CANTEIRO DE OBRA DE
UMA IGREJA EM SAÍDA
Paulo Suess
Entre
os dias 18 a 21 de junho, a Clar (Confederação Caribenha e Latino-americana de
Religiosos e Religiosas) reuniu mais de 1.200 pessoas da Vida Consagrada (VC) em
Congresso de Bogotá, Colômbia. O tema do evento versava sobre “Horizontes de
novidade na vivência dos nossos carismas hoje. – Escutemos a Deus onde a Vida
Consagrada clama”. Os horizontes foram descortinados durante esses dias segundo
o esquema ver-julgar-agir, agora denominado “clamores”, “convicções” e
“compromissos”. O tema foi abordado através de palestras e talleres que procuravam mostrar as frestas pelas quais hoje é
possível sentir o afago de ventos novos da presença de Deus. As sínteses dos
mais de 40 talleres – um feixe de
problemas do mundo de hoje - foram acolhidas em dez núcleos temáticos e
apresentadas aos plenários no início do dia seguinte. Apesar da multiplicidade
dos temas tratados nos talleres, os
organizadores fizeram um grande esforço de não perder o foco do tema:
horizontes, novidades, saídas.
Encolhimento
Hoje,
a Vida Consagrada está atribulada por muitos lados. Dados do Anuário Pontifício
da Igreja revelaram, ano por ano, um crescimento estável da Igreja Católica,
porém, uma queda do número de homens e mulheres consagrados. De 2000-2008, o
número de religiosos no mundo passou de pouco mais de 800.000, em 2000, para
740.000 em 2008. A VC no Brasil é composta por 80% de idosos com mais de 65
anos enquanto a população do Brasil está com pouco mais de 12% de idosos.
Na
sociedade secular, o sistema capitalista resolve o enxugamento da máquina, quer
dizer, a diminuição de operários, através de uma aceleração do processo de
trabalho em função de maiores rendimentos e da competitividade. Na vida consagrada,
o próprio Deus parece encarregar-se desse “enxugamento” através de um
encolhimento vocacional que perpassa a maior parte de congregações e institutos
religiosos.
O
fenômeno do encolhimento atravessa comunidades com ênfase radical no
despojamento e na encarnação, como atinge fraternidades que levam uma vida mais
adaptada aos padrões do mundo secularizado e do conservadorismo de classes
tradicionalistas. As causas são múltiplas e complexas: a diminuição dos filhos
nas famílias, a migração do campo para a cidade, o imediatismo da cultura
contemporânea com mudanças rápidas de cenários, com ofertas imediatas e certo
desprezo por compromissos a longo prazo. Secularização, individualismo e relativismo
são outros fatores da cultura moderna que contribuem para a configuração da
crise da VC.
Leigos, Periferia, Novas Gerações
Guiado
por necessidades e opções, o lado positivo dessas pressões permitiu melhor
“escutar Deus, onde a vida clama” (cf. tema e Mensagem final do evento) e aponta para três sujeitos e áreas de
presença: o mundo leigo (a), a periferia dos pobres (b) e as gerações novas (c).
a)
O hospital e o grande colégio da Congregação ou da Ordem, que no passado
prestaram bons serviços e garantiram o sustento para a atuação em áreas mais
pobres, hoje passam progressivamente às mãos de leigos e ao estado laical, sem
vínculo com a Vida Consagrada. As grandes obras sempre serviram mais às elites
do que aos pobres. Com menos obras, consagrados e consagradas estão livres para
a evangelização e a realização de uma “Igreja em saída” (EG 46).
b)
A passagem das grandes obras administradas pela VC para a administração pública
ou a gestão privada, geralmente, não é uma opção. Muitas vezes, é uma passagem forçada
e dolorosa na qual é possível experimentar o desígnio de Deus que quer a VC livre
para outros serviços nas periferias, para avançar na opção de uma Vida
Religiosa pobre para os pobres. A VC está prestes a dar um adeus ao status de
classe média.
Desde
os primórdios da conquista espiritual das Américas e em suas fases de
prosperidade e expansão, a VC dividiu-se entre acompanhamento dos conquistados
e presença entre os conquistadores, entre serviços aos pobres e serviços aos
abastados. Nas aldeias indígenas, os primeiros jesuítas aprenderam a ser Igreja
inculturada, missionária, pobre e militante. Nos colégios adaptaram-se às
demandas da classe dominante. Trabalharam como educadores a serviço dos
conquistadores e dos colonos que já eram iniciados na fé de sua classe social e
dispensaram grandes esforços de inculturação.
c)
A partir da situação geral da VC é compreensível que participação e
posicionamento das Novas Gerações ganharam destaque como “fato significativo” (cf.
Mensagem final). O núcleo temático “Novas
Gerações”, com cinco talleres, “reconheceu
sua componente utópica positivamente como chave de reforma em consonância com a
utopia de Jesus: o Reino”, capaz de “gerar novos horizontes e motivar
compromissos”.
É
importante que a VC aprenda pelas Novas Gerações abrir mão de certa rigidez nas
estruturas que não estão a serviço dos pobres. Mas é importante também não
substituir o antigo autoritarismo dos idosos pelo culto às Novas Gerações com
que a mídia televisiva nos tenta distrair dos verdadeiros problemas do mundo de
hoje.
É
fundamental manter um diálogo sincero com as Novas Gerações, que batem na porta
dos noviciados ou dos seminários, para saber se além do canto e da beleza das
roupas litúrgicas, amam também os pobres que, às vezes, não são bons nem belos.
Às
Novas Gerações, que chegaram um dia antes em Bogotá, numa espécie de
pré-congresso, eu perguntei no meu coração: Será que são capazes de amar em
suas casas religiosas os velhinhos e as velhinhas que eram a maioria entre os
participantes do Congresso? Em 2050, na América Latina, o número de pessoas com
mais de 80 anos de idade será quatro vezes maior que agora, e o dinheiro em
caixa da comunidade, certamente, vai ser muito menos do que hoje. Provavelmente,
a velhice das Novas Gerações de hoje, amanhã, será menos confortável.
Do Congresso à Assembleia
O
Congresso questionou a autorreferencialidade da Vida Consagrada, lastimou as
amarras de estruturas rígidas e considerou as contribuições das Novas Gerações
sementes que devem passar da teoria à prática (Mensagem final, n. 6). De certa maneira aconteceu essa passagem nos
dias que seguiram ao Congresso, de 22 a 24 de junho, nos dias em que uns 80
delegadas e delegados da Clar realizaram sua XIX Assembleia Geral. Estes, a
partir da força missionária de seus carismas, procuravam situar a Vida
Consagrada (VC) nos grandes conflitos causados pela degradação da vida no mundo
de hoje (cf. Mensagem da XIX Assembleia).
A Assembleia fez a opção por
- uma VC mais humanizada e humanizadora,
- uma vida em comunhão fraterna como
respostas a uma sociedade violenta e desintegradora,
- um cuidado carinhoso com a criação como
parte da vocação religiosa,
- uma credibilidade da própria pobreza junto
aos grupos mais vulneráveis, particularmente ao lado dos imigrantes,
afrodescendentes e povos indígenas,
- uma eclesiologia de diálogo como caminho
para a paz, uma evangelização encarnada, e uma missão partilhada entre
diferentes congregações e com os leigos,
- uma acolhida das contribuições das Novas
Gerações,
- uma assimilação da espiritualidade
trinitária e mística profética.
Não esqueçam o melhor...
Ao
despedir-me dos congressistas, antes do início da Assembleia da Clar, queria
dizer algo que, na noite anterior, tinha escrito como lembrete: “Não esqueçam o
melhor: a Trindade e a Páscoa, os mártires e os pobres, a comunidade e o
despojamento, a misericórdia e a alegria!” Com a memória da recente
beatificação de Mons. Óscar Romero e a assunção vigorosa da encíclica Laudato Si, do papa Francisco, a
Assembleia da Clar celebrou sua Páscoa, e a Vida Consagrada, tantas vezes
declarada sem futuro, renasceu como Igreja em saída, martirial e militante - cantando
ao sol.
A vivacidade e entusiasmo com que foram descritos o Congresso e Assembleia da Clar transportam o leitor para o auspicioso evento. Interessante como, apesar da menção ao encolhimento ocorrido de 2000 a 2008, bem como a constatação do envelhecimento previsto da VC, a mensagem que prevalece é otimista, considerando as Novas Gerações do tempo presente e o renascimento da " Igreja em saída, martirial e militante - cantando ao sol."
ResponderExcluirMagnífico fechamento para texto inspirado, permeado por sensibilidade e profetismo!