Em memória de Catarina Lutero e Jenny Marx
O ano 2017 nos lembra, além centenário da Revolução
Russa (1917), de duas publicações que fizeram história. Faz 500 anos que Lutero
pregou 95 teses à porta da Igreja do Castelo de Wittenberg (Alemanha), e faz 150
anos que Marx publicou o primeiro volume do “Capital” com o título “Crítica da
economia política”. As “Teses”, de 1517, visavam à Reforma da Igreja Católica, o “Capital”, de 1867, à Revolução como emancipação da classe
operária.
Neste ensaio
por ocasião do momento jubilar das “Teses” e do “Capital” quero lembrar a vida sacrificada
das mulheres de seus autores, a vida de Catarina Lutero (1499-1552) e Jenny
Marx (1814-1881). A presença de Catarina e Jenny na vida de Lutero e Marx não
pode ser reduzida a enfeites secundários de uma causa maior. A causa maior, as
lutas por tolerância e diversidade, por justiça e igualdade, por emancipação e
participação andam mancando e são destinadas ao fracasso se não tiverem um
rosto feminino e masculino.
1. Catarina Lutero
Catarina nasceu em 29 de janeiro de 1499, em Zülsdorf, junto à Lippendorf, ao sul de Leipzig (Alemanha). Aos três anos de idade perdeu sua mãe e com cinco anos foi deixada numa escola de religiosas Beneditinas de Brehna. Com 16 anos, tornou-se religiosa num convento cisterciense de Nimbschen. Graças à passagem pela vida conventual, Catarina recebeu uma boa formação, aprendeu a ler e a escrever (um privilégio naquela época), apropriou-se do latim litúrgico, de saberes elementares da cozinha e costura, da medicina natural e da agricultura.
Em 1517, as Teses de Lutero começaram a agitar o país.
Em 1523, Catarina conseguiu fugir de sua clausura para Wittenberg, acompanhada
por um grupo de aventureiras corajosas. Algumas delas retornaram às suas
famílias, outras foram ajudadas por Lutero e seus amigos a se reencontrar no
mundo através de um trabalho e um casamento. Catarina ficou por dois anos como
doméstica na casa do pintor Lucas Cranach. A sina das mulheres da época era
essa: da tutela do pai às prendas domésticas e à obediência de um marido.
O ano de 1525 foi de grande convulsão social. Os
camponeses se revoltaram contra sua condição de vassalos de príncipes e nobres.
Depois do grande massacre dos camponeses em Frankenhausen, um dos seus líderes
ideológicos, Thomas Müntzer, pastor protestante e ex-aluno de Lutero, em
Mühlhausen, 27 de maio 1525, foi publicamente decapitado. No mesmo ano, o
reformador já se havia pronunciado “Contra as hordas salteadoras e assassinas
dos camponeses”. A libertação dos camponeses do jugo feudal fracassou, não sem
o apoio de Lutero.
Em 13 de junho de 1525, poucas semanas depois da
chacina dos camponeses, Lutero e Catarina se casaram - ela com 26 anos de idade
e por opção, ele com 42, empurrado pelos amigos. Ambos se formaram em conventos
e não estavam propriamente preparados para a vida conjugal. O monge Martinho
gostava de trabalhar no silêncio e, ao mesmo tempo, era detentor cortejado do
monopólio da palavra, no púlpito e na mesa. A monja Catarina, que escapou do
silêncio obrigatório dos cistercienses, gostava da prosa contínua. O início da
convivência não foi fácil.
O príncipe Johann da Saxônia, irmão de Frederico, o
Sábio, recém-falecido, que era o grande protetor de Lutero, doou ao casal o
mosteiro dos agostinianos de Wittenberg e suas dependências. Portanto, também
depois do casamento, Lutero estava em sua casa conventual, porém sem guardião e
ecônomo, como é costume nos conventos. Essa parte foi assumida por Catarina,
que transformou o convento em casa movimentada por amigos, viajantes e hóspedes,
e numa pensão para estudantes, que se tornou uma fonte de renda. Catarina, que
se assemelhou mais com a Martha do Evangelho do que com a Maria: “Ela lida com
carroças, prepara a terra, apascenta e guia o gado, faz cerveja etc. Entre uma
e outra atividade também começa a ler a Bíblia”. Dos axiomas do marido (ser
salvo “somente pela fé”, “somente pela graça”, “somente pela cruz de Cristo”) compreendeu
o essencial. Sua religiosidade estava mais próxima à fé das mulheres do povo do
que à compreensão dos teólogos. Para compreender a venda das indulgências como
obra do diabo não precisava de um estudo teológico aprofundado.
Da união de Lutero com Catarina nasceram seis filhos. Em
1529, com a morte da irmã de Lutero, o casal acolheu ainda as seis crianças
dela. O antigo convento dos agostinianos tornou-se também uma casa de trânsito
para a irmã morte. A primeira filha do casal, Elizabeth, morreu aos oito meses
de idade, e Madalena, a segunda, faleceu aos 13 anos. Repetidas vezes, Lutero
chamou Catarina de “estrela da manhã de Wittenberg”, já que diariamente ela se
levantava às quatro horas da madrugada, mas também porque se tornou luz em suas
noites escuras de depressão e, com o saber da medicina popular da época, enfermeira
de um marido com múltiplas doenças e superstições da época, indisciplinado no
trabalho e na comida. Ao ler o “Catecismo Menor” (1529), os sermões e a
correspondência daquele tempo, percebe-se como a experiência familiar
enriqueceu a vida cotidiana do Dr. Lutero.
Depois da morte do marido (1546), Catarina experimentou
o desamparo das viúvas bíblicas. Perdeu a segurança do lar, garantida pela
autoridade de Lutero e por seu salário da universidade, de 100 florins. Teve de
enfrentar processos jurídicos pela herança, presenciou lutas religiosas (“guerra
smalkaldiana”) e fugiu, com os filhos, da peste que devastava Wittenberg. A
caminho de Torgau, acidentou-se gravemente com sua carroça. Às feridas do
acidente juntou-se uma pneumonia. Dia 20 de dezembro de 1552 veio a falecer.
Numa carta a um amigo, Lutero teria escrito: “Minha
querida Cate me mantém jovem [...]. Sem ela, eu ficaria totalmente perdido. Ela
aceita de bom grado minhas viagens e, quando volto, está sempre me aguardando
com alegria. Cuida de mim nas minhas depressões e suporta meus acessos de
cólera. Ela me ajuda em meu trabalho, e acima de tudo, ama a Cristo. Depois
Dele, ela é o maior presente que Deus já me deu nesta vida. Se algum dia vierem
a escrever a história de tudo o que já tem acontecido (a Reforma), espero que o
nome dela apareça junto ao meu”. Catarina não foi a propulsora da Reforma, mas seu
sustentáculo.
2. Jenny Marx (1814-1881)
Jenny von Westphalen Marx nasceu, tal qual Catarina
von Bora Lutero, de uma família cujos membros foram um dia servidores da nobreza.
Jenny tinha dois anos quando seu pai foi transferido para Trier, onde assumiu
no governo distrital o cargo de um funcionário superior. O pai Heinrich, de Karl Marx,
era um “cristão novo”. Depois da presença napoleônica na Renânia (“Reino Real de
Westfalen”, 1807-1813), a Prússia se apropriou, em 1815, de muitas partes territoriais
da Renânia, e aboliu a legislação progressista de Napoleão. Assim, a região católica
de Trier foi governada pela Prússia luterana que não permitiu o exercício
profissional de Judeus na esfera do direito. Teria sido ainda um vento tardio
do antijudaísmo de Lutero? O jovem Heinrich Marx passou do judaísmo para o
protestantismo na cidade católica de Trier, onde se tornou um advogado
reconhecido. As famílias de Jenny e Karl tiveram contatos sociais nos círculos
esclarecidos de Trier, e foi Ludwig von Westphalen quem introduziu Jenny e Karl
nas ideias da Revolução Francesa. Marx dedicou sua tese doutoral ao futuro
sogro, Ludwig von Westphalen.
Jenny e Karl se conheciam desde os tempos de colégio. Marx
conquistou sua Jenny, que teve muitos pretendentes, com poemas de amor e
investiu nessa relação com ela por longos anos e até por um noivado clandestino
(1836).
Depois dos estudos de Karl em direito, filosofia,
história em Bonn e Berlim, e um doutorado em Jena (1841), e depois de uma
rápida passagem por Köln, como redator-chefe do jornal liberal “Rheinische
Zeitung”, Jenny e Karl se casaram no civil e religioso, em 19 de junho de 1843,
ela com 29 anos, ele com 25. Tiveram sete filhos, que nasceram em 1844
(Caroline), 1845 (Laura), Edgar (1847), Henry Edward Guy (1849), Francisca
(1851), Eleanor (1855), e o último, que morreu logo após seu nascimento, em
1857. Três chegaram à idade adulta. Duas das três filhas sobreviventes, Eleanor
(+1889) e Laura (+1911), se suicidaram.
Logo depois do casamento, Jenny e Karl se transferiram
para Paris, já que o jornal de Köln, onde Marx trabalhava, estava proibido
desde março daquele ano. Em Paris, onde Karl exercia um trabalho jornalístico,
nasce Caroline, sua primeira filha. De Paris, datam também as relações com
Engels, Bakunin, Heine e muitos outros. Contra os interesses de sua classe
social, Friedrich Engels tornou-se o esteio financeiro da família Marx em
períodos nos quais faltou comida para os filhos e dinheiro para pagar o
aluguel. O brilho intelectual de Marx não resplandeceu em sua situação
econômica.
Por intervenção do governo da Prússia, em 25 de
janeiro de 1845, o casal foi expulso da França e refugiou-se em Bruxelas. Os governantes
nobres da Prússia eram luteranos e antissocialistas. No exílio de Bruxelas, em 26
de setembro de 1845, nasce sua filha Laura e, em 3 de fevereiro de 1847, seu
filho Edgar. Em Bruxelas, em 1848, foi publicado o “Manifesto do Partido
Comunista”, escrito por Marx e Engels. Na única página do original que ainda existe,
as primeiras linhas mostram a letra de Jenny. Em 4 de março de 1848, o
“Manifesto” foi a razão da prisão e expulsão de Jenny e Karl de Bruxelas.
Jenny não foi um mero apêndice da fama de seu marido. Ela
transformou a letra de Karl, às vezes quase ilegível, num manuscrito publicável
e traduziu muitos dos seus textos para o francês, além de dominar o inglês. Várias
de suas resenhas do teatro londrino foram publicadas em Frankfurt. Esse tempo
de “secretária de Karl”, confessa Jenny, foi o tempo “mais feliz da minha
vida”. Sem a compreensão intelectual desses textos ela não poderia ter feito
esse trabalho de “tradutora”. A vida cotidiana em pobreza permanente, a
ausência do marido por causa de viagens e congressos, sua embriaguez, doenças e
a educação dos filhos representaram desafios na convivência familiar de Jenny
com seu parceiro. Na Páscoa de 1852 morreu Francisca, por causa de uma bronquite.
Na mesma noite, lembra Jenny em sua autobiografia, “nós nos deitamos no chão,
as três crianças vivas conosco, chorando pelo anjinho, que frio e pálido
descansou ao nosso lado. [...] Foi o tempo da nossa pobreza mais amarga”. Para
comprar um caixão, Jenny bateu em muitas portas e foi, finalmente, atendida por
um refugiado francês.
Desde sua passagem por Bruxelas, Jenny
trouxe da casa de sua família uma empregada doméstica, Helene Demuth, nove anos
mais jovem que ela, para ajudar em casa. Helene, que se tornou uma socialista
respeitada, acompanhou a família Marx em todas as suas peripécias. Em 23 de
junho de 1851, ela teve um filho com Marx, que para preservar a reputação do
pai, foi oficiosamente assumido por Engels, de quem também levou o nome:
Frederich Lewis Demuth (1851-1929). Freddy foi entregue para pais adotivos, em
Londres, logo após seu nascimento, e só depois de 111 anos sua identidade se
tornou pública. Wilhelm Liebknecht, que fazia parte do círculo londrino de
Marx, resumiu esse acontecimento com a frase lapidar: “Se diz, que diante do seu
camareiro ninguém é um grande homem. Diante de Lenchen (Helene), Marx
seguramente não foi”. A presença de Helene, depois do nascimento de Freddy, balançou,
mas não abalou, o companheirismo e o amor entre Karl e Jenny. Em sua
autobiografia, “Contornos de uma vida movimentada”, de 1865, Jenny caracteriza
os anos 1851 e 1852 como “os anos das maiores e, ao mesmo tempo, das mais
mesquinhas preocupações, tormentos, decepções e privações”. Mas, ainda 15 anos
depois do nascimento de Freddy, Karl escreveu a Jenny que estava de visita em
Trier, para ver sua mãe no leito da morte: “Quando você está longe, meu amor
para com você mostra-se como realmente é, como um gigante [...]. O amor [...]
não ao proletariado, mas o amor para com a namorada e particularmente para com
você, faz do homem novamente um homem”. Depois de 1851, a relação de Jenny com
Karl continua respeitosa, amável, não resignada. Seus ideais e seu amor
recíproco eram maiores que seus tropeços humanos. Jenny permaneceu amante da
vida e de seu Karl. Já com as marcas da morte no rosto, ela escreveu ao médico
Fernando Flecklers, em Carlsbad: “Gostaria de viver mais um pouco, meu querido
doutor. É engraçado: quanto mais próximo chegamos ao fim da nossa história, tanto
mais a gente fica amarrada neste `vale das lágrimas´” (29.09.1880). Jenny
esteve ao lado de Karl até o fim, e Karl ficou profundamente abalado com a sua
morte, falecendo um ano e meio depois de Jenny (14.03.1883).
3. Semelhanças e diferenças
biográficas
A lealdade ideológica com seus maridos, o
companheirismo familiar e a luta corajosa pela sobrevivência econômica
aproximam Catarina Lutero e Jenny Marx. Catarina, 16 anos mais jovem que
Lutero, já em condições estáveis, teve seis filhos, Jenny, em condições de
migrante permanente e quatro anos mais idosa que Karl, teve sete filhos. A
morte prematura perpassou as casas de ambas.
Na Igreja reformada, o prestígio de Lutero e a nobreza
protestante regional garantiram certo conforto material à vida familiar cotidiana
de Catarina e Martinho. Esta já não foi a situação de Jenny. A nobreza na mira
do “Capital” de Marx perseguiu o casal desde os primeiros artigos publicados
por Karl em Köln. O casal, que optou pela classe operaria, optou também pela
pobreza e pela existência de migrantes e imigrantes na própria vida. Dos “lúmpen” do Capital e da comunidade
revolucionária Karl e Jenny não esperavam privilégios.
Jenny e Karl se casaram apaixonados e sustentaram essa
paixão como amor maduro até o fim de sua vida. O casamento de Catarina com
Martinho era, no início, um casamento arranjado para Lutero, pois a Reforma entendia
o casamento, não como sacramento, mas como algo que faz parte da criação divina
e da vida humana. Porém, o casamento por motivo de coerência, com o próprio
pensamento de Lutero, se transformou em estima, reconhecimento e amor
incondicional de Martinho e Catarina.
Catarina e Jenny viveram na sombra e nos holofotes de
seus maridos. Catarina correu aos braços do homem famoso que anos antes tinha
publicado as “Teses”. Jenny acompanhou seu marido antes de escrever o “Capital”,
que lhes trouxe austeridade e inimizades. Ambas assumiram e entenderam os
axiomas fundamentais dos seus maridos e eram leais seguidoras, mesmo sendo pelas
restrições legais da época barradas de frequentar universidades e estudos
superiores. Neste ponto, Jenny tinha algumas vantagens, pela casa humanista em
que nasceu e pelos amigos que a família e a causa operária juntaram no decorrer
das suas fugas pelo mundo. De Catarina, praticamente nenhum escrito foi
guardado. De Jenny, dispomos de uma autobiografia e de uma ampla
correspondência. As amizades de Lutero eram mais restritas ao campo religioso.
Suas máximas em torno da fé, da graça e de Jesus só interessavam aos camponeses
e, provavelmente, também à classe operária na medida em que prometiam
emancipação da miséria e da fome, além de alguma forma de protagonismo
político. Esse já não foi o propósito de Lutero, que teve uma opção
interclassista.
Os autores das “Teses” e do “Capital”
não eram bons administradores de suas próprias economias e casas. Martinho e
Karl deixaram esse papel para suas esposas, o que era mais fácil na casa
estável de Lutero com um salário de 100 florins garantidos pela Universidade do
que na itinerância e imprevisibilidade de remunerações por textos publicados ou
de empréstimos de amigos.
Jenny e Catarina nos mostram que, para não reproduzir
os vícios de uma sociedade no interior das grandes causas da humanidade, é
preciso ampliar o território dessas causas defendidas, em nosso caso, por
Lutero e Marx. Também as causas nobres podem tornar-se apriscos, cercas e
muros. Nas reivindicações da fraternidade universal podem-se igualmente
reproduzir hierarquias e uma divisão de classe entre “senhores” e “servidores”.
Como socializar o gênio de uns com o não menos genial cuidado da sobrevivência
do “gênio sacrificial” e serviçal dos outros? De certo modo, de ambos se espera
que estejam dispostos a dar a vida pela causa de uma existência digna e
emancipada que defendem. A vida emancipada não será o resultado final de uma
luta, mas seu acompanhante em cada um de seus passos. A rigor, não é permitido
distinguir entre protagonistas de causas e seus servidores ou servidoras. As
causas realmente emancipadoras exigem a coincidência entre protagonista e
servidor. As Jennies e Caties são as asas dessas causas que não levantam voo
sem elas.
4. A Reforma continua,
a Revolução mal
começou
A Reforma de Lutero não rompeu com o
feudalismo medieval nem com certo autoritarismo patriarcal e fundamentalismo
bíblico. A consciência do indivíduo como última instância da ação, a
reivindicação de direitos subjetivos, a socialização da Bíblia entre letrados e
certo cuidado com a educação dos filhos, sejam meninos ou meninas, já
carregavam elementos da modernidade e da sociedade burguesa. Ao reconciliar-se
com a modernidade, a Igreja católica, hoje, incorporou reivindicações
essenciais da Reforma em seu universo institucional. Em todo caso, a Reforma
continua.
Para o epitáfio
de um memorial imaginário de Catarina e Jenny alguém propôs a seguinte frase:
“Sustentaram com sua vida a gratuidade dos bens celestes e a partilha
igualitária dos bens terrestres”. Entre a obra de Lutero e a de Marx existe uma
afinidade orgânica que se revela na proximidade daqueles seguidores que deram
sua vida pelas vítimas dos poderosos e, ao mesmo tempo, perpassa o pensamento
de ambos uma linha divisória irredutível, porque uns situam o reino do bem
viver exclusivamente na Terra, e os outros apenas seu início, porque consideram
que o reino do bem viver, em sua plenitude, não está ao alcance dos humanos.
Sabem que a luta pelo paraíso terrestre de todos não vai mais longe que um
sonho numa noite de verão ou de um aglomerado de fanáticos.
No epitáfio
acima falta algo essencial. Lutero, o reformador do tratado da graça, não
previu essa graça para todos. Em seus polêmicos pronunciamentos contra judeus e
camponeses mostrou que não abriu mão da penalidade do inferno da igreja nem do
poder punitivo e assassino dos príncipes. No dia 1 de fevereiro de 1546, poucas
semanas antes de sua morte, Lutero escreve de Eisleben à Catarina, sua esposa,
que ele ia cuidar em seus sermões da expulsão dos 50 judeus que ainda sobreviviam
em sua cidade natal e no mês de seu casamento com Catarina von Bora se
posicionou ao lado dos príncipes contra os camponeses revoltados. O
antijudaísmo do reformador, certamente, foi uma herança do seu passado católico
e de sua socialização agostiniana.
Quem exclui as
categorias “Céu” e “Inferno” do seu discurso sobre a realidade social, como
Marx, pode cantar com Heinrich Heine: “O Céu deixamos para os anjos e os
pardais”. Mas ele desqualifica o imaginário e a esperança como fatores atuantes
sobre a realidade e não se livra do monopólio da punição pelo Estado, mesmo de
direito constitucional, que limita o exercício da liberdade e privilegia a
classe dos legisladores. A questão da gratuidade dos bens celestes e da
partilha igualitária dos bens terrestres para com todos permanece uma questão
aberta que nem cadeias, confessionários ou “guerras santas” podem solucionar. Já
promessa de justiça e misericórdia divinas sem limites podem atuar em nossas
realidades históricas conflitivas não como algo mágico, mas como motor e freio.
No campo religioso, grosso modo, os combatentes de
então, hoje abrem mão de suas hostilidades, abraçam seus adversários num
ecumenismo emergencial e assumem com reciprocidade piedosa pontos de vista
essenciais do outro. A fuga dos rebanhos e a opção pelos pobres, secularização
e relativismo, fundamentalismo e integralismo impõem a católicos e evangélicos
históricos a sincronização de suas agendas. As “Teses” perderam seus dentes.
XXII Assembleia Geral do Cimi - Documento Final
“Benditas
as mãos que se abrem para acolher os pobres e socorrê-los: são mãos que levam
esperança”.
Mensagem do
Papa Francisco para o “Primeiro Dia Mundial dos Pobres”, 19 de novembro, de
2017.
Realizou-se, de 24 a 27 de outubro de
2017, no Centro de Formação Vicente Cañas, a XXII Assembleia Geral do Cimi -
Conselho Indigenista Missionário. O tema do evento foi: “O Cimi a serviço dos
Povos Indígenas: teimosia e esperança na afirmação da vida”. Nesta perspectiva,
as lideranças indígenas, os missionários e missionárias, bispos e
representantes de entidades e instituições presentes à Assembleia afirmaram as
razões de sua esperança num Brasil dividido entre ricos, corruptos e pobres
cuja vida nos fala de razões de desespero. No último ano, registrou-se 106
suicídios de jovens indígenas. Os gritos de desespero são gritos que denunciam
a injustiça e a mentira, que exigem que a terra seja desligada do seu valor de
mercado e que sejam reconhecidos seu valor de uso e seu valor místico para os
povos indígenas.
Vivemos num contexto de exploração
econômica em que o capital, para continuar o processo de colonização, alienação
e aumento de sua margem de lucro, precisa impor, como regras, a
desregulamentação de direitos fundamentais, a criminalização das lutas e dos
lutadores, a invasão e ocupação das terras indígenas por empreendimentos
econômicos devastadores da natureza, o rebaixamento dos salários, a
precarização do trabalho, a terceirização dos empregos e a aceleração da
produção, com a substituição dos operários pelas máquinas.
Sabemos que, se em nossa sociedade não
há esperança para os povos indígenas nem para as classes desfavorecidas,
tampouco haverá esperança para as elites! O nosso lugar, neste contexto, é o de
estar ao lado dos povos indígenas e no meio deles. Ao defender nossa opção
preferencial pelos povos indígenas, defendemos igualmente o Bem Viver e a
“sobriedade feliz” (LS 224) de todos. E numa sociedade cuja lógica é a
sobriedade feliz não haverá lugar para privilégios nem privilegiados. Num
momento em que a democracia em nosso país mostra toda a sua fragilidade por
causa da corrupção e do clientelismo, nós somos decididos defensores de uma
democracia purificada por uma ética de solidariedade. “Dado que o direito por
vezes se mostra insuficiente devido à corrupção”, - nos diz o Papa Francisco –
“requer-se uma decisão política sob pressão da população. [...] Se os cidadãos
não controlam o poder político [...] também não é possível combater os danos
ambientais” (LS 179).
Para o Cimi, a reconstrução ética do
nosso país exige a construção de alianças entre todos que se dispõem a dar voz
ao sofrimento dos povos indígenas e dos pobres e a lutar pela afirmação da vida
humana e da vida do planeta terra. A natureza é uma aliada fiel dos povos
indígenas, pois eles se encontram “entre os pobres mais abandonados e
maltratados” (LS 2). A Assembleia do Cimi recebeu com entusiasmo a proclamação
do Sínodo Pan-Amazônico pelo Papa Francisco, porque sabe que esse Sínodo vai
dar uma ressonância mundial à voz dos povos indígenas, suas condições de vida e
suas propostas alternativas para salvar o planeta Terra.
Entre os muitos desafios atuais,
precisamos dar importância às diferentes formas de luta e resistência dos povos
indígenas pela garantia de seus direitos e no enfrentamento das injustiças e
violências. Eles nos ensinam que as lutas políticas, jurídicas e sociais não
estão deslocadas de suas cosmovisões e de suas espiritualidades, mas se somam e
fortalecem as relações místicas que norteiam a vida.
A XXII Assembleia Geral do Cimi, no seu
comprometimento com a causa indígena, definiu para o período de dois anos as
seguintes prioridades: terra e território como fundamento da vida; povos em
contexto urbano, destacando o processo formativo junto à juventude;
espiritualidade indígena como pano de fundo de suas lutas e fortalecimento de
outras dimensões; e economias indígenas e bem viver.
A denúncia do sofrimento dos povos
indígenas é anúncio da Boa-Nova do Evangelho. A vida e o futuro dos povos
indígenas dependem da desconstrução do sistema que atenta contra a sua
existência. A nossa esperança está na construção de uma nova sociedade na qual
convivem culturalmente diferentes e socialmente iguais. A existência dos 45
anos do Cimi já representa uma antecipação dessa sociedade alternativa no sonho
e na utopia. Não nos deixemos oprimir pela falácia do “fim da utopia”, o que
significaria jogar os nossos mártires ao lixo de uma história sem memória.
Seguiremos “a serviço dos Povos
Indígenas: com teimosia e esperança”, na afirmação da vida, sempre. Aos povos
indígenas, missionários e missionárias de nossos regionais e aos nossos
aliados, digamos com o Papa Francisco: “não deixem que nos roubem a esperança”
(EG 86).
Centro
de Formação Vicente Cañas, Luziânia, GO,
27
de outubro de 2017. - XXII Assembleia Geral do Cimi
O batismo de Nossa Senhora da Imaculada Conceição no Rio Paraíba e como ela se tornou “nossa” em Aparecida
Paulo Suess
Da Imaculada Conceição à Conceição Aparecida
Há 300 anos, três pescadores desceram o
rio Paraíba do Sul à procura de peixes. Sem sucesso. Chegando ao Porto
Itaguaçu, lançaram outra vez sua rede e, em vez de peixes, apanharam o corpo de
uma imagem de barro cozido e, num segundo lance de sua rede, apareceu a cabeça
dessa mesma imagem, logo reconhecida como uma imagem despedaçada de Nossa
Senhora da Imaculada Conceição. A história conta que depois dessa pesca
surpreendente, os pescadores apanharam peixes em abundância.
A
transfiguração de “Nossa Senhora da Imaculada Conceição” em “Nossa Senhora
Aparecida”, ou abreviado, da “Imaculada” portuguesa em “Aparecida” brasileira,
às vezes, amorosamente, invocada como “Cida” ou “Cidinha”, pode ser considerado
o primeiro milagre de uma santa cuja ancestral branca acompanhou os
conquistadores no porão de suas naus. No litoral paulista, Martim Afonso de
Souza (1500-1571) dedicou a ela a primeira igrejinha no Brasil. Hoje, em todo o
território nacional, são mais de 530 paróquias dedicadas a Imaculada Conceição
e mais de 340 a Nossa Senhora Aparecida.
Após a permanência de alguns anos no
leito do rio como numa pia batismal, emergiram na rede dos pescadores dois
pedaços de barro de uma imagem despida, com seu orgulho de plenitude branca
quebrado, sem indumentária, escurecida, realmente “nossa”, Senhora por
respeito, não pelo sangue. Azul é apenas seu manto, posteriormente
confeccionado para cobrir sua nudez e negritude. Depois do batismo no rio
Paraíba e uma longa permanência na casa dos pobres, a imagem é enfeitada com
adornos, cordões de ouro e homenagens que têm valor simbólico, não real. Não
foram encomendados pela visitada, mas agradam os visitantes. E não é para
menos. O povo sempre dá o melhor para seus hóspedes.
A passagem da Imaculada por
esse rio indica sua missão como Aparecida. É uma missão que significa despojamento,
presença, visitação silenciosa. Realmente, o primeiro milagre da Aparecida é o
processo da inculturação pelo qual a Imaculada se tornou a Cidinha missionária,
visitada e visitadora de muitos que estão atormentados pelos achaques da vida. Por
quinze anos, a vizinhança se reuniu na casa de seus pescadores e num pequeno
anexo, uma espécie de oratório, que foi logo construído, para receber cada vez
mais devotos. Ao longo desses anos, Aparecida se inculturou na vida dessa
gente. Nas rezas do terço, o povo pediu a proteção da Santa e agradeceu sua
proteção.
No rio Paraíba não aconteceu
propriamente uma aparição milagrosa de Nossa Senhora. A Aparecida é uma santa
silenciosa. Apareceu no silêncio das águas e atuou no silêncio das casas, sem
dizer uma só palavra, sem fazer promessas nem profecia, sem dar ordens ou
indicar um lugar para construir um templo.
Em Lourdes, sim, aconteceram,
segundo Bernadete Soubirous, dezoito aparições de uma “senhora branca”. E essa
“senhora” falava, deu recados, pediu orações e se identificou na 16ª aparição,
no dia 25 de março de 1858, festa da Anunciação do Senhor, com as palavras: “Eu
sou a Imaculada Conceição”, eliminando as dúvidas que possam ainda ter pairado sobre
a proclamação do dogma por Pio IX, quatro anos antes.
Apesar do silêncio e de
milagres discretos, a devoção da Nossa Senhora Aparecida cresceu e se espalhou pela
região. Para receber cada vez mais peregrinos, foi necessário construir espaços
maiores, simbólicos e reais. Em 1904, a imagem de Nossa Senhora da Conceição
Aparecida foi solenemente coroada e, em 1929, foi proclamada padroeira oficial
do Brasil. Já em 1980, a Basílica Nova foi consagrada pelo Papa João Paulo, e o
evento do rio Paraíba tornou-se feriado nacional, litúrgica e politicamente reverenciado
a cada dia 12 de outubro. Em 1984, a CNBB declarou a Basílica, oficialmente,
Santuário Nacional e o dia 12 de outubro de 2016 marcou a abertura do Ano
Jubilar em comemoração aos 300 anos da aparição de Aparecida.
A integração nacional e
oficial de um evento milagroso, originalmente destinado aos pobres e apropriado
pelos socialmente humilhados como elemento de resistência e luta pela sua dignidade,
não é sem risco e aconteceu também em outros países. As manipulações das elites
políticas e culturais passam sempre por aquilo que o povo considera sagrado. Há
anos concelebrei com companheiros da Teologia Índia uma Missa na Basílica de N.
Sra. de Guadalupe, santuário nacional do México, com não indígenas sentados nos
bancos e com praticamente todos os índios presentes sentados no chão, no fundo
da Igreja, ou encostados na parede. As elites, donas da palavra e do poder, procuram
fazer os pobres reconhecerem, voluntariamente, “seu” lugar nas repartições
públicas, na sociedade e na Igreja. Nas festas religiosas buscam proximidade
com as “autoridades” religiosas populares que lhes dão legitimidade e sacralizam
seu poder. Mas os milagres acontecem “no fundo da Igreja” e nas periferias,
onde nasce a esperança.
Hoje, doentes abastados e
pobres, com suas dores desiguais, procuram a Santa. Vêm para “pagar” promessas atendidas
e para encomendar graças urgentes. Cidinha e Rainha, com humildade e majestade,
Nossa Senhora Aparecida pode puxar a cada uma e a cada um para cima e para fora
de sua miséria, pode garantir o essencial a cada dia e, na falta desse
essencial e apesar dessa falta, transmitir o sentimento de não abandonar os
devotos dos quais é mãe. Ela também experimentou a precariedade da vida. Na
passagem pela água do rio e pela casa dos pobres, a Virgem Imaculada integrou
no imaginário dos fiéis traços robustos da Mãe Terra, simbolizada não somente
pela cor, mas também pelo adorno da Lua aos seus pés, que a faz “espelho de
justiça”, porque reflete a luz de Cristo. “Maria ajuda a manter vivas as
atitudes de atenção, de serviço, de entrega e de gratuidade”, indicando assim
“qual é a pedagogia para que os pobres, em cada comunidade cristã, `sintam-se
como em casa´” (DAp 272). Maria como “auxílio dos cristãos” e “continuadora da
missão” não significa um intervencionismo na obra da evangelização, mas uma
presença operante do imaginário mariano na memória e na história do
cristianismo.
A
Aparecida e outras Madonas Negras
Na liberdade e diversidade da
assunção dos mistérios da fé, que se manifestam em torno das devoções marianas,
nos confrontamos com um dado intrigante: Nossa Senhora Aparecida, cuja negritude
foi interpretada como apoio à causa dos escravos e resgate de sua dignidade, é
apenas uma entre muitas Madonas Negras ao redor do mundo, portanto, independentemente
de contextos de escravidão, de geografia, história, cultura e situação social
dos respectivos povos ou grupos humanos. Só para dar alguns exemplos, encontramos
madonas negras ou morenas na Colômbia (“Virgem da Candelária”) e em Cuba
(“Virgem da Caridade do Cobre”), na Espanha (“Virgem de Montserrat”) e em
Portugal (“Nossa Senhora de Nazaré”), na Suíça (Maria Einsiedeln) e na França (Chartres),
na Bolívia (“Virgem de Copacabana”) e no México (“Nossa Senhora de Guadalupe”).
Até hoje não se conseguiu construir um denominador comum para explicar essa
negritude. Também a identificação da Aparecida com a “mãe negra”, símbolo da
ama de leite negra, cujo monumento se encontra no Largo do Paissandu, em São
Paulo, não procede. Pela proximidade com a Virgem Imaculada, a iconografia
mostra a Aparecida sempre sem criança, como de fato foi encontrada no rio
Paraíba. Em alguns casos, arqueólogos e antropólogos afirmam com certa
segurança que as Madonas Negras estão diretamente ligadas a antigas deusas
pagãs: Ísis, Cibele, Ártemis, Perséfone, Débora, Diana e tantas outras.
A afirmação que as Madonas
Negras serem representantes simbólicas de deusas lunares arquetípicas em lugares
(fontes, covas, montanhas) que radiam forças curativas explica parcialmente a
sua existência através de séculos e milênios. Em todo caso, a Aparecida, pela
sua origem histórica e teológica, é, ao mesmo tempo, Nossa Senhora Imaculada,
branca e celeste, e Nossa Senhora Aparecida, negra e terrestre. Ela é também,
segundo a Ladainha Lauretana, “rainha elevada ao céu” e “consoladora dos
aflitos” na terra. A Aparecida nos lembra do nosso “compromisso com a
realidade” (DAp 491) e nos “ajuda a manter vivas as atitudes de atenção, de
serviço, de entrega e de gratuidade”, indicando assim “qual é a pedagogia para
que os pobres, em cada comunidade cristã, `sintam-se como em casa´” (DAp 272).
As perguntas abertas sobre a
origem e o significado das Madonas Negras não anulam explicações com os quais
até hoje somos familiarizados, mas procuram ampliar esses significados e apontar
para suas raízes profundas e horizontes diferentes. Até agora, nem a
hermenêutica afirmativa de movimentos negros nem a hermenêutica de suspeita da
psicologia profunda alcançaram ou ultrapassaram a linha do realismo fantástico,
como está presente nas narrativas em torno da Madona Negra de Loreto, Padroeira
dos Aviadores.
Itinerário
aberto
A devoção da Nossa Senhora da
Conceição Aparecida nasceu da metamorfose da devoção primordial a Nossa Senhora
da Imaculada Conceição. Devotos de São Francisco trouxeram a imagem de uma
virgem branca, considerada “cheia de graça” e “concebida sem pecado original”, em
uma das naus de Pedro Álvares Cabral de Portugal ao Brasil. Mas ficou reservado
a Martim Afonso de Souza, cuja esquadra partiu, em 1530, com cinco embarcações
e 400 colonos e tripulantes para colonizar o Brasil, dedicar a primeira
igrejinha, em Itanhaém, no litoral paulista, a Nossa Senhora da Conceição. A
partir da segunda metade do século XVII, seu culto, festejado no dia 8 de
dezembro, tinha-se tornado oficial em todo o território lusitano e suas
colônias.
Se no evento de Aparecida não ocorreu propriamente uma aparição de Nossa Senhora nem uma mensagem aos pescadores nem um milagre convencional - quais são o mistério e a mensagem de Aparecida que atraem multidões de peregrinos? O mistério da Aparecida está no encontro que permite assumir o sofrimento numa atitude histórica e sobrenatural. Nossa Senhora da Conceição Aparecida se deixou encontrar nas águas de um rio e, por conseguinte, poderia ser chamada de "Nossa Senhora do Encontro". No silêncio das águas do rio, ela ouve o clamor do povo, se faz cativa dos pobres e assume a cor da pele escura do povo. Ela é advogada nossa sem toga e ajusta as contas quando as instâncias humanas de justiça demoram e as da sorte falham.
Pobres e ricos peregrinam anualmente em caravanas para Aparecida agradecendo graças recebidas que interromperam o sofrimento do desemprego e a monotonia de trabalhos pesados na lavoura ou na fábrica. A Aparecida é negra, pequena, silenciosa e, ao mesmo tempo, poderosa. Seu poder místico pode ser transformado em esperança histórica e ação política. Sua imagem é uma promessa e uma ordem: é possível esmagar a cabeça da serpente [veja o texto integral em: Convergência, out. 2017, p. 22-36].
Reconciliação na base de justiça, verdade e misericórdia
15
de Setembro de 2017: O Cristo Mutilado e a Contextualização da Festa de Nossa Senhora das Dores
Um dos momentos mais
emocionantes da viagem do Papa Francisco pela Colômbia foi o encontro com
quatro testemunhas, agentes e vítimas da violência. Eles contam como aprenderam
perdoar e pedir perdão pelo imperdoável. As dores causadas pela violência têm
raízes e causas. No final do encontro, durante a celebração da reconciliação,
uma das testemunhas-vítimas, “com sua alma atravessada por uma lança” (Lc
2,33), porque perdeu seu filho e sua filha nessa guerra, coloca um sacramental
aos pés do altar: a camiseta do filho. Silêncio. Lágrimas no rosto de
Francisco.
Quinta-feira,
2 de Maio de 2002
Depois de dias de tensão, acontece
o confronto entre as Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e um grupo de 250 paramilitares
das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC). Uns 200 moradores, de origem negra e indígena, da comunidade de Bojayá, no
departamento do Chocó, se refugiaram na igreja. Dois artefatos, lançados pela
guerrilha, atingiram a igreja. 79 mortos, o Cristo da igreja caiu por terra, mutilado,
sem braços, sem pés.
Sexta-feira, 8 de Setembro de 2017
Moradores de Bojayá chegaram em
Villavicencio pedindo ao Papa Francisco que benzesse seu “Cristo Mutilado”. Participaram,
no Parque das Malocas de Villavicencio, do “Grande Encontro de Oração pela
Reconciliação”, e falaram do longo caminho para reconstruir a paz. O papa
escutou os testemunhos de quatro vítimas da guerra civil da Colômbia.
Depois de escutar o testemunho
de Juan Carlos, o papa disse: “A verdade é uma companheira inseparável da
justiça e da misericórdia”. Em 2 de Outubro de 2016, 95% da comunidade de
Bojayá votou com SIM pelos acordos de paz entre Farc e governo colombiano. [Fotos:
O Cristo Mutilado no chão; O olhar de Nossa Senhora sobre a Igreja destruída; a “Pastora” com a camiseta de seu filho; moradores
do Choco com uma réplica do Cristo Mutilado].
Fundamenetalismo evangélico e integralismo católico: um "Ecumenismo do ódio"
de Antonio Spadaro SJ, Marcelo Figueroa
"O fenômeno de ecumenismos
opostos, com percepções contrapostas da fé e visões de mundo em que as
religiões desempenham papéis irreconciliáveis talvez seja o aspecto mais
desconhecido e, ao mesmo tempo, mais dramático da difusão do fundamentalismo integralista.
É nesse nível que se compreende o significado histórico do empenho do pontífice
contra os ‘muros’ e contra toda forma de ‘guerra religiosa’.”
A opinião é do jesuíta italiano
Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, e do pastor
presbiteriano argentino Marcelo Figueroa, diretor da edição argentina do jornal
L’Osservatore Romano.
Segundo Spadaro e Figueroa,
"tanto os evangélicos quanto os católicos integralistas condenam o
ecumenismo tradicional e, por outro lado, promovem um ecumenismo do conflito
que os une no sonho nostálgico de um Estado de traços teocráticos".
O artigo foi publicado na revista
La Civiltà Cattolica, edição 4.010, julho de 2017. A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
Eis o texto.
In God We Trust: esta é a frase
impressa nas notas dos Estados Unidos da América, que é também o atual lema
nacional. Ele apareceu pela primeira vez em uma moeda em 1864, mas não se
tornou oficial até a aprovação de uma resolução conjunta do Congresso em 1956.
Ela significa: “Em Deus nós confiamos”. E é um lema importante para uma nação
que, na raiz da sua fundação, também tem motivações de caráter religioso. Para
muitos, trata-se de uma simples declaração de fé, para outros é a síntese de
uma problemática fusão entre religião e Estado, entre fé e política, entre
valores religiosos e economia.
Religião, maniqueísmo político e
culto do apocalipse
Especialmente em alguns governos
dos Estados Unidos das últimas décadas, notou-se o papel cada vez mais incisivo
da religião nos processos eleitorais e nas decisões de governo: um papel também
de ordem moral na identificação do que é bom e do que é mau.
Às vezes, essa interpenetração
entre política, moral e religião assumiu uma linguagem maniqueísta que
subdivide a realidade entre o Bem absoluto e o Mal absoluto. De fato, depois
que Bush, no seu tempo, falou de um “eixo do mal” a ser enfrentado e fez
referência à responsabilidade de “libertar o mundo do mal” após os eventos do
11 de setembro de 2001, hoje, o presidente Trump dirige a sua luta contra uma
entidade coletiva genericamente ampla, a dos “maus” (bad) ou até “muito maus”
(very bad). Às vezes, os tons usados em algumas campanhas pelos seus
partidários assumem conotações que poderíamos definir como “épicas”.
Essas atitudes se baseiam nos princípios
fundamentalistas cristão-evangélicos do início do século passado, que
gradualmente se radicalizaram. De fato, passou-se de uma rejeição de tudo o que
é “mundano”, como a política era considerado, à busca de uma influência forte e
determinada daquela moral religiosa sobre os processos democráticos e sobre os
seus resultados.
O termo “fundamentalismo
evangélico”, que hoje pode se assemelhar a “direita evangélica” ou
“teoconservadorismo”, tem as suas origens nos anos 1910-1915. Naquela época, um
milionário do sul da Califórnia, Lyman Stewart, publicou 12 volumes intitulados
“Os fundamentais” (Fundamentals). O autor tentava responder à “ameaça” das
ideias modernistas da época, resumindo o pensamento dos autores dos quais ele
apreciava o apoio doutrinal. Desse modo, ele exemplificava a fé evangélica
quanto aos aspectos morais, sociais, coletivos e individuais. Vários expoentes
políticos e também dois presidentes recentes, como Ronald Reagan e George W.
Bush, foram seus admiradores.
O pensamento das coletividades
sociais religiosas inspiradas em autores como Stewart considera os Estados
Unidos como uma nação abençoada por Deus e não hesita em basear o crescimento
econômico do país na adesão literal à Bíblia. Ao longo dos anos mais recentes,
ele também se alimentou da estigmatização de inimigos que são, por assim dizer,
“demonizados”.
No universo que ameaça o seu modo
de entender o American way of life, alternaram-se ao longo do tempo os
espíritos modernistas, os direitos dos escravos negros, os movimentos hippies,
o comunismo, os movimentos feministas e assim por diante, até chegar, hoje, aos
migrantes e aos muçulmanos. Para sustentar o nível do conflito, as suas
exegeses bíblicas sempre se empurraram cada vez mais para leituras
descontextualizadas dos textos vetero-testamentários sobre a conquista e sobre
a defesa da “terra prometida”, em vez de serem guiados pelo olhar incisivo e
cheio de amor do Jesus dos Evangelhos.
Dentro dessa narrativa, o que
impulsiona ao conflito não é banido. Não se considera o vínculo existente entre
capital e lucros e a venda de armas. Ao contrário: muitas vezes a própria
guerra é assimilada às heroicas ações de conquista do “Deus dos exércitos” de
Gideão e de Davi. Nessa visão maniqueísta, as armas, portanto, podem assumir
uma justificação de caráter teológico, e não faltam ainda hoje pastores que
buscam, por isso, um fundamento bíblico, usando trechos da Sagrada Escritura
como pretextos fora de contexto.
Outro aspecto interessante é a
relação que essa coletividade religiosa, composta principalmente por brancos de
extração popular do profundo Sul estadunidense, tem com a “criação”. Há como
que uma espécie de “anestesia” em relação aos desastres ecológicos e aos
problemas gerados pelas mudanças climáticas. O “dominionismo” que professam –
que considera os ecologistas como pessoas contrárias à fé cristã – afunda as
suas raízes em uma compreensão literal dos relatos da criação do livro do
Gênesis, que coloca o ser humano em uma situação de “domínio” sobre a criação,
enquanto esta última permanece submetida ao seu arbítrio em bíblica “sujeição”.
Nessa visão teológica, os
desastres naturais, as dramáticas mudanças climáticas e a crise ecológica
global não só não são percebidos como um alarme que deveria induzi-los a rever
os seus dogmas, mas, ao contrário, são sinais que confirmam a sua concepção não
alegórica das figuras finais do livro do Apocalipse e a sua esperança em “novos
céus e nova terra”.
Trata-se de uma fórmula
profética: combater as ameaças aos valores cristãos estadunidenses e esperar a
iminente justiça de um Armagedom, uma prestação de contas final entre o Bem e o
Mal, entre Deus e Satanás. Nesse sentido, todo “processo” (de paz, de diálogo
etc.) desmorona diante da iminência do fim, da batalha final contra o inimigo.
E a comunidade dos fiéis, da fé (faith), torna-se a comunidade dos combatentes,
da batalha (fight).
Tal leitura unidirecional dos
textos bíblicos pode levar a anestesiar as consciências ou a apoiar ativamente
as situações mais atrozes e dramáticas que o mundo vive fora das fronteiras da
própria “terra prometida”.
O pastor Rousas John Rushdoony
(1916-2001) é o pai do chamado “reconstrucionismo cristão” (ou “teologia
dominionista”), que teve grande impacto na visão teopolitica do fundamentalismo
cristão. Ela é a doutrina que alimenta organizações e redes políticas como o
Council for National Policy e o pensamento dos seus expoentes, como Steve
Bannon, atual chief strategist da Casa Branca e defensor de uma geopolítica
apocalíptica [1].
“A primeira coisa que devemos
fazer é dar voz às nossas Igrejas”, dizem alguns. O real significado desse tipo
de expressões é que se espera a possibilidade de influenciar na esfera
política, parlamentar, jurídica e educacional, para submeter as normas públicas
à moral religiosa.
A doutrina de Rushdoony, de fato,
defende a necessidade teocrática de submeter o Estado à Bíblia, com uma lógica
nada diferente daquela que inspira o fundamentalismo islâmico. No fundo, a
narrativa do terror que alimenta o imaginários dos jihadistas e dos neocruzados
bebe de fontes não muito distantes entre si. Não devemos esquecer que a
teopolitica propagandeada pelo ISIS se fundamenta no mesmo culto de um
apocalipse a ser apressado o mais rápido possível. E, portanto, não é por acaso
que George W. Bush foi reconhecido como um “grande cruzado” precisamente por
Osama bin Laden.
Teologia da prosperidade e
retórica da liberdade religiosa
Outro fenômeno relevante, ao lado
do maniqueísmo político, é a passagem do original pietismo puritano, baseado em
“A ética protestante e o espírito do capitalismo”, de Max Weber, à “teologia da
prosperidade”, propugnada principalmente por pastores milionários e midiáticos,
e por organizações missionárias com uma forte influência religiosa, social e
política. Eles anunciam um “evangelho da prosperidade”, para o qual Deus quer
que os fiéis estejam fisicamente saudáveis, materialmente ricos e pessoalmente
felizes.
É fácil notar como algumas mensagens
das campanhas eleitorais e as suas semióticas abundam em referências ao
fundamentalismo evangélico. Acontece, por exemplo, de ver imagens em que
líderes políticos aparecem triunfantes com uma Bíblia nas mãos.
Uma figura relevante, que
inspirou presidentes como Richard Nixon, Ronald Reagan e Donald Trump, é o
pastor Norman Vincent Peale (1898-1993), que oficiou o primeiro casamento do
atual presidente e o funeral dos seus pais. Ele foi um pregador de sucesso:
vendeu milhões de cópias do seu livro “O poder do pensamento positivo” (1952),
repleto de frases como: “Se você acreditar em algo, você irá obtê-la”, “Se você
repetir ‘Deus está comigo, quem está contra mim?’ nada vai pará-lo”, “Imprima
em sua mente a sua imagem de sucesso, e o sucesso chegará”, e assim por diante.
Muitos televangelistas da prosperidade misturam marketing, direção estratégica
e pregação, concentrando-se mais no sucesso pessoal do que na salvação ou na
vida eterna.
Um terceiro elemento, ao lado do
maniqueísmo e do evangelho da prosperidade, é uma forma particular de
proclamação da defesa da “liberdade religiosa”. A erosão da liberdade religiosa
é claramente uma grave ameaça dentro de um secularismo galopante. No entanto, é
preciso evitar que a sua defesa ocorra ao ritmo dos fundamentalistas da
“religião em liberdade”, percebida como um desafio virtual direto à laicidade
do Estado.
O ecumenismo fundamentalista
Aproveitando-se dos valores do
fundamentalismo, está se desenvolvendo uma estranha forma de surpreendente
ecumenismo entre fundamentalistas evangélicos e católicos integralistas, unidos
pela mesma vontade de uma influência religiosa direta sobre a dimensão
política.
Alguns que se professam católicos
se expressam, às vezes, em formas até pouco tempo atrás desconhecidas para a sua
tradição e muito mais próximas dos tons evangélicos. Em termos de atração de
massa eleitoral, esses eleitores são definidos como value voters. O universo de
convergência ecumênica entre setores que, paradoxalmente, são concorrentes em
termos de pertença confessional é bem definido. Esse encontro por objetivos
comuns ocorre no campo de temas como o aborto, o casamento entre pessoas do
mesmo sexo, o ensino religioso nas escolas e outras questões consideradas
genericamente como morais ou ligadas aos valores.
Tanto os evangélicos quanto os
católicos integralistas condenam o ecumenismo tradicional e, por outro lado,
promovem um ecumenismo do conflito que os une no sonho nostálgico de um Estado
de traços teocráticos.
A perspectiva mais perigosa desse
estranho ecumenismo está relacionada à sua visão xenófoba e islamofóbica, que
invoca muros e deportações purificadores. A palavra “ecumenismo”, assim,
traduz-se em um paradoxo, em um “ecumenismo do ódio”. A intolerância é marca
celestial de purismo, o reducionismo é metodologia exegética, e o
ultraliteralismo é a chave hermenêutica.
É clara a enorme diferença que
existe entre esses conceitos e o ecumenismo encorajado pelo Papa Francisco com
diversas referências cristãs e de outras confissões religiosas, que se move na
linha da inclusão, da paz, do encontro e das pontes. Esse fenômeno de
ecumenismos opostos, com percepções contrapostas da fé e visões de mundo em que
as religiões desempenham papéis irreconciliáveis talvez seja o aspecto mais
desconhecido e, ao mesmo tempo, mais dramático da difusão do fundamentalismo
integralista. É nesse nível que se compreende o significado histórico do
empenho do pontífice contra os “muros” e contra toda forma de “guerra
religiosa”.
A tentação da “guerra espiritual”
O elemento religioso, em vez
disso, nunca deve ser confundido com o político. Confundir poder espiritual e
poder temporal significa sujeitar um ao outro. Um traço claro da geopolítica do
Papa Francisco consiste em não dar margens teológicas ao poder para se impor ou
para encontrar um inimigo interno ou externo a ser combatido.
É preciso fugir da tentação
transversal e “ecumênica” de projetar a divindade sobre o poder político que se
reveste dela para seus próprios fins. Francisco esvazia, a partir de dentro, a
máquina narrativa dos milenarismos sectários e do “dominionismo”, que prepara
para o apocalipse e para o “confronto final” [2]. A ênfase da misericórdia como
atributo fundamental de Deus expressa essa exigência radicalmente cristã.
Francisco pretende despedaçar o
laço orgânico entre cultura, política, instituições e Igreja. A espiritualidade
não pode se ligar a governos ou a pactos militares, porque ela está a serviço
de todos os seres humanos. As religiões não podem considerar alguns como
inimigos jurados, nem outros como amigos eternos. A religião não deve se tornar
a garantia das classes dominantes. Porém, é precisamente essa dinâmica de
espúrio sabor teológico que tenta impor a própria lei e a própria lógica no
campo político.
Chama a atenção uma certa retórica
usada, por exemplo, pelos comentaristas do Church Militant, uma plataforma
digital estadunidense de sucesso, abertamente inclinada em favor de um
ultraconservadorismo político, que usa os símbolos cristãos para se impor. Essa
instrumentalização é definida como “autêntico cristianismo”. Ela, para
expressar as próprias preferências, criou uma precisa analogia entre Donald
Trump e Constantino, por um lado, e entre Hillary Clinton e Diocleciano, por
outro. As eleições estadunidenses, nessa ótica, foram entendidas como uma
“guerra espiritual” [3].
Essa abordagem bélica e
“militante” parece ser decisivamente fascinante e evocativa para um certo
público, especialmente pelo fato de que a vitória de Constantino – dada como
impossível contra Maxêncio, que tinha às suas costas todo o establishment
romano – devia ser atribuída a uma intervenção divina: in hoc signo vinces.
O Church Militant se pergunta,
portanto, se a vitória de Trump pode ser atribuída às orações dos
estadunidenses. A resposta sugerida é positiva. A missão indireta para o
presidente Trump, novo Constantino, é clara: ele deve agir em conformidade. Uma
mensagem muito direta, portanto, que quer condicionar a presidência,
conotando-a com os traços de uma eleição “divina”. In hoc signo vinces, justamente.
Hoje, mais do que nunca, é
necessário se despojar o poder das suas vestes confessionais suntuosas, das
suas couraças, das suas armaduras enferrujadas. O esquema teopolítico
fundamentalista quer instaurar o reino de uma divindade aqui e agora. E a divindade,
obviamente, é a projeção ideal do poder constituído. Essa visão gera a
ideologia de conquista.
O esquema teopolítico
verdadeiramente cristão, ao contrário, é escatológico, isto é, olha para o
futuro e pretende orientar a história presente para o Reino de Deus, reino de
justiça e de paz. Essa visão gera o processo de integração que se desdobra com
uma diplomacia que não coroa ninguém como “homem da Providência”.
E é também por isso que a
diplomacia da Santa Sé quer estabelecer relações diretas, fluidas com as
superpotências, mas sem entrar em redes de alianças e de influências
pré-constituídas. Nesse quadro, o papa não quer nem dar nem tirar razão, porque
ele sabe que, na raiz dos conflitos, sempre há uma luta de poder. Por isso, não
se deve imaginar uma “inclinação” por razões morais ou, pior ainda,
espirituais.
Francisco rejeita radicalmente a
ideia da implantação do Reino de Deus sobre a terra, que tinha estado na base
do Sacro Império Romano e de todas as formas políticas e institucionais
similares, até a dimensão do “partido”. Se assim fosse entendido, de fato, o
“povo eleito” entraria em uma complicada trama de dimensões religiosas e
políticas que o fariam perder a consciência do seu estar a serviço do mundo e o
contraporia a quem está longe dele, a quem não pertence a ele, isto é, ao
“inimigo”.
Eis, então, que as raízes cristãs
dos povos nunca devem ser entendidas de maneira etnicista. As noções de
“raízes” e de “identidade” não têm o mesmo conteúdo para o católico e para o
identitário neopagão. O etnicismo triunfalista, arrogante e vingativo, em vez
disso, é o contrário do cristianismo.
O papa, no dia 9 de maio, em uma
entrevista ao jornal francês La Croix, disse: “A Europa, sim, tem raízes
cristãs. O cristianismo tem o dever de regá-las, mas em um espírito de serviço,
como para o lava-pés. O dever do cristianismo para a Europa é o serviço”. E
ainda: “A contribuição do cristianismo a uma cultura é a de Cristo com o
lava-pés, ou seja, o serviço e o dom da vida. Não deve ser uma contribuição
colonialista”.
Contra o medo
Sobre qual sentimento se apoia a
tentação sedutora de uma aliança espúria entre política e fundamentalismo
religioso? Sobre o medo da fratura da ordem constituída e sobre o temor do
caos. Ou, melhor, ela funciona justamente graças ao caos percebido. A
estratégia política para o sucesso torna-se a de elevar os tons da
conflitualidade, exagerar a desordem, agitar os ânimos do povo com a projeção
de cenários inquietantes para além de todo realismo.
A religião, nesse ponto, se
tornaria garantia da ordem, e uma parte política encarnaria as suas exigências.
O apelo ao apocalipse justifica o poder desejado por um deus ou conivente com
um deus. E o fundamentalismo, assim, se revela não como o produto da
experiência religiosa, mas como uma concepção pobre e instrumental dela.
Por isso, Francisco está
desenvolvendo uma sistemática contranarrativa em relação à narrativa do medo.
Portanto, é preciso combater a manipulação dessa temporada de ansiedade e de
insegurança. No entanto, para isso, corajosamente, Francisco não dá nenhuma
legitimação teológico-política aos terroristas, evitando toda redução do Islã
ao terrorismo islâmico. E não a dá nem mesmo àqueles que postulam e que querem
uma “guerra santa” ou que constroem cercas de arame farpado. O único arame
farpado para o cristão, de fato, é o da coroa de espinhos que Cristo tem na
cabeça [4].
Notas
1.
Bannon crê na visão apocalíptica que William Strauss e Neil Howe teorizaram no
seu livro The Fourth Turning: What Cycles of History Tell Us About America’s
Next Rendezvous with Destiny. Cf. também N. Howe, “Where did Steve Bannon get his
worldview? From my book”, in The Washington Post, 24 de fevereiro de 2017.
2. Cf. A. Aresu, “Pope Francis against the
Apocalypse”, in Macrogeo, 9 de junho de 2017.
3. Cf. “Donald ‘Constantine’ Trump? Could Heaven
be intervening directly in the election?”, in Church Militant.
4.
Para aprofundar essas reflexões, cf. D. J. Fares, “L’antropologia politica di
Papa Francesco”, in Civ. Catt. 2014, I, p. 345-360; A. Spadaro, “La diplomazia
di Francesco. La misericordia come processo politico”, ibid., 2016, I, p.
209-226; D. J. Fares, “Papa Francesco e la politica», ibid., 2016, I, p.
373-385; J. L. Narvaja, “La crisi di ogni politica cristiana. Erich Przywara e
l’‘idea di Europa’”, ibid., 2016, I, p. 437-448; Id., “Il significato della
politica internazionale di Francesco”, ibid., 2017, III, p. 8-15.
[Fonte:
Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
17.07.2017]
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