição privilegiada dentro
do status quo institucional. Nesse caso, no exemplo citado, é claro que a
Igreja Católica é conservadora e aposta no conservadorismo. Mas, como lembrei
acima, o pensamento e praxis institucionais de caráter doutrinário, ao ignorar
o contexto histórico, podem produzir frutos amargos, perdendo relevância social
mesmo no patamar dos valores que apregoam como sendo constitutivos de seu
estilo de pensamento de modos de vida, para ficar mais uma vez nos termos de
Manheim. As instituições são conservadoras, governadas pela lei de sua
autoreprodução. Para isso fazem adaptações pontuais.
No caso da
Igreja Católica ela lida com o conflito através de mecanismos do tipo heresia e
canonização. Pode-se ver um exemplo concreto na retomada da onda de
canonizações no pontificado de João Paulo II. João XXIII e Paulo VI utilizaram
pouco este mecanismo. Seu horizonte de visão e ação estava no mundo. O que a
Igreja tinha a dizer estava mais em discernir os sinais dos tempos do que em
propor modelos “prontos” de vida cristã. A própria reação a canonizações (Pio
XII e os judeus, por exemplo) confirma a força simbólica desse mecanismo.
Conservadorismo:
dados
O
conservadorismo implica em um duplo movimento, de cima para baixo e vice-versa.
Há uma espécie de retroalimentação. O peso maior ou menor do vértice ou da base
depende de momentos e situações históricas definidas. Fala-se da Cúria Romana,
como modelo de conservadorismo, mas nem ela é um todo monolítico, se
considerarmos as pessoas que ocupam cargos. Entretanto, se levarmos em conta os
mecanismos que a regem, sua dinâmica interna – a burocracia impessoal e a
distância pastoral, a falta de contato direto com o povo de Deus – seu
funcionamento se reduz ao papel frio de controladora da vida da Igreja. Às
vezes tem-se a impressão que se inventam problemas para gerar controvérsias e,
dessa forma, ter como mostrar trabalho. Assim, o campo da regulação dos ritos é
um terreno fértil para a geração de discussões. Só que esse mecanismo funciona
e bem na medida em que provoca um movimento de baixo para cima. Um exemplo
muito banal: a ausência de inquietação com os destinos do mundo por parte de
seminaristas e os novos padres. Seu horizonte de preocupação restringe-se ao
funcionamento da vida interna da Igreja. Sem ter o mundo e a história como
horizonte de vida e pensamento cai-se na mediocridade. E então vestes e
horários ficam mais importantes que as alegrias e dores do povo de Deus.
Problema
crucial está na escolha dos quadros intermediários da Igreja: são vitais para
sua atuação na sociedade. As nomeações têm obedecido a critérios nos quais pesa
mais a submissão que a capacidade de contribuir para dar novos rumos ao
caminhar da Igreja. A obediência pode ser caracterizada como subserviência.
Isso porque o conservadorismo gira em torno de três eixos: a obediência tornada
subserviência que faz o indivíduo ficar a serviço de tarefas pré-estabelecidas
no tempo e no espaço; o carreirismo, fruto do poder como privilégio e favor e
não como serviço: e a burocracia, cuja impessoalidade se entende como
racionalização e eficácia.
IHU On-Line
- O que esperar de um cenário em que, ao mesmo tempo, se diluem as bases
tradicionais de pertença religiosa, a liberdade religiosa, o pluralismo e a
secularização e se abre espaço para projetos religiosos de viés conservador e
fundamentalista?
IHU On-Line - Quais os maiores desafios que a Igreja precisa enfrentar na contemporaneidade? Como ela tem feito isso, na sua opinião?
IHU On-Line
- Como o senhor percebe a postura de Bento XVI de robustecer a Igreja Católica
frente aos desafios impostos pelo avanço do pluralismo religioso e cultural?
Luiz
Benedetti - Robustecer a Igreja num mundo de pluralismo religioso e cultural
significa, antes de mais nada, preparar quadros qualificados para o diálogo
adulto e responsável. E isso só é possível em clima de liberdade. Quando esta
desaparece, ou pior, cede lugar ao medo, instaura-se a mediocridade, cria-se um
saber de manual, de repetição de fórmulas. Pior: alimenta-se a imagem da Igreja
como praticante de uma espécie de polícia do pensamento tão a gosto da imprensa
que explora à saciedade esta faceta. Aliás, nem sempre de maneira justa. Só que
não se pode esquecer: livros proibidos provocam corrida às livrarias e seus
autores adquirem respeito e guarida em centros de produção de pensamento, que
prezam acima de tudo a competência e honestidade intelectuais. Por outro lado,
não se pode esquecer que esse quadro de mediocrização se generaliza cada vez
mais no ambiente acadêmico como um todo.
IHU On-Line
- Como o campo religioso católico brasileiro se articula com o cenário
internacional da Igreja? Qual a especificidade do catolicismo brasileiro?
Luiz
Benedetti - O último censo diz tudo. A sensação, pessoal, e, por que não, o
temor, é o de uma Igreja que caminha para a irrelevância social. Mais adaptada
ao mundo (que combate) do que parece. Fixemo-nos num dado: a prática cultual.
Um padre mostrou-me a assembleia reunida para a Eucaristia e comentou: somos
cada vez mais a Igreja das cabeças brancas. Referia-se a faixa etária dos
participantes. O catolicismo brasileiro, na realidade, são catolicismos. Se
tomarmos o catolicismo “oficial” (na falta de outro termo) a esperança reside
no profetismo, num catolicismo de resistência, o mesmo que assumiu o Vaticano
II, combateu a ditadura e luta pelo direito dos pobres. Nas comunidades, pouco
visíveis, mas capazes de uma solidariedade pequena, despojada, mas que faz
frente ao individualismo contemporâneo. Quanto ao catolicismo popular: o
pentecostalismo se alimenta dele. Os cientistas sociais se perguntam: não será
ele, em suas formas novas, um catolicismo rural urbanizado?
IHU On-Line
- Fazendo uma breve retrospectiva da diversidade e da unidade da Igreja
Católica e de seus dilemas entre o início da década de 1960 e a década de 1990,
como o senhor percebe a Igreja hoje, em comparação a este período? Qual o
espaço que ocupam hoje, para os fiéis católicos, as três vertentes básicas da
instituição: Templo, Praça e Coração?
Luiz
Benedetti - Nos anos 1960 a unidade se dava em termos de uma pastoral
planejada, de atuação colegiada dos bispos. Havia uma “vanguarda” episcopal,
nomeada por D. Armando Lombardi, que buscou entre os padres que eram
assistentes da Ação Católica, bispos capazes de dar um novo perfil ao
episcopado, sensíveis à dinâmica histórica, aos problemas da realidade social
em transformação, capazes, no dizer de um acadêmico, de aprender com os leigos
e escapar ao mundo da formação seminarística (no seminário não se podia ler
Jacques Maritain). A consagração dessa realidade pelo Concílio Vaticano II,
dando à colegialidade episcopal um papel “sacramental” foi radicalmente
alterada com a “ligação” direta bispo-papa, a colegialidade reduzida a um
agregado “afetivo”, a obediência livre e responsável substituída pela submissão
em todos os níveis da vida religiosa católica, os movimentos de caráter
emocional-intimista, doutrinariamente fundamentalistas alteraram radicalmente o
quadro de “utopias” em ação dos anos 1960. Mas é preciso acrescentar. Nos anos
1960, as Igrejas oriundas da Reforma viviam a mesma efervescência. E se
alimentavam umas às outras. As produções do Conselho Mundial de Igrejas eram
lidas por nós. Hoje o mesmo processo ocorre ao inverso:
Templo:
poucos jovens, rituais que seduzem menos pelo mistério e pela Palavra que pela
pompa vazia e mentalidade rubricista.
Praça: os
leigos estão no mundo, lugar de exercício de sua vocação batismal? Os
ministérios leigos não representam uma saída para o verdadeiro problema que é a
busca de novas formas de exercício do sacerdócio ministerial? Por isso mesmo,
no momento não estão na praça. São clericalizados.
Coração: não
se vê um horizonte favorável aos movimentos de caráter emocional. Há uma
sensação, apenas uma sensação, de esgotamento. Mesmo porque são incapazes de
agir sobre a sociedade em que surgiram e transformar a Igreja que lhes deu
força. E mais: o forte componente emocional tende a se esgotar rapidamente e
não deixar nada no seu lugar.
IHU On-Line
- Qual o sentido do fundamentalismo religioso contemporâneo? Como ele se
relaciona (e talvez se justifica) com outros fenômenos de nosso tempo?
Luiz
Benedetti - Há que se escapar de uma visão que o vincula estreitamente às suas
origens, fundadas na reação ao evangelismo liberal, à recusa de uma
hermenêutica “moderna” na compreensão da Palavra de Deus. Ele é bem mais que
isso. É uma atitude de vida, um modo de ser no mundo. Nesse sentido ele se
apresenta como adesão irrestrita a um Grande Texto, assumido literalmente. Pode
ser a Bíblia, o Alcorão, a própria Constituição de um país (um fundamentalismo
tipicamente americano, no dizer de Agnes Heller). Apresenta-se como um modo de
fazer frente a uma desordem e fragmentação internas, provocadas pela
subjetivação intimista que faz do gosto pessoal o critério último da
consciência moral. Mas é preciso perguntar: será que a sociedade recusa os
parâmetros que a Igreja prega? Ela precisa deles e os solicita. O que ela
recusa é a imposição pela violência – simbólica ou física. Mesmo porque esses
parâmetros são funcionais. Eles delimitam o campo da ação “legítima” e, nesse
sentido, “situam” num mapa significativo indivíduos e grupos. Os indivíduos
sabem o que é certo ou errado. E isso traz segurança. Impede que sejamos, na
expressão de Berger, “homeless mind” (um mundo sem lar). O que, em absoluto,
não quer dizer que se norteiem pelos parâmetros propostos. Uma demonstração de
que a sociedade não recusa verdades está na aceitação e difusão ampla da
literatura de autoajuda, um tipo de guia que traz pronto um mundo no qual não é
preciso pensar, refletir, escolher, decidir. A autoajuda dispensa o
discernimento e a escolha. Responde ao homem moderno cuja angústia é ter que
escolher.
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