Paulo Suess
Da Imaculada Conceição à Conceição Aparecida
Há 300 anos, três pescadores desceram o
rio Paraíba do Sul à procura de peixes. Sem sucesso. Chegando ao Porto
Itaguaçu, lançaram outra vez sua rede e, em vez de peixes, apanharam o corpo de
uma imagem de barro cozido e, num segundo lance de sua rede, apareceu a cabeça
dessa mesma imagem, logo reconhecida como uma imagem despedaçada de Nossa
Senhora da Imaculada Conceição. A história conta que depois dessa pesca
surpreendente, os pescadores apanharam peixes em abundância.
A
transfiguração de “Nossa Senhora da Imaculada Conceição” em “Nossa Senhora
Aparecida”, ou abreviado, da “Imaculada” portuguesa em “Aparecida” brasileira,
às vezes, amorosamente, invocada como “Cida” ou “Cidinha”, pode ser considerado
o primeiro milagre de uma santa cuja ancestral branca acompanhou os
conquistadores no porão de suas naus. No litoral paulista, Martim Afonso de
Souza (1500-1571) dedicou a ela a primeira igrejinha no Brasil. Hoje, em todo o
território nacional, são mais de 530 paróquias dedicadas a Imaculada Conceição
e mais de 340 a Nossa Senhora Aparecida.
Após a permanência de alguns anos no
leito do rio como numa pia batismal, emergiram na rede dos pescadores dois
pedaços de barro de uma imagem despida, com seu orgulho de plenitude branca
quebrado, sem indumentária, escurecida, realmente “nossa”, Senhora por
respeito, não pelo sangue. Azul é apenas seu manto, posteriormente
confeccionado para cobrir sua nudez e negritude. Depois do batismo no rio
Paraíba e uma longa permanência na casa dos pobres, a imagem é enfeitada com
adornos, cordões de ouro e homenagens que têm valor simbólico, não real. Não
foram encomendados pela visitada, mas agradam os visitantes. E não é para
menos. O povo sempre dá o melhor para seus hóspedes.
A passagem da Imaculada por
esse rio indica sua missão como Aparecida. É uma missão que significa despojamento,
presença, visitação silenciosa. Realmente, o primeiro milagre da Aparecida é o
processo da inculturação pelo qual a Imaculada se tornou a Cidinha missionária,
visitada e visitadora de muitos que estão atormentados pelos achaques da vida. Por
quinze anos, a vizinhança se reuniu na casa de seus pescadores e num pequeno
anexo, uma espécie de oratório, que foi logo construído, para receber cada vez
mais devotos. Ao longo desses anos, Aparecida se inculturou na vida dessa
gente. Nas rezas do terço, o povo pediu a proteção da Santa e agradeceu sua
proteção.
No rio Paraíba não aconteceu
propriamente uma aparição milagrosa de Nossa Senhora. A Aparecida é uma santa
silenciosa. Apareceu no silêncio das águas e atuou no silêncio das casas, sem
dizer uma só palavra, sem fazer promessas nem profecia, sem dar ordens ou
indicar um lugar para construir um templo.
Em Lourdes, sim, aconteceram,
segundo Bernadete Soubirous, dezoito aparições de uma “senhora branca”. E essa
“senhora” falava, deu recados, pediu orações e se identificou na 16ª aparição,
no dia 25 de março de 1858, festa da Anunciação do Senhor, com as palavras: “Eu
sou a Imaculada Conceição”, eliminando as dúvidas que possam ainda ter pairado sobre
a proclamação do dogma por Pio IX, quatro anos antes.
Apesar do silêncio e de
milagres discretos, a devoção da Nossa Senhora Aparecida cresceu e se espalhou pela
região. Para receber cada vez mais peregrinos, foi necessário construir espaços
maiores, simbólicos e reais. Em 1904, a imagem de Nossa Senhora da Conceição
Aparecida foi solenemente coroada e, em 1929, foi proclamada padroeira oficial
do Brasil. Já em 1980, a Basílica Nova foi consagrada pelo Papa João Paulo, e o
evento do rio Paraíba tornou-se feriado nacional, litúrgica e politicamente reverenciado
a cada dia 12 de outubro. Em 1984, a CNBB declarou a Basílica, oficialmente,
Santuário Nacional e o dia 12 de outubro de 2016 marcou a abertura do Ano
Jubilar em comemoração aos 300 anos da aparição de Aparecida.
A integração nacional e
oficial de um evento milagroso, originalmente destinado aos pobres e apropriado
pelos socialmente humilhados como elemento de resistência e luta pela sua dignidade,
não é sem risco e aconteceu também em outros países. As manipulações das elites
políticas e culturais passam sempre por aquilo que o povo considera sagrado. Há
anos concelebrei com companheiros da Teologia Índia uma Missa na Basílica de N.
Sra. de Guadalupe, santuário nacional do México, com não indígenas sentados nos
bancos e com praticamente todos os índios presentes sentados no chão, no fundo
da Igreja, ou encostados na parede. As elites, donas da palavra e do poder, procuram
fazer os pobres reconhecerem, voluntariamente, “seu” lugar nas repartições
públicas, na sociedade e na Igreja. Nas festas religiosas buscam proximidade
com as “autoridades” religiosas populares que lhes dão legitimidade e sacralizam
seu poder. Mas os milagres acontecem “no fundo da Igreja” e nas periferias,
onde nasce a esperança.
Hoje, doentes abastados e
pobres, com suas dores desiguais, procuram a Santa. Vêm para “pagar” promessas atendidas
e para encomendar graças urgentes. Cidinha e Rainha, com humildade e majestade,
Nossa Senhora Aparecida pode puxar a cada uma e a cada um para cima e para fora
de sua miséria, pode garantir o essencial a cada dia e, na falta desse
essencial e apesar dessa falta, transmitir o sentimento de não abandonar os
devotos dos quais é mãe. Ela também experimentou a precariedade da vida. Na
passagem pela água do rio e pela casa dos pobres, a Virgem Imaculada integrou
no imaginário dos fiéis traços robustos da Mãe Terra, simbolizada não somente
pela cor, mas também pelo adorno da Lua aos seus pés, que a faz “espelho de
justiça”, porque reflete a luz de Cristo. “Maria ajuda a manter vivas as
atitudes de atenção, de serviço, de entrega e de gratuidade”, indicando assim
“qual é a pedagogia para que os pobres, em cada comunidade cristã, `sintam-se
como em casa´” (DAp 272). Maria como “auxílio dos cristãos” e “continuadora da
missão” não significa um intervencionismo na obra da evangelização, mas uma
presença operante do imaginário mariano na memória e na história do
cristianismo.
A
Aparecida e outras Madonas Negras
Na liberdade e diversidade da
assunção dos mistérios da fé, que se manifestam em torno das devoções marianas,
nos confrontamos com um dado intrigante: Nossa Senhora Aparecida, cuja negritude
foi interpretada como apoio à causa dos escravos e resgate de sua dignidade, é
apenas uma entre muitas Madonas Negras ao redor do mundo, portanto, independentemente
de contextos de escravidão, de geografia, história, cultura e situação social
dos respectivos povos ou grupos humanos. Só para dar alguns exemplos, encontramos
madonas negras ou morenas na Colômbia (“Virgem da Candelária”) e em Cuba
(“Virgem da Caridade do Cobre”), na Espanha (“Virgem de Montserrat”) e em
Portugal (“Nossa Senhora de Nazaré”), na Suíça (Maria Einsiedeln) e na França (Chartres),
na Bolívia (“Virgem de Copacabana”) e no México (“Nossa Senhora de Guadalupe”).
Até hoje não se conseguiu construir um denominador comum para explicar essa
negritude. Também a identificação da Aparecida com a “mãe negra”, símbolo da
ama de leite negra, cujo monumento se encontra no Largo do Paissandu, em São
Paulo, não procede. Pela proximidade com a Virgem Imaculada, a iconografia
mostra a Aparecida sempre sem criança, como de fato foi encontrada no rio
Paraíba. Em alguns casos, arqueólogos e antropólogos afirmam com certa
segurança que as Madonas Negras estão diretamente ligadas a antigas deusas
pagãs: Ísis, Cibele, Ártemis, Perséfone, Débora, Diana e tantas outras.
A afirmação que as Madonas
Negras serem representantes simbólicas de deusas lunares arquetípicas em lugares
(fontes, covas, montanhas) que radiam forças curativas explica parcialmente a
sua existência através de séculos e milênios. Em todo caso, a Aparecida, pela
sua origem histórica e teológica, é, ao mesmo tempo, Nossa Senhora Imaculada,
branca e celeste, e Nossa Senhora Aparecida, negra e terrestre. Ela é também,
segundo a Ladainha Lauretana, “rainha elevada ao céu” e “consoladora dos
aflitos” na terra. A Aparecida nos lembra do nosso “compromisso com a
realidade” (DAp 491) e nos “ajuda a manter vivas as atitudes de atenção, de
serviço, de entrega e de gratuidade”, indicando assim “qual é a pedagogia para
que os pobres, em cada comunidade cristã, `sintam-se como em casa´” (DAp 272).
As perguntas abertas sobre a
origem e o significado das Madonas Negras não anulam explicações com os quais
até hoje somos familiarizados, mas procuram ampliar esses significados e apontar
para suas raízes profundas e horizontes diferentes. Até agora, nem a
hermenêutica afirmativa de movimentos negros nem a hermenêutica de suspeita da
psicologia profunda alcançaram ou ultrapassaram a linha do realismo fantástico,
como está presente nas narrativas em torno da Madona Negra de Loreto, Padroeira
dos Aviadores.
Itinerário
aberto
A devoção da Nossa Senhora da
Conceição Aparecida nasceu da metamorfose da devoção primordial a Nossa Senhora
da Imaculada Conceição. Devotos de São Francisco trouxeram a imagem de uma
virgem branca, considerada “cheia de graça” e “concebida sem pecado original”, em
uma das naus de Pedro Álvares Cabral de Portugal ao Brasil. Mas ficou reservado
a Martim Afonso de Souza, cuja esquadra partiu, em 1530, com cinco embarcações
e 400 colonos e tripulantes para colonizar o Brasil, dedicar a primeira
igrejinha, em Itanhaém, no litoral paulista, a Nossa Senhora da Conceição. A
partir da segunda metade do século XVII, seu culto, festejado no dia 8 de
dezembro, tinha-se tornado oficial em todo o território lusitano e suas
colônias.
Se no evento de Aparecida não ocorreu propriamente uma aparição de Nossa Senhora nem uma mensagem aos pescadores nem um milagre convencional - quais são o mistério e a mensagem de Aparecida que atraem multidões de peregrinos? O mistério da Aparecida está no encontro que permite assumir o sofrimento numa atitude histórica e sobrenatural. Nossa Senhora da Conceição Aparecida se deixou encontrar nas águas de um rio e, por conseguinte, poderia ser chamada de "Nossa Senhora do Encontro". No silêncio das águas do rio, ela ouve o clamor do povo, se faz cativa dos pobres e assume a cor da pele escura do povo. Ela é advogada nossa sem toga e ajusta as contas quando as instâncias humanas de justiça demoram e as da sorte falham.
Pobres e ricos peregrinam anualmente em caravanas para Aparecida agradecendo graças recebidas que interromperam o sofrimento do desemprego e a monotonia de trabalhos pesados na lavoura ou na fábrica. A Aparecida é negra, pequena, silenciosa e, ao mesmo tempo, poderosa. Seu poder místico pode ser transformado em esperança histórica e ação política. Sua imagem é uma promessa e uma ordem: é possível esmagar a cabeça da serpente [veja o texto integral em: Convergência, out. 2017, p. 22-36].
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